por Taciana Oliveira |
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Foto: Carolina Chediak |
No romance Consigo inventar tudo (Diadorim, 2025), Julia Barandier parte de uma herança familiar marcada pela figura de Claude Barandier, pintor francês do século XIX que se estabeleceu no Brasil, para construir uma narrativa que vai além da autoficção. A autora, descendente do artista, se afasta das convenções memorialísticas e elabora uma ficção densa e sombria, na qual as lacunas da história se tornam matéria-prima para a invenção literária. A narrativa é conduzida por duas vozes que se entrelaçam: de um lado, o drama de Claude e de sua filha Louise, órfã de mãe e imersa em sentimentos ambíguos de amor e ressentimento em relação ao pai; de outro, a investigação contemporânea de uma pesquisadora que revisita a vida e a obra do pintor enquanto enfrenta pressões pessoais e acadêmicas. Esse jogo entre tempos distintos e perspectivas fragmentadas produz uma atmosfera de inquietação, marcada pelo silêncio, pela dúvida e pelo confronto entre memória e ficção.
O seu autorretrato chegou para mim em forma de ataque. Um Claude jovem, magricela, de olhos claros, cabelo e bigode ruivos. O penteado bem repartido ao meio, os olhos enormes e quase assustados, feição delicada. Se tivessem me dado a opção de não olhar... Queria tentar criar um rosto para você a partir da sua obra, dos seus gestos, da sua paleta de cores. O autorretrato parece uma mentira. Ainda não consegui achar exatamente onde ele está, mas sei que pertence a uma coleção privada. Você é uma fábula que minha família alimenta. Mas ali está o sobrenome e os registros e Ajax. Ajax é a prova de que você pressentia a minha chegada. Ajax é o meu quadro, foi pintado para mim. Essa é a maior certeza que tenho, enquanto todo o resto das minhas memórias e dos meus objetivos vivem em transformações agressivas.
Trecho do livro (página 11)
Flertando com a literatura gótica, evocando ecos de Mary Shelley, Emily Brontë, Oscar Wilde e Charles Dickens, a narrativa transita entre o devaneio e a pesquisa, a tragédia familiar e a reflexão sobre a própria produção do conhecimento. Personagens solitários e obsessivos ganham corpo em um enredo que mescla lirismo, crueldade e sombras, explorando as fronteiras da imaginação e do arquivo. A prosa, sofisticada e de múltiplas camadas — como destacou Paulo Henriques Britto na orelha do livro —, revela uma autora que encara a literatura como campo de risco e desafio. Ao recusar soluções fáceis ou reconciliações, Julia Barandier expõe os fantasmas que atravessam tanto a história de sua linhagem quanto as tensões universais entre pais e filhos, entre saber e invenção.
O abandono pressupõe um agente. Mas ele é também uma forma de vida, que ganha ainda mais intensidade quando não se localiza a fonte. Fui abandonada. Sou abandonada. Não importa por quem. Não necessariamente tem um alguém. Talvez o meu abandono seja na verdade o acúmulo das vezes que eu mesma abandonei os outros, ou as coisas que me faziam mal, que são as que mais fazem falta. Eu sei precisamente quais faces pintaria, quais amigos invocar.
Trecho do livro (página 24)
Autora articula
erudição e sensibilidade, mesclando referências à mitologia grega e à arte
sacra com o registro íntimo da experiência humana. Esse movimento de expansão
simbólica dá ao romance uma densidade que atravessa as fronteiras da narrativa
familiar, projetando-se como uma análise sobre memória, esquecimento e as
formas de lidar com a ausência. A cada página, o livro reafirma que a
literatura pode ser tanto um exercício de escavação histórica quanto um ato de
invenção poética.
Consigo inventar tudo é, assim, um romance também sobre os limites da palavra. Uma obra que não busca preencher o silêncio com certezas, mas intensificá-lo com perguntas e nesse movimento, se firma como um espaço de estranhamento, vertigem e resistência. Mais do que revisitar a biografia de um antepassado, a autora propõe uma reflexão a própria construção da verdade. O resultado é um romance sofisticado, de múltiplas camadas, que desafia o leitor a lidar com a incerteza e a imaginar o que não está dito.
Abaixo segue uma
entrevista com a autora:
1. Seu
romance parte da figura histórica de Claude Barandier, mas se afasta da
autoficção familiar para criar uma narrativa sombria e inventada. O que a
motivou a preencher as lacunas da história com ficção em vez de se ater ao
registro documental?
Alguns
pesquisadores já tentaram reconstruir a vida de Claude a partir de documentos.
Esse nunca foi o meu interesse. A forma que encontrei de me aproximar do
Claude, a única que fazia sentido para mim, foi através da ficção. Sinto que
trabalhar com documentos de família é sempre mais difícil do que trabalhar com
documentos de quem a gente não conhece. Por isso optei pela ficção ao extremo,
me desapegando dos documentos e me atendo mais aos marcos principais da vida do
Claude. Só quando perdi todas as amarras e me vi livre para preencher as
lacunas da minha forma que a história começou a ganhar o interesse dos meus
primeiros leitores. Eu sempre quis fazer um livro de ficção.
