por Taciana Oliveira |
O escritor recifense Rafael Godoy estreia no cenário literário com Bichos Cegos Tateiam Feridas (Mondru, 62 págs.), coletânea de 20 contos dividida em três partes:Os bichos, A cegueira e As feridas. Na contracapa, o escritor Marcelino Freire assina um texto em que reconhece em Godoy um “cúmplice de ofício”, capaz de transformar a brutalidade cotidiana em literatura. “Eis um autor parceiro do meu trabalho. Um cúmplice de ofício. Sempre ligado ao que acontece na rua. De olho em tantos olhos mortos de fome. O pão que o Diabo amassou é o que mais se come”, escreve.
Entre abandono,
desejo, violência e sobrevivência, as narrativas exploram a proximidade entre
homem e bicho. A oralidade sustenta a voz das histórias, que oscilam entre
sarcasmo e carnificina, revelando a crueza de uma realidade em que “maltratar,
pisar, ignorar, tratar como bicho, só vai fazer com que mais ódio cresça, se
espalhe e acabe matando a gente de ignorância”, como define o próprio autor.
Os contos
transitam entre narradores em primeira e terceira pessoa e, mesmo diante da
brutalidade, carregam cadência poética, imprimindo lirismo a situações de dor,
desamparo e resistência. Sem suavizar a miséria, Godoy aposta em uma escrita
direta e desobediente, que recusa a lógica da piedade ou da redenção para
lançar o leitor no centro daquilo que é inescapável: o barro, o corpo, o
sangue.
Abaixo segue
uma entrevista com o autor:
1. Seu livro
apresenta personagens que transitam entre homem e bicho, entre desejo e
violência. O que te levou a explorar essa fronteira tão intensa e, ao mesmo
tempo, tão frágil?
Acredito que
essa dualidade faz parte do nosso cotidiano. Em um Brasil marcado por
precarização do trabalho, fome, gente sem um teto pra viver, não tem como
enxergar de outra forma. A meu ver, não existe violência pior que a exclusão. E
dentro do abismo, no cerne da desesperança, os sentimentos afloram, a carne
fica mais viva e o raciocínio cada vez mais distante. É aí que o revés toma
conta, que a violência sofrida vira algum tipo de reação, seja na agressividade
de uns ou na passividade de outros, que também pode ser fatal. Ceder ao
instinto é o que nos torna mais próximos dessa animalização, então levei alguns
dos meus personagens ao extremo pra descobrir em mim algum tipo de empatia ou
de repulsa, pra que eles falassem pelo que eu pensei ao me imaginar nessas
situações.
2. A
oralidade aparece como marca forte nos contos. Como esse recurso molda a sua
escrita e a relação do leitor com as histórias?
Recentemente
voltamos com esse debate do que é ou não literatura. Pra mim, essa conversa,
além de excludente, acaba por minar nosso sentido criativo. Acredito que
ninguém escreva pensando nisso. Minhas maiores influências estão fora do que se
entende institucionalmente por literatura, por exemplo. Sim, eu tive e tenho
muitos autores e autoras como influência, que acabei roubando uma coisa ou
outra, aprendendo o ofício da palavra escrita. Mas a minha fonte primária, o
que dá liga entre a ideia e a coisa escrita, vem das conversas que acabo
pescando na rua, da gritaria dos vizinhos, das histórias que o meu pai contava,
dos noticiários. Filtro as informações, invento, mas deixo soar também. Deixo o
ritmo tomar conta do personagem, do enredo e da cabeça do leitor. É literatura
e é atividade sonora também, essa oralidade. Além disso, é uma forma de me
manter fiel ao que penso, ao que sou e ao lugar que pertenço. Assim convido o
leitor a captar esses elementos, se confundir um pouquinho, se encontrar e ser
tocado por isso.
3. Ao recusar
embelezar a miséria, você opta por uma escrita direta, quase ferina. Que riscos
e que potências existem nessa escolha de linguagem?
