por Thaís Campolina__
É difícil pensar em um rosto, quando você pode pensar em um hábito, um momento, uma situação. Uma lembrança puxa a outra, memória é memorabilia. Por isso certas lembranças têm cheiro, às vezes até sabor e ritmo. Somos uma colagem de situações cotidianas sem qualquer registro senão esses flashs que parecem não conter nenhuma mensagem ou significado especial, exceto às vezes a presença de alguém que amamos, odiamos, um dia convivemos.
O prosaico ganha do grandioso. Tentam nos convencer que o que importa é a cobertura do bolo, mas é na massa ainda disforme do que vai vir a ser uma fornada qualquer que mora o tempo que a gente deseja tanto conter, seja a partir das sinapses, das fotos, das pinturas e dos textos.
Estamos todos a rés do chão. E quem escreve sabe disso.
Quando Adélia Prado diz no poema “Solar” que a mãe cozinhava exatamente feijão roxinho, arroz e molho de batatinhas, mas cantava, ela nos dá uma amostra de como a poesia está em olhar, com perplexidade, para todas as coisas. No simples de Adélia, a gente encontra a beleza do afeto e da saudade e, a partir desse jogo poético, quem lê percebe a própria vida, suas próprias cenas, seu prato de todo dia.
O tempo e o cotidiano se mesclam de maneira única no poema “História” de Ana Martins Marques. Aqui, o eu-lírico investiga o tempo, a partir inicialmente da idade do corpo, enquanto vive o cotidiano de todos os dias, como os versos “pela manhã como um pão” e “ao sair do meu apartamento” mostram. Nesse poema, uma conversa com o vizinho vira “troco com meu vizinho/palavras/de cerca de 800 anos” e tudo termina com “e piso sem querer numa poça/com 2 horas de história/desfazendo/uma imagem/que viveu/alguns segundos”, evidenciando a impermanência de todas as coisas, inclusive da língua, mesmo ela já sendo tão antiga, e do próprio poema que assim se finaliza.
A poesia do cotidiano então se propõe a captar momentos e lidar com a impossibilidade de fazer isso a partir da palavra. A linguagem é a ferramenta que o poeta tem para jogar com a nossa percepção e o cotidiano, nesse contexto, representa o próprio tempo e o desafio filosófico de compreendê-lo. Percebemos o tempo, mas não conseguimos defini-lo. Lembramos, mas não conseguimos escolher o que lembrar. E então, escrevemos a contradição.