Estamos todos a rés do chão: a escrita como forma de conter o tempo | Thaís Campolina

por Thaís Campolina__



Falar de cotidiano é falar de tempo e, como já disse Antonio Candido, o tempo é o tecido de nossas vidas. É difícil fugir dele quando a própria memória reafirma a importância do todo dia. Para aprender qualquer coisa, a gente precisa repetir, repetir e repetir. E a repetição acontece dentro de um contexto que envolve rotina, mas também acontecimento, percepção e notícia. É por isso que, de repente, eu me pego vinculando direito tributário ao consumo irresponsável de batata palha e essa estranha combinação me transporta para a Copa do Mundo no Brasil, porque foi quase nessa época que eu prestei concurso para Receita Federal (e não passei). E a Copa do Mundo no Brasil me lembra uma virose terrível que eu tive e que me fez enfrentar a partida contra o México dormindo. E pensar em 2014 me leva a perceber que não me lembro direito do 7x1, exceto pelos memes. De repente, embarco no ônibus SC04A e começo a circular pelo centro de Belo Horizonte, como se eu ainda morasse lá, ou melhor, como se eu tivesse acabado de me mudar para lá e ainda via tudo como novidade. Quase consigo sentir o gosto da fatia de pizza que eu costumava comprar vez ou outra no fim da tarde em um estabelecimento que ficava na porta do prédio em que eu morava e deve ter encerrado suas atividades há quase dez anos. 


É difícil pensar em um rosto, quando você pode pensar em um hábito, um momento, uma situação. Uma lembrança puxa a outra, memória é memorabilia. Por isso certas lembranças têm cheiro, às vezes até sabor e ritmo. Somos uma colagem de situações cotidianas sem qualquer registro senão esses flashs que parecem não conter nenhuma mensagem ou significado especial, exceto às vezes a presença de alguém que amamos, odiamos, um dia convivemos.


O prosaico ganha do grandioso. Tentam nos convencer que o que importa é a cobertura do bolo, mas é na massa ainda disforme do que vai vir a ser uma fornada qualquer que mora o tempo que a gente deseja tanto conter, seja a partir das sinapses, das fotos, das pinturas e dos textos. 


Estamos todos a rés do chão. E quem escreve sabe disso. 


Quando Adélia Prado diz no poema “Solar” que a mãe cozinhava exatamente feijão roxinho, arroz e molho de batatinhas, mas cantava, ela nos dá uma amostra de como a poesia está em olhar, com perplexidade, para todas as coisas. No simples de Adélia, a gente encontra a beleza do afeto e da saudade e, a partir desse jogo poético, quem lê percebe a própria vida, suas próprias cenas, seu prato de todo dia. 


O tempo e o cotidiano se mesclam de maneira única no poema “História” de Ana Martins Marques. Aqui, o eu-lírico investiga o tempo, a partir inicialmente da idade do corpo, enquanto vive o cotidiano de todos os dias, como os versos “pela manhã como um pão” e “ao sair do meu apartamento” mostram. Nesse poema, uma conversa com o vizinho vira “troco com meu vizinho/palavras/de cerca de 800 anos” e tudo termina com “e piso sem querer numa poça/com 2 horas de história/desfazendo/uma imagem/que viveu/alguns segundos”, evidenciando a impermanência de todas as coisas, inclusive da língua, mesmo ela já sendo tão antiga, e do próprio poema que assim se finaliza. 


A poesia do cotidiano então se propõe a captar momentos e lidar com a impossibilidade de fazer isso a partir da palavra. A linguagem é a ferramenta que o poeta tem para jogar com a nossa percepção e o cotidiano, nesse contexto, representa o próprio tempo e o desafio filosófico de compreendê-lo. Percebemos o tempo, mas não conseguimos defini-lo. Lembramos, mas não conseguimos escolher o que lembrar. E então, escrevemos a contradição.






Thaís Campolina (Divinópolis/MG) é autora dos livros de poesia “eu investigo qualquer coisa sem registro” (Crivo Editorial, 2021, um dos vencedores do Prêmio Poesia InCrível de 2021) e o seu recém-lançado "estado febril" (Macabéa). Também publicou as plaquetes poéticas “noticiosas” (2023), “línguas soltas” (Primata, 2024) e “frigideira” (Tato Literário, 2024) e o conto “Maria Eduarda não precisa de uma tábua ouija” (2020) em formato ebook na Amazon. Thaís é pós-graduada em Escrita e Criação pela Unifor, e trabalha nessa área. Atua como redatora, resenhista, facilitadora de oficinas, e ainda realiza trabalhos editoriais como leitura crítica e acompanhamento de projetos literários. Também é mediadora de leitura nos clubes Cidade Solitária, Leia Mulheres Divinópolis e Casa das Poetas, além de curadora da página Bafo de Poesia. Em julho, ministra a oficina “Estranho cotidiano: quando a poesia está logo ali”, promovida pelo portal Fazia Poesia.