por Taciana Oliveira |
Em Guia de conduta para mulheres bravas (Editora Orlando, 157 págs.), Marina Jerusalinsky revisita o chamado “Juízo das Bravas”, julgamento que vigorou entre os séculos XIV e XVIII, condenando aquelas que se expressavam de forma considerada “inapropriada”. Resultado de sua pesquisa de doutorado, o livro combina investigação histórica, relatos contemporâneos de brasileiras e portuguesas em um projeto gráfico arrojado. Composto por 59 lições de conduta irônicas, o trabalho transforma a linguagem em instrumento de denúncia e resistência.
A obra também aborda como estereótipos coloniais ainda se manifestam, em especial na forma como brasileiras são tratadas em Portugal. No capítulo Para Brasileiras em Portugal, Jerusalinsky reúne frases ouvidas por mulheres migrantes, como “Vocês vêm para cá para roubar nossos maridos” ou “Ao menos servem para cuidar de nós”, revelando a permanência de preconceitos enraizados.
A quarta capa do livro é assinada pela escritora e artista visual Marcela Scheid. Já a arte da capa e as ilustrações foram criadas em parceria entre a própria Marina Jerusalinsky e Lídia Ganhito, artista visual e designer gráfica.
Abaixo uma entrevista com Marina Jerusalinsky :
1. O “Juízo das Bravas” é um episódio pouco conhecido da história. Como você chegou a esse tema e o que mais a surpreendeu durante a pesquisa?
Escutei esse termo em um minicurso chamado “Redescobrindo 465 anos da cidade de São Paulo”, promovido pelo Instituto Bixiga, em janeiro de 2019. Decidi assistir a essas aulas por curiosidade, para conhecer melhor a cidade (sou de Porto Alegre e estava em São Paulo há pouco mais de um ano).
Acredito que existem palavras que nos atingem de um modo particular, que nos convocam subjetivamente, mobilizam nosso corpo e, muitas vezes, nos ferem, mesmo que não saibamos, de forma imediata, explicar por quê (na minha tese de doutorado, chamo elas de “palavras-punctum”, a partir do conceito de Roland Barthes). E foi assim com o “juízo das bravas”: a aula estava interessante, mas essas palavras não me despertaram o interesse, e sim o corpo mesmo, como se acabasse de receber uma alfinetada. Brava... um adjetivo que, no feminino, costumamos ouvir em tom de recriminação – uma palavra que já vi sendo arremessada em direção a mim –, não pousou, dessa vez, nesse significado pejorativo. Ficou vagando, por um bom tempo, até que decidi falar sobre ela, no meu projeto de doutorado em artes. Nessa pesquisa, então, falo de “mulheres bravas”, mas chegando a um entendimento muito claro: ser brava é ter coragem – coragem de sair das normas que tentam conter nossa potência e que nos são cotidianamente impostas.
O Juízo das Bravas foi um julgamento aconteceu em Portugal, pelo menos do século XIV ao XVIII, e se estendeu ao Brasil Colônia enquanto lei e valor moral. Ele existiu única e exclusivamente para castigar mulheres que falavam alto nas ruas, bradando, discutindo, ou proferindo palavras “impróprias”. Eram sempre mulheres pobres, porque naquele tempo eram as únicas a permanecer nos espaços públicos, por sua necessidade de trabalhar: como lavadeiras, nos rios, ou vendendo produtos alimentícios e artesanais. Outras trabalhadoras que ficavam nas ruas eram, claro, as prostitutas, mas em relação a elas havia uma legislação específica, cuja maior preocupação era que não ficassem muito à vista, e por isso deviam ocupar ruas e casas determinadas nos municípios.
O Juízo das Bravas foi conduzido, em determinados momentos, por representantes do rei ou administradores dos municípios, chamados de alcaides e almotacés. Mas um fato que me surpreendeu foi que, em Lisboa, pelo menos no século XVIII, a pessoa encarregada desse julgamento era uma mulher. Tão pobre quanto as julgadas, a “rendeira das bravas”, como a chamavam, recebia o “arremate” das multas, que eram arrecadadas, primeiro, para o município, e, em seguida, passaram a ser destinadas à Coroa. O inusitado cargo de juíza poderia até ser entendido como algo positivo, afinal, considerou-se, naquela época, que uma mulher seria capaz de exercer essa função. Mas não: no ofício que encerra a existência do juízo das bravas, em 1765, fica claro que ela era tida como alguém que, estando nas mesmas condições das julgadas, tinha-lhes ódio e estava interessada em sua desgraça. Então, a própria extinção desse julgamento foi proposta com base em valores misóginos.
