por Luiz Henrique Gurgel |
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Foto de William Freitas na Unsplash |
O desejante é um barco bêbado
A situação do apaixonado é terrível, sabemos. Seu espírito e seu corpo se comportam como um barco bêbado. Na tormenta, bem que procura não ficar à deriva e se debate teimoso contra as ondas, na eterna dúvida entre o ir devagar ou a todo vapor. Quando se encontra num mar de rosas, aí flutua, boia de barriga pra cima a contemplar céu estrelado e sonha acordado com bobagens de amoroso. Mas sempre vem aquela onda impertinente bater na cara e tirá-lo do devaneio ou, pelo avesso inverso do sentimento, tirá-lo da cruel angústia melancólica que o fazia mastigar o próprio fígado. Ou melhor, o coração, neste caso, órgão mais indicado.
Na mescla de delírios e indecisão involuntária entre o êxtase e o fracasso, sempre decide, em algum momento de embriagada coragem, tomar uma atitude definitiva pela décima vez, sem medo de arranhar o casco. Então proclama e grita soluções ao vento, convicto, e em geral na hora errada da tempestade. Mas mesmo quando decide agir com lucidez descobre depois que a decisão não era definitiva e muito menos lúcida.
O fato é que quer saber, no meio do seu turbilhão e decididamente, se o outro ser, estritamente selecionado, objeto de seu pathos (uma patologia mesmo), ainda o deseja. Ele sabe — ou melhor dizendo, sente — que todo alguém desejante quer, acima de tudo, ser desejado. E muito mais que isso: quer ser desejado pelo ser que ele deseja. E em hipótese alguma quer que o ser que ele deseja, deseje outro e muito menos que o outro deseje o ser que ele deseja. Uso de psicanálise de botequim só para demonstrar o tamanho do caos nesse mar revolto.
Passada a procela, mas sem conseguir ver o mar por causa do nevoeiro, precisa saber — talvez, agora, por fim e de uma vez por todas — se há chance de retornar ao seu porto seguro. E grita até perder a voz em busca do imenso, do silêncio mais intenso que está depois dos temporais.
Mas barco bêbado vê sua estrela guia, sua América, seu farol, sua terra à vista, distanciar-se. Sente o desespero de um náufrago. Parece não haver comunicação possível, nenhum sinal luminoso, código morse ou hasteada de bandeira que dê jeito. Sempre fica, claro, alguma esperança na virada da maré, da corrente… É um ingênuo.
Ele tenta, mas sequer tem tempo para o último desejo, morrendo de medo de se perder e de perder o amor pelos sete mares. E aí, desta vez, boia feito cortiça ao sabor da vaga, sem leme — quem me navega é o mar — arrastado por melancolias e delírios molhados.
No redemoinho sai a perguntar o porquê. Pode até encontrar dezenas de corpos-ilha mar adentro, desejar dezenas deles, mas só um é que lhe pareceu capaz de o desvirtuar e o deixar à deriva. Pelo menos como na última grande aventura.
Como termina? Há os que naufragam e se afogam — o que sempre causa estranheza, já que não há tormenta que dure para sempre, algo que nunca se lembram antes de se deixarem sucumbir. Há os traumatizados que encalham o barco, às vezes vida afora, e nunca mais põem o pé nem na ondinha rasa da beira da praia. Mas há também aqueles que gostam de viver perigosamente, sempre prontos para se atirarem novamente ao mar da paixão e da loucura na primeira oportunidade, mesmo que o risco de outra tempestade esteja logo ali no horizonte.
Luiz Henrique Gurgel é jornalista, professor e pesquisador. Mestre em Literatura Brasileira pela USP, é autor do livro de contos “amores malfadados” (Ed. Primata, 2020) e “Porque era ele, porque era eu e outras quase histórias” (Caravana Editorial, 2023).
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