Sumiços | Luiz Henrique Gurgel

 


Sumiços

Com tantos acontecimentos nefastos pelo mundo, o casal resolveu fugir. Fugir para as montanhas, dar um tempo. Pelo menos alguns dias de trégua. Como numa antiga canção, jamais deixaram de ver arco-íris no céu, nem toda fome na terra. É preciso escapar do mundo de vez em quando, fazer amor pelos sete mares. Ou por sete montanhas, neste caso. Assim se assucedeu.


Refugiados numa casinha de roça, recostados certa noite à mesa depois do jantar, respiravam tranquilidade. A mulher começou a ler um conto em voz alta, história de um sujeito que salva uma borboleta azul de se afogar na correnteza da cachoeira. O salva-vidas presumia que por isso, ela, a borboleta, teria se apaixonado por ele. História estranha de um obscuro livro de capa vermelha.


No silêncio do lugar distante, a leitura seguia lenta, pausada por goles de vinho e pelo causo insólito.


Pausa repentina, a mulher silenciou de súbito. Entre pratos vazios e taças pela metade, uma pequena mariposa marrom, feiosa, começou a circular pelos objetos até se concentrar na cabeça do homem. Indecisa, pousava na testa, num braço, noutro braço e, ao cabo, assentou no livro vermelho nas mãos da mulher. Ficou lá batendo as asas bem devagar, como se a dizer: “continue!”. O homem achou que ela olhava para ele.


Sem mexer na página para não incomodar a pequenina bruxa, a mulher terminou a leitura. Depois ficaram imóveis contemplando a mariposa, que voou para a taça de vinho, subindo em passo de borboleta até a borda, onde havia uma gota da bebida. Ficou lá, tremelicando, devia ser muito para ela. Saiu em voo ainda mais tortuoso, tinha sorvido toda a gota roxa. Foi alertada pela mulher, que era poeta: "Daqui a pouco estarás bêbada...".


O homem não era místico, mas lembrou da tia-avó, mãe de santo, que havia sumido na juventude e tempos depois de descoberta na miséria, fora mantida escondida pela família numa casinha de subúrbio. Ele a conheceu velhinha. Criança, achava lindo imaginar que ela tinha sido uma mariposa, como ouvia os tios dizerem à boca pequena. Num dia de visita, sentado no colo dela, teve coragem de perguntar se era verdade. A velhinha riu mostrando as gengivas, surpresa e contente com a pergunta.


Sim, a vovó foi mariposa e riu de novo. Você sabia que mariposa dá sorte? Quando aparecer uma pra você, é que o anjo da guarda mandou, sinal que boas notícias estão chegando. Pode ser também mensagem de alguém que foi pro céu e queira falar com você. Ou então é beija-flor, sinal de amor...


O homem lembrou disso numa franja de memória. Naquela noite, além da tia-avó, a única falecida que poderia vir fazer visita seria a borboleta azul do conto. Faz sentido, borboleta deve poder reencarnar como mariposa.


Com os olhos seguindo o percurso de voo incerto, a mulher poeta sugeriu:

vem, então

encosta-se à mesa

toma à boca

a taça

e recompõe o voo


Não se sabe se a gota de vinho é que fora demais, talvez o convite. O casal nem tinha bebido tanto quando a pequena mariposa, capenga, cruzou a soleira da porta e sumiu na escuridão. Não demorou e a poeta voou atrás.




Luiz Henrique Gurgel é jornalista, professor e pesquisador. Mestre em Literatura Brasileira pela USP, é autor do livro de contos “amores malfadados” (Ed. Primata, 2020) e “Porque era ele, porque era eu e outras quase histórias” (Caravana Editorial, 2023).