por Taciana Oliveira__
Neste universo que beira o fantástico, Exus, Pombagiras e espíritos errantes não são metáforas, mas presenças ativas que conduzem o ritmo das vidas ordinárias — como no conto de abertura, “Gurufim”. Já em “As infinitas vidas de Rutinha Maravilha”, a morte se converte em espetáculo midiático, e a protagonista renasce tantas vezes que se transforma em oráculo pop e símbolo de resistência. Em “Três tipo de gente”, um assalto a uma cerimônia de casamento vira crônica da desigualdade, da astúcia e da brutalidade cotidiana.
A escrita de Estevan é saborosa, impregnada de gírias, ditos populares, musicalidade e uma inteligência que mistura sarcasmo e afeto. Seus personagens — sambistas, malandros, mães enlutadas, jovens à margem — ressoam reais, mesmo quando flertam com o delírio e o absurdo. Há sempre uma dor de fundo, uma melancolia atravessando a festa. E é nesse lugar entre o riso e a lágrima que o livro se estabelece: um samba de sétimo dia, uma celebração do fim que é também recomeço.
Com ecos de João Antônio, Ferréz e Marcelino Freire (que assina a orelha), o livro é uma oferenda literária aos que transitam entre mundos — vivos, mortos e encantados. Anderson Estevan reafirma a potência da narrativa breve como território de invenção, memória e transgressão. Samba de Sétimo Dia é, como bem sugere seu título, despedida e resistência. Livro para ser lido com um pé na rua e o outro no terreiro.
Trecho do conto "As infinitas vidas de Rutinha Maravilha"
"Era um festaço quando diziam: “dessa vez Rutinha Maravilha abotoa o paletó”. A cidade inteira parada esperando aquela algazarra. Vinha o legista atestar, pois até para a danada precisa de papel provando. Começava então o desespero apressado de outro funeral. Essa menina, coitada, cheirava à tragédia. Sucesso tanto, que papa-defuntos de tudo quanto era raça e credo apareciam no IML para tentar arrancar um qualquer daquela teimosa que não dava com as ventas nunca. Tinha homem, tinha mulher, tinha tudo. Saindo fumaça de tanto soco, de tanta banda. Era disputa mesmo, na unha, e valia o esforço. Não haveria de ter cliente melhor, pois quem morre não pede bis. Não pedia. Essa aqui voltava três, quatro vezes num mesmo ano.
Famosa que era, já tinha matéria pronta: “outra vez morre a caboclinha”. Será que agora em definitivo? Ficavam de prontidão os jornalistas, na espera de cobrir o seu não-falecimento. Pela tevê o âncora disse: “Desta vez foi atropelamento”, em pleno horário nobre. Com aquele tamanho todo, letras garrafais, enchendo a tela de um canto ao outro. “Basta saber se agora Rutinha Maravilha vencerá o outro lado da vida.” Nossa gente já sabia o final da história, ela vivinha da silva. Passaram seis meses daquele mundaréu de tragédia, engasgada com azeitona, trançando os pés escada abaixo, encontrando um automóvel que acelerava na contramão. Eventos Samba do sétimo dia 51 estes sem escapatória. Ao menos para a maioria da gente."
Serviço:
Samba de Sétimo Dia
Anderson Estevan
Ed. EditoRia
Preço: R$ 50
Disponível nas principais livrarias.
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*Anderson Estevan, 36, é paulistano de Itaquera, zona leste de SP. Autor de Oito Contos Enjaulados (Confraria do Vento, 2021). Formado em jornalismo e com pós-graduação em jornalismo literário, foi um dos 30 selecionados para a edição de 2018 da oficina de formação de escritores da Casa das Rosas, o CLIPE.
Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo” Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.
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