Acredito que os riscos são os de sempre pra quem decide tocar em algumas feridas e fazer isso de forma mais crua. Como ser estigmatizado, cair no ódio de defensores da literatura rebuscada e pomposa, ou ser confundido com os personagens. Pode ser que tenha mais alguns, mas quando decidi publicar, pensei mais nesses. O interessante é que isso não me travou, não me deixou com medo do revés. Eu me considero um cabra frouxo, mas quando é pra defender o que penso e o que quero fazer, é onde isso morre. E isso conversa com as potências que enxergo. Meus personagens têm tudo, até medo, mas não se rendem a ele. Vão direto, entendem que sofrimento não dá curva, e que a reação tem que seguir a mesma lógica. Marcelino, no texto sobre o livro, fala que literatura nunca foi terreno de boa intenção. Então que as mágoas, que os socos e que os desejos sejam derramados pela faca afiada da linguagem sobre essa terra arrasada. Vai que nasce alguma coisa daí.
4. Os contos
de Bichos Cegos carregam brutalidade, mas também lirismo. Como você encontra
esse equilíbrio entre a crueza e a poesia?
Depende do que se entende como poesia. E isso vai além das teorias, das quais não me interesso muito. Pra mim, poesia não é o que é bonito, mas o que comove. Sofrer é feio demais, deixa qualquer um em estado de abandono. De si, dos outros, de tudo aquilo que se sente ou deixa de sentir. Mas quando se olha o sofrimento mais de perto, quando encara mesmo, ele comove. E foi isso que fiz, criei os extremos de cada enredo e levei os personagens pras lentes dos outros. Ser direto, mas ser próximo, sem fazer com que a minha voz, enquanto o escritor por trás do texto, ficasse julgando demais o que acontece ali. Então acho que o lirismo cresce na mesma direção do que é cru, do que esmaga pra expor o íntimo, como quem pisa nas uvas pra fazer o vinho.
5. A
coletânea fala de sobrevivência em um contexto de desigualdade e exclusão. Que
diálogo você espera que a obra estabeleça com o leitor em um país marcado por
tantas feridas sociais?
Além da escrita
em si ter sido um processo de reencontro com tudo aquilo que sempre lutei
contra, num momento em que me sentia disperso quanto a esses problemas, é um
reconhecimento de que às vezes a gente dorme diante dos fatos… e que isso sirva
de alguma forma pra que a gente dê uma acordada. Claro, todo mundo tem muita
coisa pra lidar na vida, tem conta pra pagar, trabalho, relações, lazer, tudo
isso. E eu carrego uma dualidade de pensamento ao achar que literatura é um bom
ponto de fuga, pra relaxar numa leitura mesmo; por outro lado, defendo com os
dentes que a literatura precisa ser crítica, ácida, provocativa até. Tenho
ficado mais com o segundo ponto. Mas não tenho pensado tanto na necessidade de
estabelecer um diálogo, isso é natural na relação entre o livro e o leitor. Tem
gente que vai achar uma depravação e tem gente que vai achar uma crítica mordaz
ao capital. O engraçado é que os dois lados estão certos, além de várias outras
formas de se encarar a obra. E o que a gente faz com isso?
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Trecho (pág. 57)
“Fiquei alguns anos pela casa, perambulando, mexendo nas gavetas, procurando rumo dentro da bolha. Quando pegou fogo, eu soube por um vizinho que me ligou. Corre, o fogo tá comendo tudo, tua casa agora é só cinza. Entrei contrariando os bombeiros, procurei a carta no meio do inferno e a achei no canto do que era uma estante com fotos antigas. Li uma última vez, a centésima trigésima terceira, e só então minha mãe tinha morrido, meu pai tinha sumido, e eu nem conheci esse fodido.”
Rafael Cabral Godoy, 29 anos, nasceu em Recife (PE), cresceu entre a capital e Camaragibe e vive atualmente no Recife. É formado em História pela Universidade de Pernambuco (2016–2021), período em que atuou como professor na zona da mata pelo Programa de Residência Pedagógica. Em 2023 concluiu a graduação em Design Gráfico. Em 2024, co-fundou com a esposa e sócia, Rafaela Maria, o Estúdio PUYA!, onde atua como diretor de arte.
Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo”. Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.



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