por Taciana Oliveira
Apocalipse nos Trópicos: Petra Costa investiga os tentáculos do neopentecostalismo e da extrema-direita no Brasil
Em Apocalipse nos Trópicos, Petra Costa dá continuidade ao trabalho iniciado em Democracia em Vertigem, documentário indicado ao Oscar, aprofundando sua análise sobre o colapso democrático no Brasil. Se no primeiro filme a diretora mergulhou na crise institucional que culminou no impeachment de Dilma Rousseff e na ascensão de Jair Bolsonaro, nesta nova obra ela volta seu olhar para o avanço da extrema-direita sob uma nova lente: a do fanatismo religioso e da teologia do poder.
O documentário, que teve sua estreia fora de competição no Festival de Veneza de 2024, apresenta um retrato direto, honesto e profundamente necessário sobre a crescente influência das igrejas evangélicas neopentecostais na política brasileira, especialmente durante o governo Bolsonaro. A diretora constrói um paralelo perturbador entre o livro do Apocalipse e o caos social, político e sanitário vivenciado pelo país durante a pandemia da Covid-19. Imagens de arquivo, discursos oficiais e passagens bíblicas se entrelaçam em uma montagem sóbria e contundente.
Petra expõe de que forma a leitura literal do Apocalipse foi instrumentalizada para justificar a omissão do governo Bolsonaro diante da morte de milhares de brasileiros. O documentário denuncia o esvaziamento do Estado Laico, capturado por uma agenda teocrática travestida de moralidade religiosa. Em contraste à Teologia da Libertação (corrente católica que priorizava a justiça social e a defesa dos oprimidos) a Teologia da Prosperidade, predominante entre as igrejas evangélicas aliadas ao bolsonarismo, é mostrada como uma doutrina de salvação individual, voltada à conquista de bênçãos materiais e à legitimação do sucesso pessoal como sinal da eleição divina. O documentário evidencia a influência de grupos evangélicos norte-americanos, cujas estratégias de expansão e financiamento contribuíram para moldar o cenário político-religioso brasileiro. Essa internacionalização da fé como ferramenta de dominação política revela um projeto de poder que associa conservadorismo moral, neoliberalismo econômico e fundamentalismo religioso.
O protagonista de Apocalipse nos Trópicos é Silas Malafaia, um dos principais articuladores da chegada de Jair Bolsonaro ao poder. Não apenas conselheiro informal, mas estrategista e avalista religioso de um projeto político que se sustenta na fé e na moral conservadora. O filme entrega o pastor como o rosto mais visível da aliança entre púlpito e Planalto, uma síntese do esforço das lideranças evangélicas para ocupar o centro do poder institucional no Brasil. Figura central desse movimento, Malafaia nas entrelinhas do seu depoimento expõe que a Democracia se sustenta pela maioria, não pelas minorias. A perfeita tradução de um pensamento autoritário que se fortalece sob o manto da fé.
Petra não se limita a expor o discurso dominante e dá voz também a evangélicos dissidentes, que se posicionam de forma crítica frente à instrumentalização política da fé. São pastores que rechaçam a retórica de ódio, o autoritarismo e o uso do nome de Deus para justificar a exclusão e o lucro. Suas falas ajudam a quebrar o estigma de uma igreja evangélica monolítica e revelam disputas internas por narrativas mais humanas, inclusivas e alinhadas com os princípios do Evangelho.
O documentário também inclui a participação do atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que, em tom autocrítico, declara; “Tenho uma tese que o que levou o socialismo ao fracasso foi a negação da religião” A fala do nosso atual presidente escancara a lacuna deixada por movimentos progressistas na disputa por corações e mentes nas periferias, onde a religião se tornou não somente refúgio espiritual, mas forma de pertencimento e poder simbólico.
Diferentemente de Democracia em Vertigem, onde sua voz pessoal era central, Petra adota aqui uma postura mais observadora, quase contida. No entanto, sua inquietação permanece. Há momentos em que ela parece lutar para compreender uma realidade tão brutal quanto distante da sua experiência. A pergunta que ecoa, ao fim, é também uma provocação teológica: se Deus é tão bom e misericordioso, por que teria seus escolhidos?
Apocalipse nos Trópicos amplia e aprofunda a reflexão iniciada por Petra Costa sobre a fragilidade da democracia brasileira e seus múltiplos inimigos. Ao explorar os vínculos entre fé e autoritarismo, ela oferece ao público um filme necessário, tanto como documento histórico quanto como alerta profético.
*Assista na Netflix
Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua na direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo” Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas
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