Para dentro, de Simone Andrade Neves | Resenha de Adriane Garcia

 por *Adriane Garcia |





Simone Andrade Neves abre seu livro Para dentro dizendo-nos da força vegetal: “Não fosse a mão do homem/cortando a rama/ o verde tudo planaria. Mais adiante veremos que cortar a rama é cortar o gesto de amar: “quando ramo,/ penso amor. O trocadilho simples estende o sentido do poema e do livro. Afinal, o que plana em todo Para dentro é um amor pela paisagem e sua composição: animais humanos e não-humanos, plantas, minerais, objetos, sensações, fenômenos da natureza. Algumas palavras-chave vão surgindo, reincidências como os vocábulos “ventoou “ruínase nisso é possível encontrar tanto o apelo de Para dentro à memória quanto à ancestralidade. 


A ancestralidade, conceito hoje muito utilizado, talvez em reação ao quanto o abandonamos, refere-se à conexão com nossos antepassados, origens familiares, tradições e cultura, ou com as herdades biológicas de nosso organismo, mas pode ir além. A ancestralidade pode ser pensada mais próxima do pensamento da humanidade primeva, um pensamento animista, fabulatório, em que somos com o ancestral o mesmo corpo no tempo, o mesmo corpo com a paisagem e os outros seres, assim como a Terra não é um organismo fora de nós, mas do qual somos parte. Nesse sentido, Para dentro conversa com o livro Ideias para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak: “Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos.Em Para dentro pensamos uma ancestralidade que se volte não só para a ligação no ramo genético ou mesmo cultural, mas para o ramo cosmológico, que já não seria um ramo, mas uma grande árvore-mãe, um alecrim arvorando.


São quarenta e nove poemas nesta coletânea, que é também um livro de viagens, cujos cenários se passam, em grande parte, nas cidades do interior de Minas Gerais, havendo espaço para outros estados do Brasil e também para não-viagens; os lugares em que a persona-lírica não foi. Na maioria dos poemas, podemos sentir um profundo encontro pessoal que se transmite como uma experiência coletiva do mundo rural. A beleza de Para dentro reside na capacidade da poeta de provocar, com a linguagem, a sinestesia encontrada no espaço/tempo diverso do urbano, por meio de imagens trabalhadas com exatidão e de um vocabulário que pinça palavras do mundo das comunidades retratadas, sua oralidade e também os substantivos que são Nomes para as vidas locais; um exemplo é a reincidência do objeto “sino. Simone Andrade Neves nos faz ouvi-los. O mundo camponês é retratado pela poeta com sofisticação, construindo na poesia uma vitória sobre os estereótipos que transformam o povo da roça em objeto anedótico, não raro inferiorizando o campo, seus moradores, hábitos e paisagens. Ao contrário dos estereótipos, a poeta trata esse mundo como um mundo valioso e original. Após a vida sair da água, encontrou o mato. 


É interessante cruzar alguns dados biográficos: Simone Andrade Neves é belo-horizontina, nascida na década de 70, ou seja, quando Belo Horizonte a jovem cidade ainda trazia em seus bairros muito da herança rural do Arraial do Curral Del Rei, destruído para a construção forçada de uma cidade urbana. Há alguns anos, a poeta reside em São Bartolomeu, distrito da cidade de Ouro Preto/MG, com cerca de oitocentos habitantes, onde vive intensamente a cultura e os afetos locais. Em Para dentro, o biográfico se expande para os legados ancestrais, os patrimônios e modos de vida da comunidade ecoam tempos anteriores. É o regresso, pois o progresso já sabemos onde nos tem levado. Não por acaso, alguns poemas falam de ruínas (ruínas que me sustentam, diria a poeta). Há admiração e denúncia, não raro a toponímia está construída com os adjetivos “velho, “velha: Estrada Velha de Cachoeira do Campo, Caminho Velho de Cachoeira do Campo a Ouro Preto. É um mundo velho e pulsante que a poeta reconhece nas ruínas: “A casa em ruínas/ sem seu morador// atravessa a rua/ pulsando dentro do coração oco


A memória em Para dentro se estabelece a partir do lugar antigo para não deixá-lo desaparecer. Por extensão, para não nos deixar desaparecer. Os lugares, ainda que em ruínas ou em desprezo, não são apenas locais, mas parte de saberes: jeitos de se relacionar, falar, cozinhar, construir objetos, realizar festas, cantar, criar vestimentas, tecer rezas, cultos, decifrar ervas, utilizá-las na saúde; modos suficientes de viver e de amar. A poeta usa como sumo de sua poesia os modos de vida que remontam às populações indígenas e de origem africana, também por isso Para dentro dá grande destaque ao mundo vegetal, como no ditado ligado ao Candomblé e a Ossain, sem folha não tem orixá. Santos e orixás, o catolicismo e as religiões de matriz africana e indígena, o caboclo se misturam nos palcos barrocos de Minas Gerais. O tempo também é outro, Simone Andrade Neves nos transporta para o mais vagar, sua poesia é uma poesia de pausa, de ler lentamente, de sorver. É o tema e a forma em  harmonia, um chamado para a contemplação e para a reflexão sobre o que permanece e o que se vai. Passarinhos que visitam ruínas somos nós. 


