Chopp à meia-noite no Cosme Velho | Luiz Henrique Gurgel

 por Luiz Henrique | 



Chopp à meia-noite no Cosme Velho

Ando relendo Machado de Assis. Sempre que o presente incomoda ou quando certas polêmicas estéreis sobre literatura contemporânea começam a aparecer, sinto canseira e preguiça, algo que se estende às pragas dos grupos de WhatsApp e às tais redes sociais. Aí dá vontade de ler o Machadão. Foi isso que me fez lembrar da história que conto agora, aconteceu faz algum tempo. Como disse, tudo culpa do mau humor com o mundo.

Foi numa noite lá no Cosme Velho. Não senti nada de extraordinário, nenhum arrepio na espinha ou pelos dos braços eriçados. O vento também não soprava diferente na ladeira e nem havia uivos estranhos. Ao contrário, o que se via era um insuportável sobe e desce de carros e ônibus, freadas, arrancadas, buzinas, além de gente zanzando pela calçada, voltando do trabalho, indo para a escola.

Se alguém esperava algum frêmito diferente por estar, a altas horas, tomando chopp no bar em que outrora se erguia a residência do senhor Joaquim Maria de Machado de Assis e sua senhora Carolina, lamento. Infelizmente esse tipo de coisa não provoca mais nenhuma “quebra da monotonia universal”, se é que isso aconteceu alguma vez. O bar se chamava Assis e o saboroso chopp que bebi era o Madame Machado, duvidosa homenagem à dona Carolina. O bar nem existe mais, agora no lugar, se não me engano, há uma loja, “Papelaria Machado” ou algo assim.

Mas bem que eu queria sentir algum arrepio naquela noite, um sopro qualquer, alguma “delícia íntima das sensações supremas”. Podia ser um copo que se quebrasse ou gato preto que pulasse na minha frente, um qualquer sinal.

Nada! Como é, e pelo visto sempre será. Talvez no lugar em que estive sentado podia ter sido a sala de estar da casa, onde o senhor Joaquim Maria e esposa costumavam acomodar-se, e ele lia para ela A Gazeta de Notícias trocando impressões do dia, histórias do velho Senado, do Império em ruínas, da República que já nascia carcomida. Não sei que diferença faz. “Haverá remédio para existir senão existir?” E se fosse possível escavar aquele chão, será que se poderia encontrar, quem sabe, um fragmento de unha, de louça, fios de cabelo enroscados num pedaço de pente ou escova de marfim? Está tudo enterrado pelo cimento, pela pedra portuguesa da calçada, pelo asfalto, por aquilo que chamam “progresso”.

Talvez essas coisas fizessem diferença só para quem vinha de longe, meio deslumbrado como eu. Os moradores do edifício alto já deviam ter se acostumado ou se esquecido dos fantasmas. “Engraçado o senhor comentar. Faz tempo mesmo que não reparo nada estranho. E olha que moro aqui faz mais de 30 anos!”. Qualquer assombração teria desistido, tamanho desprestígio. Sem falar no barulho, nos assaltos, tiros a esmo, e no esconjuro de pastores que pululam por aí, especialistas em tirar encosto. Fantasma nenhum daria conta, desprezado, enxotado.

Tudo vira rotina, e nos extasiamos com a “volúpia do aborrecimento”. Imagino que até hoje as pessoas passem com pressa por ali e sempre que veem alguém com um caderninho de anotações, debaixo da placa com o nome do escritor, devem dizer para si mesmas: “mais um bobo sentimental procurando qualquer coisa nessa esquina comum, só porque o tal escritor morou e morreu ali. É muita lenha para esse Machado”.

“Bruxo”, teriam dito os antigos e defuntos vizinhos que certa vez o bisbilhotavam e o viram queimando papéis nos fundos do quintal. Devem ter achado estranho aquele homem circunspecto e reservado, discreto, ali, sozinho, fazendo a queima. Alguma alquimia, talvez dissessem em más línguas. Embora soubessem quem ele era.

É possível que num futuro distante, a simplória placa branca na parede externa do que já foi um bar e que diz “Neste local viveu Machado de Assis de 1883 até sua morte em 1908”, caia e se perca. Talvez o nome fique restrito a especialistas e o prédio tombe — de cair ao chão mesmo — e a rua desapareça. Quem sabe, então, o Rio será alguma cidade submersa.

De todo jeito, a noite avançava e a quantidade de carros e ônibus diminuía, provocando intervalos cada vez maiores de silêncio. O garçom cutucou meu ombro, “já vamos fechar”. Faltava pouco para a meia-noite e ele lembrou outras coisas que andam aterrorizando, “essa onde de assalto está um horror”. No último gole do sexto, sétimo ou oitavo chopp, tive a sensação de que alguma coisa aconteceu no meu coração ali na esquina da rua Cosme Velho com a Marechal Pires Ferreira. Alguma coisa que “se abre no vazio” e eu não soube bem o que era. O garçom baixou a porta de aço atrás de mim, o neon se apagou, ouvi dar volta à chave por dentro. E não havia outra porta.  Ele deve ter se envolvido no avental preto de cetim e saído por uma das pequenas janelas, vaporando-se no ar.




Luiz Henrique Gurgel é jornalista, professor e pesquisador. Mestre em Literatura Brasileira pela USP, é autor do livro de contos “amores malfadados” (Ed. Primata, 2020) e “Porque era ele, porque era eu e outras quase histórias” (Caravana Editorial, 2023).