Abaixo uma entrevista com Marina Jerusalinsky:
2. O livro apresenta como mecanismos de controle utilizados há séculos ainda ecoam hoje. Que paralelos mais evidentes você encontrou entre a perseguição às “mulheres bravas” e a forma como mulheres são silenciadas no presente?
O livro aborda, especialmente, dispositivos de silenciamento das mulheres ao longo da história que são baseados na palavra – leis, textos educativos e literários, ditados populares... –, e me interessa entender como eles foram conformando um imaginário e valores sobre “a mulher” (enquanto categoria abstrata). Ainda que com nuances diferentes, esses dispositivos reproduziram uma mesma ideia: as mulheres devem ser submissas aos homens (em particular aos homens brancos); logo, qualquer manifestação de indocilidade feminina deve ser condenada e punida, material ou simbolicamente.
A repetição dessa premissa, ao longo de séculos, logicamente levou à internalização subjetiva e ao arraigamento, na sociedade, dos mecanismos de controle que a acompanham – inclusive pelas próprias mulheres. E, apesar de muito ter se conquistado, especialmente no último século, em relação aos direitos das mulheres e à desconstrução de concepções machistas, não acredito que a sociedade caminhe em um sentido único, de avanço: existem movimentos cíclicos ou concomitantes, de progressos e retrocessos, especialmente no campo da cultura, mas também na legislação. Hoje em dia, inúmeras situações nos mostram que, socialmente, a mulher ideal ainda é a mulher dócil, que precisa se submeter ao desejo masculino, que não tem direito à revolta, nem a posições de poder, ou às vezes nem mesmo à fala. Quando rompemos com esse script, somos rapidamente julgadas e condenadas como malucas, histéricas, sensíveis demais, chatas, masculinas, bravas. O que dizemos é, com muita frequência, julgado menos importante do que nossa aparência. Isso fica bem evidente nos relatos das dezenas de mulheres portuguesas e brasileiras que participaram do projeto do “Guia de Conduta” sobre os chamamentos e expressões usados sobre elas que deixaram marcas. As 59 lições do livro foram escritas com base em suas experiências, buscando, com a ironia, fazer uma crítica aos estereótipos e opressões que essas palavras reproduzem.
3. As 59 “lições de conduta” combinam crítica e humor. Por que a ironia foi a escolha certa para enfrentar discursos misóginos e estereótipos de gênero?
Justamente porque a ironia abre espaço para essas duas instâncias: o incômodo e o riso; a crítica e o humor. Ela deixa lugar, inclusive, para a dúvida, o que demanda de quem lê algum tipo de reflexão. Marcela Scheid, que assina a 4ª capa do livro, escreve sobre isso: “O tom é de ironia, até porque é de fato irônico que a misoginia e o patriarcado sigam iguais até hoje – as roupas podem ter mudado um pouco, mas a finalidade é a mesma. E encarar essas palavras no teor do ridículo pode não curar anos de repressão, mas os ameniza.”
Também acredito que o humor crítico seja uma via de acesso a quem, em um primeiro momento, talvez não estivesse tão aberto a pensar sobre essas formas de opressão vividas pelas mulheres. É bem diferente do tom formal de um texto acadêmico, por exemplo, ou do tom de oposição de um manifesto (“se você não está de acordo com isso, está contra”), que, a meu ver, podem afastar mais rapidamente as pessoas que não se identificam com seus posicionamentos de maneira explícita. Também difere bastante do tom trágico de trabalhos que expõem relatos diretos de violências, que muitas vezes são difíceis de ler, porque ativam gatilhos ou porque são mesmo indigestos. E não estou dizendo que esses formatos sejam menos importantes, apenas que eles agem de maneiras distintas da literatura. A literatura, por sua forma singular de trabalho com a linguagem, é capaz de chegar (embora não chegue sempre, nem do mesmo modo para todo mundo) nesse outro lugar que tem a ver com as “palavras-punctum”, que mencionei: ela nos atinge e nos interroga de maneiras inexplicáveis, que podem nos levar a sensações e percepções surpreendentes, até mesmo contrárias àquilo que acreditamos ser.
4. Em “Para Brasileiras em Portugal”, você aborda o racismo e a xenofobia enfrentados por mulheres brasileiras. De que maneira essas vozes revelam o peso dos estereótipos coloniais ainda hoje?
