Em nome do Pai: o espaço doméstico como dispositivo de poder e controle

 por Lisa Alves |



Em nome do Pai: o espaço doméstico como dispositivo de poder e controle

 

Em nome do Pai (Trilogia Infamiliar), de Márcia Barbieri convoca o leitor a atravessar os umbrais de uma casa que se recusa ao abrigo: sua arquitetura não acolhe, antes disciplina, vigia, fere. A obra articula, com rara potência, ficção e crítica visceral ao tripé que sustenta o Ocidente: Deus, Estado e Família.

Ler este romance é percorrer uma genealogia onde a casa não se configura como lar, mas como um claustro, um panóptico de afetos deteriorados. A casa é o espaço limite, onde o corpo, como bem intuiu Foucault, se transforma em superfície de inscrição dos discursos e das punições, em campo de operações para a moral disciplinadora. Lembrei também do ratinho de Kafka, na Pequena Fábula, que percebe, tarde demais, que o mundo vai se estreitando a cada dia até que, por fim, não resta mais do que o espaço para o golpe fatal. As personagens de Em nome do Pai são lançadas à estreiteza da casa-família, encurraladas no aparelho que, sob a aparência de proteção, as disciplina e devora.

Não há lar, apenas grades invisíveis. Don Silvério, o patriarca, não é um homem apenas, mas uma função, um relógio avariado, um código frio que opera sem afeto, determinando ritmos e interrupções, impondo a violência como liturgia doméstica. Ele é o tempo que não passa e, simultaneamente, o carrasco que executa a pena. Não há misericórdia: o Pai é menos um sujeito e mais uma engrenagem, onde se inscrevem as leis do sangue, da propriedade e do desejo interditado. 

Márcia Barbieri, como Dostoiévski antes dela, compreende a função do Pai como o verdugo original, aquele que inaugura o ciclo do castigo, da dívida e da culpa. Mas aqui, essa figura é desmontada até restar sua ossatura simbólica: o órgão fálico esvaziado, a função alimentadora falida, o corpo obsoleto que insiste em regular, com seus ponteiros frouxos, o tempo das filhas que não param de nascer e morrer dentro da mesma casa, da mesma máquina.

O ambiente doméstico é apresentado como metáfora radical da colonização dos afetos. A casa não protege: disciplina. É a escola de submissão onde se aprendem as técnicas de silenciamento, a vocação para o serviço, o consumo compulsório de sofrimento. A maternidade, sob a figura exausta de Almå, não é fonte de afeto, mas engrenagem emperrada da máquina biológica, corpo reprodutor que se repete em série, que alimenta mas também asfixia.

A autora revira a linguagem como quem esgarça o próprio tecido da carne. O corpo fêmeo surge como engrenagem, bicho, detrito: é o campo onde o poder instala suas experiências, onde Estado e Igreja consagram sua liturgia disciplinadora. Aqui, o corpo não deseja: serve, cala, pare. O seio que alimenta é o mesmo que projeta sombra sufocante, que imprime culpa nos rostos lactentes.

O romance é mais que denúncia; é dissecação. Exibe, sem véus, a falência da promessa redentora do amor familiar. Não há figura poupada. Mães que odeiam, filhas que desejam a morte das mães, irmãs que se devoram, pais que violentam e consomem. Como em Dostoiévski, se há amor, ele é dialético, atravessado pela certeza de que carrega, em sua seiva, o germe do ódio.

Ao nomear a obra como “Trilogia Infamiliar”, Barbieri inaugura um território outro, um espaço onde o familiar se converte em infamiliar, espectro, assombro que ronda as paredes da casa, como um rumor de algo que se perdeu antes mesmo de ter nome. A genealogia familiar não é mais que uma cadeia de transmissão de doenças, culpas, traumas e silêncios.

A função do Pai, que Lacan concebe como interditor do gozo e instituidor da Lei, aqui é pervertida: o Pai é aquele que goza, que viola, que destrói. A Lei não delimita: prolonga o crime.

Deus não escapa ileso desse espólio: confunde-se ao Pai, mas é um Deus ausente, que exige sacrifício, impõe penitência, mas jamais redime. A maternidade, por sua vez, se degrada à pura animalidade: máquina reprodutora desprovida de subjetividade, cuja carne já nasceu condenada a ser engolida.

Na interseção dessas forças (Deus, Estado, Família e Igreja) jaz o corpo feminino, colonizado para reproduzir o sistema que o oprime. O romance se estrutura como um relógio de corda, a metáfora que mais ressoa, pois denuncia o ciclo interminável da violência, a repetição sem fim do trauma, o tique-taque que marca cada nascimento como uma inscrição infame.


Em nome do Pai torna explícito o que o discurso da intimidade pretende ocultar: o espaço doméstico como primeiro laboratório da opressão patriarcal. Não há neutralidade possível no recinto familiar. A casa é o aparelho, o corpo é a cela, a família é o cárcere.

Márcia Barbieri oferece ao leitor um espelho que não devolve o rosto, mas o abismo; um grito que não espera resposta. A casa não é abrigo: é campo de batalha. A família não é laço: é nó. O Pai não é Deus: é máquina quebrada, relógio sem corda, que insiste em fabricar cadáveres.

 


Márcia Barbieri nasceu em Indaiatuba, São Paulo, em 1979. Atua como psicanalista, escritora e professora. Formou-se em Letras (Unesp) e é mestra em Filosofia (Unifesp). Participou de várias antologias e tem textos nas principais revistas literárias brasileiras. Foi uma das idealizadoras do Coletivo Púcaro, do canal Pílulas Contemporâneas e do projeto Pinot Noir Literatura. Publicou os livros de contos Anéis de Saturno (ed. independente, 2009), As mãos mirradas de Deus (Multifoco, 2011) e O exílio do eu ou a revolução das coisas mortas (Appaloosa, 2018). Entre os romances figuram Mosaico de rancores (Terracota, 2013), lançado na Alemanha como Mosaik des grolls (Clandestino Publikationen, 2016); A Puta (Terracota, 2014/Reformatório, 2020), foi contemplado com uma bolsa de tradução pela PEN AMERICA e foi lançado em 2023 pela Sublunary editions com o título The Whore; O enterro do lobo branco (Patuá, 2017/Reformatório, 2021), finalista como melhor romance de 2017 pelo Prêmio São Paulo de Literatura 2018, em breve será publicado nos EUA pela Sublunary editions; e A casa das aranhas (Reformatório, 2019), finalista do Prêmio Guarulhos e semifinalista do Prêmio Oceanos e [Tempo de cão] (Reformatório, 2022). Em 2024 o livro The Whore ficou finalista do prêmio de melhor tradução do PEN AMERICA.  Lançou recentemente o romance Em-nome-do-Pai (Trilogia infamiliar) pela editora Reformatório.


Lisa Alves (Araxá, 1981) é escritora e videoartista. É coeditora do portal cultural espanhol Liberoamerica e resenha livros para a revista portuguesa Incomunidade. Tem textos publicados em diversas antologias, revistas, jornais e páginas literárias no Brasil e no exterior. Codirigiu os curtas Sou indesejável (2018), vencedor do prêmio Batoque (júri oficial e júri popular) na categoria Lanterna Mágica do Festival Internacional de Cinema do Arquivo Nacional, e Depois do sétimo dia (2020), ganhador do Prêmio Elo Company no Fantaspoa. Autora dos livros Arame farpado (Coletivo Púcaro, 2015) e Quando tudo for possível (Mirada, 2022), sua obra transita entre a literatura, o cinema e a performance, dialogando com diferentes formas narrativas e estéticas.