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Fonte: Europeana no Unplash |
Quando a porta se abriu, antes mesmo de eu girar a chave, dei de cara com aqueles olhos conhecidos, olhos que amo. Situação repentina, ainda que banal, gerou espanto para mim mesmo. O que há de anormal com o próprio pai abrindo a porta de casa para você entrar? Quantas vezes já me fizera isso? Ele sorriu, esperando meu passo adiante. Restei no umbral e seus olhos vivos e felizes me levaram para uma nebulosa na memória dele. Minha também. Demorada e longínqua fração de segundos em seus olhos.
Ele nunca contou detalhes, mas, conhecendo-o desde sempre, imaginei o que deve ter sido largar da barra da saia da mãe aos 10 anos para ser interno num seminário milhares de quilômetros distantes. Escorreram lágrimas? Talvez segurasse as mãos, uma na outra, junto ao corpo. Deixava para trás o dormir aconchegado no colo de dona Alda, na rede, e o acalanto das ave-marias do terço, ritmadas pelo balanço. A reza era canção de ninar desde a amamentação.
O que disse quando o tiraram das mãos da mãe? Será que se lembra da expressão no rosto dela? Franziu a testa, se contorceu? Houve algo como um “ó pedaço de mim, ó metade arrancada de mim”? E o pai? Ofertou consolo? Que estímulos teria dado?
Na rua, matolinha na mão. No dia que ia embora, será que o amigo Glauco, parceiro de estrepolias, batia bola e olhava o pequeno cortejo que o acompanhava até a estação? Será que o padre alemão que ia à frente, conduzindo a todos, inclusive os outros meninos de outras cidades, era brusco ou seguia levando com cuidado aquelas crianças? Seus pais o acompanharam até a estação? Até a escada do trem? Até o assento no vagão? Sentou-se comportado? Foi direto para a janela? Segurou o choro?
Um homenzinho! Dez anos e já com vocação para servir a Deus, alguém teria dito naquela hora. Ninguém sabia que só voltaria quase 20 anos depois.
Conheceu a Capital, mar e navio de uma vez só. Da amurada viu a cidade sumir. Próxima parada, Natal. Os padres Fritz e Damião, europeus brancos e avermelhados que sofriam com o sol nordestino, desceram do navio com os 12 garotos. Iam comer e caminhar um pouco pela cidade, o navio só partiria na manhã seguinte. O menino achou estranho que todos os bondes iam para o mesmo lugar, Alecrim, lhe pareceu doce o nome nos letreiros. Depois, de volta ao mar, vieram Recife, Salvador, Ilhéus, Rio de Janeiro e Santos.
Em pleno oceano, grandes medos. Padres e meninos seguiam viagem dormindo em redes no convés. Camarotes eram caros. Em noites agitadas, ondas altas estouravam no casco e encharcava meninos, redes, batinas e padres. Fritz e Damião puxavam o terço com o coro assustado e a cada balanço mais forte elevavam as vozes ao que “estais no céu”. Para ele não soava como a voz delicada e melodiosa a que estivera acostumado, com o complemento do chinelinho que a mãe raspava no chão monotonamente para impulsionar a rede que rangia no vai e silenciava no vem. Sono bom. O balanço do navio e da rede armada no convés eram a versão sombria da suavidade da rede de casa. Sombrio a valer era o escuro contínuo, céu-mar infinito.
O medo descontrola o corpo. Como ir ao banheiro lá na popa no meio da noite? Quando o sono no grupo ia alto, depois das tensões do mar agitado, dava para tirar a calça curta, descer devagarinho da rede e atirá-la, suja, na escuridão oceano. Depois corria na matolinha, que também servia de travesseiro, pra pegar e vestir outra. Foram duas calças até aprender a se controlar e ficar um pouquinho íntimo — bem pouquinho — das águas tenebrosas. Será que os peixes comeriam? Pensou consigo, rindo um pouco. Padre Damião deve ter percebido algo, talvez ele não fosse o único, por isso passou a obrigar a todos, antes de deitar, de irem ao banheiro, mesmo sem vontade.
“Não vai entrar?”, me perguntou sorrindo com paciência de pai que espera o filho distraído e atrapalhado. Disfarcei meu comovido devaneio por seus olhos, entrei, beijei-lhe o rosto. Eu era o depositário de sua história, que também é minha.
Luiz Henrique Gurgel é jornalista, professor e pesquisador. Mestre em Literatura Brasileira pela USP, é autor do livro de contos “amores malfadados” (Ed. Primata, 2020) e “Porque era ele, porque era eu e outras quase histórias” (Caravana Editorial, 2023).
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