por Ariel Montes Lima |
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RESUMO: O presente artigo analisa o soneto Se ausente da alma estou, que me dá a vida, da poetisa barroca portuguesa Soror Violante do Céu, enfatizando seus aspectos formais, estilísticos e temáticos. Do ponto de vista estrutural, evidencia-se a rigorosa composição petrarquista, com versos decassílabos e rimas bem construídas, que conferem musicalidade e equilíbrio ao poema. Estilisticamente, a obra se caracteriza pelo uso de antíteses, paradoxos, conceptismo e hipérbatos, recursos típicos da estética barroca que intensificam a tensão existencial presente nos versos. No plano temático, destaca-se o amor como princípio vital, cuja ausência equivale à morte interior, estabelecendo uma dialética entre vida e morte, presença e ausência. A figura de Silvano, além de representar o amado humano, pode ser lida como metáfora do divino, reforçando a dimensão espiritual e teológica da poesia conventual seiscentista. Conclui-se que o soneto é exemplar da lírica barroca portuguesa, unindo pathos amoroso e reflexão filosófico-teológica, ao transformar a dor da ausência tanto em lamento terreno quanto em metáfora da separação da alma de Deus
PALAVRAS-CHAVE: Barroco. Poesia Feminina. Soneto.
1.INTRODUÇÃO
O propósito deste artigo é analisar o poema Se ausente da alma estou, que me dá a vida da poetisa portuguesa Violante do Céu (Lisboa, 30 de maio de 1601 ou 1607–28 de janeiro de 1693) (Cf. Barros, 1924). Para tanto, me valho da análise estrutural da obra em associação com o estudo das temáticas então abordadas em face ao contexto estético vigente — é dizer: o Barroco Português-.
Ademais, ratifico meu interesse pelo estudo da poética de autoria feminina, recuperando o debate levantado por Cândido (2023) a respeito da relevância da crítica literária capaz de articular forma e conteúdo. É dizer: me interessa pôr em voga as questões presentes no plano técnico e temático desta autora com fins a expandir o âmbito a respeito da materialidade do que chama-se poesia feminina tanto como fim (posto que o conhecimento da obra de semelhante poetisa já é relevante por si mesma) como com finalidade de chamar a atenção para sua existência e, assim, insuflar o debate.
2.DESENVOLVIMENTO
Nesta seção, me detenho sobre o estudo do texto e suas particularidades. A seguir, o reproduzo, optando pela ausência de influências exógenas como contagem de versos:
Se Ausente da Alma Estou, que me Dá Vida?
Se apartada do corpo a doce vida,
Domina em seu lugar a dura morte,
De que nasce tardar-me tanto a morte
Se ausente da alma estou, que me dá vida?
Não quero sem Silvano já ter vida,
Pois tudo sem Silvano é viva morte,
Já que se foi Silvano, venha a morte,
Perca-se por Silvano a minha vida.
Ah! suspirado ausente, se esta morte
Não te obriga querer vir dar-me vida,
Como não ma vem dar a mesma morte?
Mas se na alma consiste a própria vida,
Bem sei que se me tarda tanto a morte,
Que é porque sinta a morte de tal vida.
2.1ESTRUTURA FORMAL
O poema apresenta-se na forma de um soneto clássico, composto por 14 versos decassílabos, organizados em dois quartetos e dois tercetos. Sobre a forma do texto,
é relevante considerar também que esse gênero poético já surge com fundamento de fixidez formal pela força histórica da ideologia formativa dos gêneros literários. Tanto a Poética medieval quanto a Poética renascentista, logo, também aquela de trânsito de quando o soneto se refina, a do Humanismo, emulavam fundamentos da antiga Poética grecorromana (Buarque, 2016, p.49).
O esquema de rimas segue o modelo petrarquista, caracterizado pela presença de rimas emparelhadas nos quartetos e variações específicas nos tercetos, conferindo musicalidade e equilíbrio estrutural ao texto. Em face de tal estilo, diz Borralho (2,13, p.14) que “a alternância do ritmo quaternário e ternário em cada estrofe não deixará de favorecer a argumentação tópica, se continuarmos a ser sensíveis ao ritmo enquanto respiração do pensamento.”
Com relação à métrica utilizada, trata-se do metro decassílabo heroico, o que garante ao soneto uma cadência solene e harmoniosa. Além disso, a obra faz uso de diversos recursos técnicos, entre os quais se destaca a repetição de palavras-chave como vida, morte, alma e Silvano. Essa técnica cria paralelismos expressivos, como nas conjecturações propostas nos v. 01 e 04 (com repetição da conjunção se), o que reforça o campo semântico do poema e intensifica a dramaticidade e a carga simbólica dos versos.
