O Coro coçando | conto de Cibele Laurentino

por Cibele Laurentino__



Este ano papai me tirou da escola onde estudava, me colocou em uma escola do estado. A mamãe chorou, sofreu com essa decisão, enquanto ele explicava que estava sem condições de pagar as mensalidades da escola particular. Eu ouvia tudo sem conseguir entender o sofrimento da minha mãe nem a diferença entre as escolas. Até gostei da ideia, poderia fazer novas amizades, com algumas garotas do bairro que também estudam lá.

Todos gostam dos meus cabelos, sempre escuto dizer que são lindos.

Eu fico sem graça, mas a mamãe parece que vai flutuar de tanto orgulho, eu acho lindo mesmo é o cabelo da Alice, todo cacheadinho.

Parece que não ia chegar nunca o inicio das aulas, usar o caderno novo de dez matérias, a bolsa nova, meu material escolar está lindo. Mamãe, triste, me deixou na escola e me fez várias recomendações:

— Não converse na sala; não faça amizade com pessoas desorganizadas; não aceite lanche de seus coleguinhas, seja obediente e educada.

Escutei tudo quieta e calada. Ela foi embora e o porteiro me levou a uma fila enorme de crianças, todas cantando o Hino Nacional. Enquanto isso, uma professora puxava a cordinha amarrada lá na frente, esticando um pano estampado, a Bandeira Nacional. Depois fomos direcionados à sala de aula. A professora se apresentou com o nome de Laurita. Simpática, porém me pareceu um pouco exigente, papai me ensinou que a gente aprende mais assim. Na hora do recreio, todos saem correndo com desespero, é uma loucura, tem momentos que me encolho no canto e deixo passar o tumulto. Tem uns combos de alvenaria contornando toda a escola enorme; percebi que, de duas em duas, amigas se separavam por grupos, estendiam uma toalha, dividiam o lanche, conversavam e se divertiam um pouco, um momento de troca de piadas, de gargalhadas e partilhas de comida também. Lanchei sozinha, não consegui fazer nenhuma amizade. Percebo que as meninas não simpatizaram comigo.

Alguns dias passaram e ainda me sinto sozinha. Na sala, tem muita conversa rolando na hora da aula, foguetinhos de papel circulando, bolinhas de papel jogadas nos cabelos cacheados das meninas, a professora reclama e não sei por que, de alguma forma insinua que fui eu. Imediatamente me defendo e entrego quem o fez, o que me fez excluída e sabotada por quase todos.

Precisei ir ao banheiro certo dia. Quando fechei a porta, uma loira suja de sangue por toda parte da roupa apareceu, tinha algodões nas narinas e ouvidos, estava parada me olhando. Eu me urinei toda, saí com as calcinhas arregaçadas no meio das pernas, gritando feito louca, enquanto todos gargalhavam de mim lá na porta do banheiro. Fiquei muito envergonhada e assustada, não queria mais voltar àquela escola, àquela sala de aula. A professora castigou a turma, me consolou, explicou para mamãe que era coisa de criança.

Abracei a mamãe e chorei.

— Filha, sinto muito. A professora Laurita me prometeu que isso não vai acontecer mais. Vamos tentar outra vez, esta escola é a melhor que temos no ensino público, estou pensando no seu futuro.

Confesso que não foi de bom coração, mas aceitei o pedido de mamãe.

No outro dia, fui para escola; na sala, todos quietos, a professora Laurita havia conversado com a turma e os convenceu que me pedissem desculpas todos juntos. Percebi no meio de todos que tinha uma garota que não estava na trama, parecia diferente, triste, meio excluída. Observei que ela sempre sentava no canto da sala sozinha e quase nunca saía para o recreio, preferia ficar lendo uma revista em quadrinhos. Achei estranho ela não estar junto com todos os outros. Resolvi me aproximar e questionei:

— Qual seu nome?

— Ana Maria, e você?

— Beatriz. Você viu o que me fizeram?

— Sim, eu vi. Já fizeram isso comigo no passado.

— Nunca vejo você no recreio, aliás, nunca te vi em dia nenhum.

— As meninas têm medo de ficar perto de mim, então prefiro ficar distante. Tenho piolhos.

Sorri e continuei perguntando:

— Pois eu não tenho medo.

Sorrimos juntas por um tempo, e na hora do recreio não fiquei mais sozinha, estava com minha mais nova amiga. Chamei Ana para irmos para o pátio, queria estar como todas as outras meninas, para dividirmos nossos lanches e conversarmos sobre coisas de menina. Fomos, porém, percebi Ana Maria um pouco calada e questionei se não queria estar comigo na hora do lanche. Ela me respondeu, tristonha:

— Não consigo trazer lanche todos os dias, só quando mainha traz da feira ou sobra dinheiro para comprar. Meus pais não tem grana para nada, mas vivem querendo me convencer que somos ricos com as graças de Deus.