2. Você
menciona que o processo de escrita foi árduo e que chegou a sentir-se tomada
pela obsessão de sua protagonista. Como esse mergulho na atmosfera gótica
impactou sua vida pessoal durante a criação do livro?
Como eu só
andava lendo os góticos e me via sozinha por dias focada na história, fui um
pouco tomada pela atmosfera que estava tentando criar. Eu sonhava com o livro,
acordava e lia Drácula ou Jane Eyre, e voltava a escrever. Durante esse
período, fiquei muito introspectiva e alguns amigos notaram a mudança. Quando
entreguei a primeira versão para a editora, acho que um peso saiu de mim. Eu
sentia também que estava cutucando muito o fantasma do Claude. Pensava que ele
não devia estar muito contente comigo. E quanto mais escrevia, mais sentia que
a Luísa estava entrando em mim. Foi um período meio duro, pesado. Eu queria
terminar o livro para me livrar dos personagens.
3. A relação
entre Claude e Louise, marcada por silêncios, ressentimento e admiração, é um
dos eixos da trama. Como foi construir esse vínculo ambíguo, e de que forma ele
dialoga com as tensões familiares universais?
A Louise foi uma
das personagens mais divertidas de escrever e acho que muitas vezes ela rouba a
cena do Claude. Enquanto ele é contido, sério, metódico, ela é o extremo
oposto. É uma personagem que provoca, que é cheia de paixões, raiva, ciúme, e
que age sem pensar. Eu queria que as personagens femininas da história de
Claude, tão apagadas na vida real, ganhassem vida no meu livro. E a história de
um homem daquela época criando uma filha sozinho me instigou muito. Ao
contrário de uma relação doce e apaziguada, eu queria uma filha rebelde, que
pode ser lida também como uma projeção e um reflexo da própria Luísa. Louise se
indispõe com o pai assim como a narradora se indispõe com seu objeto de
pesquisa.
Louise é mais
uma mulher entre tantas que precisa provocar o pai para ser vista, para se
sentir amada, para receber atenção.
4. A segunda
camada narrativa acompanha uma pesquisadora contemporânea pressionada por sua
mãe e pelos dilemas acadêmicos. Em que medida essa voz atual ecoa suas próprias
inquietações sobre a pesquisa, a verdade histórica e o peso das expectativas
familiares?
Acredito que
todo mundo que trabalha com pesquisa lida com momentos de insegurança, dúvidas
diante do objeto e às vezes a sensação de ser um pouco impostor. Além, claro,
da obsessão pelo objeto. É muito difícil fazer pesquisa sem um pouco de
obsessão. Eu queria explorar esses sentimentos e levá-los a uma potência quase
doentia mesmo, trabalhar no limiar entre o que ainda é pesquisa e o que já é
loucura. Esbarro com a minha personagem nessas emoções, mas claro que em um
nível bem mais saudável. Enquanto estava escrevendo, duas amigas minhas
pesquisadoras leram partes do livro e me disseram que choraram e levaram
trechos para debater com suas psicólogas. Acho que consegui criar algo na Luísa
que é familiar para quem lida com o universo acadêmico. Em relação à verdade
histórica, esse livro é uma crítica às grandes verdades prontas que a gente
herda e nem sempre contesta. Eu queria contestar. Sobre o peso das expectativas
familiares, a ficção, para mim, é o lugar onde as expectativas dos outros não
importam. É o meu jogo. E joga quem quer.
5. O romance se abre a referências que vão da
mitologia grega à literatura gótica do século XIX. Como essas influências
moldaram o tom da obra e ajudaram a costurar passado, presente e imaginário em
uma só narrativa?
A literatura
gótica me ajudou a criar a atmosfera, as imagens, o tom sombrio do livro. E ela
entra um pouco em choque com o interesse da protagonista por mitologia grega.
De alguma forma, as referências convivem no livro, talvez pelas gregas
aparecerem mais nas partes do presente e as góticas do passado. O que esses
dois mundos (o vitoriano e o grego) têm em comum no livro é o recorte pelas
histórias trágicas. O suicídio de Ajax e a figura triste de Jane Eyre dão
suporte aos meus personagens desequilibrados, sempre flertando com a loucura.
Luísa tem um pouco de Cassandra e um pouco de Bertha. As mulheres loucas
habitam as histórias gregas e as vitorianas em peso, assim como histórias
familiares brutais. As referências que aparecem no livro mostram também o
próprio arcabouço teórico da personagem e dão pistas do que é inventado, dos
gestos dela na pesquisa. Elas explicam um pouco a forma como Luísa decide contar
a história de Claude e como ela mesma amarra presente e passado.
Eventos de lançamento:São Paulo
24/09 | quarta-feira | 19h | Livraria da Tarde (R. Cônego Eugênio Leite, 956 — Pinheiros)
Conversa com o escritor Jeferson Tenório e sessão de autógrafos.
Ficha Técnica:
Título: Consigo inventar tudo
Autor: Julia Barandier
Gênero: Romance
Editora: Diadorim
Impresso: R$ 75,00
Número de páginas: 94
Data de lançamento: agosto de 2025
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Foto: Rodrigo Portugal |
Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo”. Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.
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