Com naturalidade, as referências vão se dando nos poemas, as leituras das obras de Mário de Andrade, Maria Lúcia Alvim e de Thiago de Mello, a passagem de Elizabeth Bishop e Lota por Ouro Preto, Sinhá Olympia, Caramuru, a música de Caetano Veloso, Djavan, as expressões populares modificadas causando o estranhamento proposital: as voltas que o mundo dá viram um jogo expressivo: “o mundo volta/ nas dobras que a pedra dá. A poesia de Simone Andrade Neves também se caracteriza por uma desmecanização da sintaxe, com uso de elipses, hipérbatos, anacolutos, quebrando uma lógica esperada: “Uma casa cercada por laranjeiras/ onde dois dias,/ quarenta e oito horas por ano,/ o acontecer da/ graça nomeada floraçãoou em “As abelhas atravessando o vento/ dizem do outono/ improvisa estada/ e do mel ofício aceitado. No exemplo de Casa do sol, a sinestesia visual alaranjada ilumina os versos. Escolhendo não romantizar a humanidade que expõe, a poeta opta, por vezes, pelo verso violento: “deitam punhal nos bichos. Não há mitificação sobre o ser humano que vive aqui ou ali, mas a constatação de que há outros modos de viver que não o das cidades constantemente em mutação, na qual sequer há tempo para o luto do que foi destruído.


No poema metalinguístico Uns minutos na margem, a poeta conta do seu garimpo artesanal: “Uma vida/ na cata de palavras molhadas/ rebojos da língua. É no rebojo que ela constrói versos de grande beleza e profundidade. Suas imagens alcançam movimento, chegam a montar coreografias, quase uma dança, como no poema As coletoras de maçã. Por vezes, seu tom bebe na fonte das orações, das invocações, do Dia de Reis: “Estrela, estrela de cinco lanças/ signo do rei na porta/ esta casa guardei/ até o dono voltar. Em sua poesia cabem as tragédias pessoais, a compaixão por cães abandonados e cavalos oprimidos pelos homens, a observação das aves, as estações de ferro desativadas, os oráculos como os ifás e a marca da escravidão: “Mas há só o vento puxando o meu cabelo para o leste/ na direção da casa do feitor. Personagens anônimos habitam Para dentro, mas não são anônimos para a poeta. Para dentro é um convite também à ancestralidade de quem lê, ao encontro de personagens conhecidos e anônimos que estão no ramo que flui para o passado. Passado onde possamos encontrar alguma sustentabilidade real, um elo entre o vegetal, o animal e o mineral que nos compõem, um encontro com uma ancestralidade que nos reconecte com a paisagem e com o futuro, em nossa ilusão temporal. Para dentro é “sankofa”: “nunca é tarde para voltar e apanhar o que ficou atrás.


ARNICA DO CAMPO


No lago rupestre

planta que não desgarra

pétala

no olho da corrente

dançam unidas haste e flor


Nó de corola e flor


valsa uma valsa

alegre.


Ferida só se cura com beleza!

Canta no vento o verbo ancião


e a mão do homem apanha

leva a haste quebrada

para macero da planta

no mosto tapando o corte

até nascer a cicatriz.


DUQUE 


Sabe lá qual

entrega novos cães

a um lugar


Vão embora 

e ninguém vê.

O ato de pôr à sorte um animal

é vergonhoso mesmo


Se comiam bichos de engorda,

Se não havia haver para alimento,

Se matavam outros cães,

Ou cravaram as presas no músculo dos donos,

Para um cão abandonado

O passado é coleção de hipóteses.


Cães passando passado a limpo

vão desfazendo

a antiga vida estrangeira.

Somados dias

desvai o Abandonado

e chega o Dono-da-rua.


Ganham um novo nome e

no fio de serem cuidados,

os cães cuidam,

cuidam de nós.


PARA THIAGO DE MELLO


Não fui ao Amazonas

Nunca fui


Li teus versos no cartaz da escola

e desde carrego graves embrulhados


No vau, terras de passar boi,

vazenteiros


Secas mornas

barreiro liso rachado de seca; morraria

raízes esguias, capilos

versos vindos de dano


E a água avança

enquanto corto capim

e o cerro na lingua;

voo de garça e poema.


*** 


Para dentro

Simone Andrade Neves

Poesia

2023

ed. Cobalto

Minibio. 



Sobre a autorda


Simone Andrade Neves nasceu em Belo Horizonte, no ano de 1974. Viveu infância e adolescência em Dionísio, MG. É autora dos livros O coração como engrenagem, edição da autora; Corpos em marcha (publicado no Brasil pela editora Scriptum e na Itália pela Edizioni Kolibris); Missa do Envio — Bandeira do divino (ed. Casa Impressora Almería); Terrário (Selo Demônio Negro). Seus poemas foram publicados em diversos periódicos no Brasil e em Portugal; e traduzida e publicada em periódicos de literatura dos Estados Unidos, Peru, Venezuela e Argentina. Mora em São Bartolomeu, Ouro Preto, MG.




*Adriane Garciapoeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei — a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020, Estive no fim do mundo e lembrei de você  (Editora Peirópolis) e A Bandeja de Salomé ( Caos e Letras, 2023)