2.2ASPECTOS ESTILÍSTICOS
O poema apresenta como recurso expressivo fundamental a antítese central entre vida e morte, presença e ausência, alma e corpo. Essa oposição, característica da poética barroca (Cf. Coutinho, 1994), intensifica a tensão existencial e amorosa que percorre os versos. Fora isso, o texto trabalha com o paradoxo, uma vez que viver sem o amado equivale a morrer, embora, ao mesmo tempo, morrer possa ser a única forma de reencontrar a vida verdadeira.
Outro elemento marcante é o conceptismo, que se manifesta por meio de um raciocínio lógico, quase silogístico, estruturado em torno da impossibilidade da existência sem o amado (Silvano). O poema, assim, se constrói como um argumento em camadas, aprofundando as consequências da ausência. A repetição e as anáforas reforçam esse tom meditativo e obsessivo, sobretudo pela constante retomada dos termos vida e morte, e d próprio nome de Silvano. Por fim, o uso de hipérbatos, ou inversões sintáticas confere solenidade à linguagem e realça os termos centrais da reflexão poética, além de complexificar o jogo conceptista de vida versus morte.
2.3 ANÁLISE TEMÁTICA
O poema apresenta o amor como princípio vital, uma vez que a vida da poetisa está intrinsecamente ligada à figura de Silvano. Sua ausência não apenas provoca tristeza, mas também anula a própria existência. Nesse sentido, a morte aparece como presença antecipada, pois, sem o amado, ela já se instala de forma simbólica, como na expressão “tudo sem Silvano é viva morte”, de modo que viver sem amor equivale a experimentar um morrer adiado, uma existência postergada à qual não se pode chamar propriamente vida.
A obra ainda evidencia a dependência da alma, ao sugerir que a verdadeira vida não é apenas biológica, mas espiritual e afetiva. Quando a alma se separa do afeto, instaura-se inevitavelmente a morte interior. Além disso, o texto dialoga com a tradição do amor cortês e sacralizado-nos termos de Ferreira (2002)-, pois, embora aborde uma paixão humana, sua estrutura lírica permite também uma leitura espiritual. Nessa perspectiva, Silvano pode ser interpretado como metáfora do divino, em que a ausência de Deus equivale à morte da alma.
Por fim, destaca-se a dialética barroca, marcada pela oscilação constante entre vida e morte, ausência e presença. Essa alternância simboliza a instabilidade da condição humana e revela a busca por transcendência, um dos núcleos temáticos mais característicos da literatura seiscentista.
3.CONCLUSÃO
O soneto de Soror Violante do Céu é um exemplo paradigmático da poesia barroca portuguesa. Em termos formais, mostra-se tecnicamente rigoroso, obedecendo ao modelo petrarquista, com versos decassílabos e rimas cuidadosamente construídas. No plano estilístico, a obra revela-se rica em antíteses e paradoxos, recursos característicos do Barroco que expressam de forma intensa a tensão existencial presente no texto.
Do ponto de vista temático, o poema centra-se no amor absoluto, que pode ser lido tanto em sua dimensão humana quanto em sua dimensão divina. Esse amor é apresentado como o princípio vital da existência: sua presença confere sentido à vida, enquanto sua ausência equivale à própria morte. Nesse processo, a poetisa consegue unir o pathos amoroso à reflexão filosófico-teológica, elaborando uma lírica em que a dor da ausência se torna, ao mesmo tempo, um lamento terreno e uma metáfora da separação da alma de Deus, ampliando assim o alcance e a profundidade de sua poesia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, Theresa Leitão de. Escritoras de Portugal. Génio feminino revelado na Literatura Portuguesa, Lisboa, 2 vols., Typographia de Antonio B. Antunes, 1924, volume I.
BORRALHO, Maria Luísa Malato. Metamorfoses do soneto: do Classicismo ao Romantismo. Entre Classicismo e Romantismo: Ensaios de Cultura e Literatura, 2013.
BUARQUE, Jamesson. Soneto como variação fixa formal. Texto Poético, [S. l.], v. 11, n. 19, p. 41–72, 2016. DOI: 10.25094/rtp.2015n19a324. Disponível em: https://textopoetico.emnuvens.com.br/rtp/article/view/324. Acesso em: 7 set. 2025.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Todavia, 2023.
COUTINHO, Afrânio. Do Barroco. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Tempo Brasileiro, 1994.
FERREIRA, Nadiá Paulo. Os milagres do amor na poesia barroca. Revista Eletrônica do Instituto de Humanidades, 2002.
Ariel Montes Lima é pessoa non-binary, psicanalista e professora. Autora dos livros Poemas de Ariel (TAUP, 2022), Sínteses: Entre o Poético e o Filosófico (Worges Ed., 2022), Ensaios Sobre o Relativismo Linguístico (Arche, 2022), Poemas da Arcádia (Caravana, 2023), Silêncios: Duros Silêncios (Worges, 2024) e O Inominado ou A Descoberta do Mundo (TAUP, 2024).
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