O Prólogo do livro traz uma narrativa histórico-literária, dividida em três capítulos. O primeiro, “As bravas portuguesas - do século XIV ao XIX”, conta como o juízo das bravas esteve presente na legislação portuguesa ao longo do tempo e como a condenação da “braveza feminina” foi propagada em outros textos, que tiveram ampla circulação no país. O segundo, chamado “Ensinamentos à brasileira - do século XVI ao XX”, começa quando o Brasil se torna colônia, justamente porque a proposta é compreender como as concepções de nossos colonizadores sobre as mulheres foram sendo impostas e propagadas no Brasil. A preocupação imediata em relação às mulheres indígenas, nesse momento, não era com a braveza, e sim com os “pecados da carne”. Em seguida, o mesmo se delineou em relação a mulheres africanas escravizadas aqui. Jesuítas e governadores pediam ao rei que enviasse mais mulheres brancas ao território, mesmo que fossem órfãs ou “erradas”, para que os colonos tivessem com quem se casar dentro dos mandamentos da Igreja. Concomitantemente a isso, difundiam-se também ensinamentos que exigiam silêncio e docilidade às “boas” mulheres, através de livros que vinham de Portugal ou da União Ibérica (quando Portugal foi ocupada pela Espanha, entre 1580 e 1640). Apesar de pouquíssimas pessoas no Brasil serem alfabetizadas até o século XX – e, menos ainda, mulheres –, os preceitos e valores neles contidos eram reproduzidos em outras linguagens, como peças de teatro, pregações, imagens e ditados populares. E muitas eram as mulheres negras ou pobres que sofriam processos criminais por serem “turbulentas”, “bravas” ou “arruaceiras”.
Internacionalmente, o Brasil é visto estereotipicamente como um país negro, e a negritude, em função dos valores racistas enraizados no período colonial, é associada à promiscuidade e ao perigo, além de ser tratada como subalterna. Assim, o imaginário sobre a “mulher brasileira”, mesmo quando se trata de mulheres brancas, está ligado a essas características. Isso se manifesta explicitamente nos chamamentos e expressões usados sobre muitas de nós em Portugal, conforme me relataram as participantes do “Guia de Conduta” e eu mesma vivi, no período em que morei lá: “puta”, “má influência”, “rouba maridos”, “serve para cuidar”, “incompetente”, “esperta”. Espero que o livro possa contribuir, de algum modo, para desconstruir essas visões.
5. O livro combina pesquisa acadêmica e relatos pessoais. Como essa mistura de linguagens contribui para transformar uma tese acadêmica em um manifesto feminista acessível e provocador?
Não entendo o livro como um manifesto, justamente pelo que pontuei acima sobre a linguagem literária. Mas sim, acredito que a incorporação de situações vividas por mulheres reais no texto, mesmo que transformadas em “lições de conduta”, traz uma grande possibilidade de identificação, para quem lê, com essas experiências, sejam mulheres ou pessoas de outros gêneros. Meu livro anterior, “Adjetivo Feminino”, publicado pela editora Bebel Books em 2022, também partiu de relatos de mulheres sobre adjetivações ligadas ao seu gênero, mas foi uma proposta realizada no Brasil e materializada como um dicionário, que expõe, com ironia, os preconceitos e contradições dessas palavras em 59 verbetes. Conto isso para dizer que, ao lançar essa publicação, recebi comentários de alguns homens dizendo que tinham se identificado com o texto, mas pela via do opressor, e que se sentiram constrangidos. Então, assim como este, “Guia de Conduta para Mulheres Bravas” não é um livro só para mulheres: os homens têm muito a aprender com suas lições.
AGENDA Lançamento do livro “Guia de conduta para mulheres bravas” (editora orlando) Autora: Marina Jerusalinsky Data: 12 de setembro de 2025 (sexta-feira) Horário: 19h30 Local: Bananal Arte Endereço: Rua Lavradio, 237 – Barra Funda, São Paulo (SP)ATIVIDADES Bate-papo com a autora Marina Jerusalinsky Participação de Lídia Ganhito (co-criadora do projeto gráfico) Mediação de Marcela Güther (jornalista da editora orlando) Sessão de autógrafos Entrada gratuita
Compre o livro: clica aqui
Marina Jerusalinsky é artista visual, pesquisadora e escritora. Doutora em Artes pela Universidade de São Paulo, Mestra em Artes pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e graduada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, trabalha com a palavra de modo transdisciplinar há mais de dez anos, em projetos de arte participativa, livros de artista e leitura crítica e revisão de textos. Também é autora do livro "Adjetivo Feminino: Dicionário de Experiências" (Bebel Books, 2022).
Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo”. Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.
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