— Não precisa ficar assim, tenho lanche, posso dividir com você todos os dias.

Foi meu melhor dia de recreio. Ana usa sempre um lenço colorido na cabeça, não questionei, acho que é por conta dos falados piolhos. Ana sempre precisa de ajuda nas tarefas e eu gosto de poder ajudá-la, sinto muito por não poder ajudar em matemática, não gosto nenhum pouco dessa matéria.

Recebemos nossas notas hoje, fiquei apavorada, mamãe com certeza irá me castigar. Sei que a nota da Ana também não foi boa, estou angustiada e preocupada. Não sei como olhar para mamãe após entregar o boletim, sei que vou levar um verdadeiro sermão, com a promessa de uma surra, se não conseguir uma melhor nota na recuperação.

Conversei com Ana sobre a minha apreensão, sobre as promessas de mamãe, com minha melhor amiga. Ela me confidenciou que seus pais nem sequer sabem ler nem cobram boas notas, tudo tem um lado bom na vida, a Ana não é

cobrada por essas coisas, não recebia as promessas e realização de uma boa surra de cinta. Acalmou-me dizendo que tinha um plano para nós.

No dia seguinte, na hora do recreio, Ana pediu para eu levar meu caderno de matemática. Sorri, dizendo:

— Então você vai me ensinar matemática?

— Não brinca, é coisa séria.

Fomos para nosso cantinho de lanche preferido. Logo após lancharmos, Ana me contou sobre seu plano:

— Temos uma simpatia para fazer.

— Vamos abrir nossos cadernos de matemática e vamos matar sete piolhos dentro dele, daí vamos tirar notas máximas em matemática. Mas precisamos conseguir matar todos os sete; senão, não dá resultado.

Nossa, o plano parecia perfeito, mas eu não tinha piolhos, e agora?

— Esse não é problema, eu te empresto.

— Empresta? Como assim?

Ana foi falando e logo retirando o lencinho da cabeça, ela tinha cabelinhos encaracolados bem curtinhos, muitas feridas por toda cabeça, um creme esverdeado escorria nos cantos, muitos bichinhos andando. Fiquei assustada, mas ela me acalmou e logo retirou sete piolhos com facilidade, colocou dentro do seu caderno e fechou rapidamente.

— Agora, abra o seu!

Abri meu caderno e ela retirou mais sete piolhos, colocou todos dentro do meu caderno. E eu, agarrada com o caderno, com olhos parecendo duas bilas.

— Feche, feche rápido!

— Agora vamos matar!

— Eles não vão morder nossos dedos?

— Não, não, sua boba, eu sei tudo sobre eles, eles só mordem a cabeça!

Pedi para ela fazer primeiro, antes de mim. Precisava aprender j. Ana abriu o caderno e matou todos eles rapidinho, juntava as unhas dos polegares e crau.

As unhas sujas de sangue, o caderno ficou todo manchado, mas ela foi heroína, matou todos eles, sem deixar nenhum em fuga. Festejamos com um copo de suco de guaraná de pozinho, fizemos um brinde e nos divertimos. Chegou minha vez. Estava nervosa, seria a primeira vez que mataria um minivampiro, nunca matei nem mesmo um pernilongo. Nunca tive coragem, mas era minha única saída. Precisava matar aqueles bichinhos. Abri meu caderno.

           — Fugiu! Pega! Pega! Pobre de mim! Não consegui, eles são muito rápidos.

Todos sumiram e não os encontrei. Vasculhamos por toda parte, mas não consegui. Tocou a sirene, encerrando o recreio.

— E agora?

Ana me consolou:

— Não fica assim, amanhã te empresto mais sete!

O recreio acabou, voltamos para sala. Era aula de matemática. Neste dia foi ainda pior, não consegui entender nada, o couro da cabeça coçava desesperadamente.






Cibele Laurentino
nasceu em Campina Grande, Paraíba, mas reside em Conde, no mesmo estado, ativista cultural realizando vários eventos culturais. Formada em Gestão em Turismo, atua na área e se dedica à literatura: estudante de Letras e escrita criativa, curadora do prêmio book brasil 2021 e 2022, autora do livro de poesias, Cactus, livro de estreia, de Nobelina, romance que se destaca por sua proposta regionalista premiado em 2021 pelo Edital Maria Pimentel na PB, Todas em mim — livro de contos, lançado em 2022, sendo traduzido e comercializado em espanhol no ano de 2023 pelo grupo editorial Caravana. Ainda em 2022 no mês de julho, lançou o romance Eu, Inútil, vencedor como melhor obra de ficção em Portugal no prêmio Ases da literatura. Membro da UBE — PB, membro da ALC — Academia de Letras de Campina Grande–PB