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52, Casa 1, de Alexandre Amorim | Resenha e entrevista com o autor

 por Taciana Oliveira |



Em 52, Casa 1 (Editora Patuá, 2024), o escritor carioca Alexandre Amorim transforma quatro décadas de escrita em uma única morada literária. A casa do título existiu de fato, na vila onde ele viveu a infância, mas o livro não é memorialista. É, antes, uma arqueologia da memória e da subjetividade, onde cada conto ocupa o espaço de um cômodo simbólico: ali repousam lembranças, afetos, ruínas e desejos O autor, doutor em Teoria Literária pela UERJ, traz uma coletânea de contos que dialogam com a psicanálise freudiana e com a neurose cotidiana, onde o mal-estar da civilização se infiltra nas relações humanas, sejam amorosas, familiares ou sociais. O resultado é uma escrita que observa o homem contemporâneo a partir de suas fissuras internas, de sua incapacidade de lidar com a repressão e o desejo. “Meus personagens têm enorme dificuldade em aceitar a sublimação”, diz Amorim — e é justamente nesse conflito entre ética e pulsão que o livro nos conquista.

Amorim adota uma escrita de frases curtas, “pequenos jabs até o nocaute”, nas palavras de Cortázar. O autor prefere a sugestão à explicação. Ao invés de oferecer respostas, suas histórias lançam perguntas sobre o amor, a solidão, o corpo e a violência, temas tratados sem moralismo e com uma precisão que beira o cirúrgico. Há contos que se destacam pela força imagética e pela densidade psicológica. “Steve Austin” revisita o trauma da perda e a tentativa impossível de reconstrução — metáfora do homem biônico e da falência da modernidade em consertar o que se rompe. “Mistral” evoca, pela memória olfativa, o erotismo e a culpa infantil, enquanto “Madame” traz uma poderosa interlocução com Madame Satã, lendária travesti do Rio de Janeiro e figura de resistência e teatralidade, transformada aqui em símbolo da marginalidade que pensa, fala e reivindica sua própria humanidade. Já contos como “Enterro” e “Passeio”, escritos durante a pandemia, ampliam a reflexão sobre a morte e o isolamento, sem perder o tom existencial que percorre todo o livro. Amorim enxerga o ato de escrever como um exercício de inconsciente: entre o “primeiro jorro” e a edição final de um texto, diz ele, há o registro de uma batalha psíquica entre o id e o superego. Essa tensão dá forma a narrativas que são, ao mesmo tempo, urbanas e interiores, situadas entre o concreto da cidade e a abstração dos desejos reprimidos.


Publicar 52, Casa 1 representa, para o autor, a materialização de uma vida inteira dedicada à literatura. A estreia não soa como começo, mas como síntese: o amadurecimento de quem observou a vida por dentro da linguagem. Seu livro é uma cartografia das neuroses afetivas que moldam a experiência humana e, ao mesmo tempo, um retrato da cidade que o formou — o Rio de Janeiro das vilas, das ladeiras e dos fantasmas. Uma leitura densa e elegante, onde o passado e o presente se misturam tal qual poeira sobre o chão das lembranças — “lembranças que insistem em não ir embora, insistem em não deixar a casa”.


Leia abaixo uma entrevista com o autor:


1. O livro reúne contos escritos ao longo de quatro décadas. Como foi revisitar textos de diferentes fases da sua vida e reuni-los em uma mesma obra?

Foi um passeio divertido. Pude me lembrar do contexto e da inspiração de quase todos, e de como me sentia quando escrevi cada um. Lembro que um dos mais antigos, “Centro”, rendeu boas conversas na época, sobre a questão deleuziana de uma não objetividade da verdade — de não se buscar o centro ou o âmago das questões, mas o conjunto de subjetividades. Foi bom reler e reviver épocas e influências. “Homem”, por exemplo, é inspirado levemente em Francisco Pereira, o Maníaco do Parque — e o personagem real me remeteu bastante a personagens fictícios (e anteriores) de Rubem Fonseca. E teve momentos mais difíceis: as histórias escritas durante a pandemia, como “Enterro” e “Passeio”, que trazem uma relação mais intensa com a morte.

 

2. Você menciona que os contos refletem um “mal-estar da civilização”, inspirado em Freud. De que maneira a psicanálise dialoga com a sua literatura?

Sempre encarei a grande maioria dos meus personagens portadores de um alto grau de neurose, mas quando li o livro de Freud entendi que essa neurose presente nos meus textos estava quase sempre ligada a uma castração de desejos devido a limites civilizatórios. Éticos, no sentido de construção de uma sociedade. Meus personagens têm uma enorme dificuldade de aceitar a sublimação.

Além disso, por outro lado, a teoria psicanalítica ajuda muito no ato de escrever. Nesse campo, a palavra é ao mesmo tempo, ferramenta de descobertas narrativas e linguísticas, mas também psicológicas, para o autor. Não à toa, muitos escritores confessam que suas histórias se desviam do caminho pretendido por ele — para mim, está claro que isso é uma ação do inconsciente. Entre o primeiro jorro escrito e a última edição de um texto está um resumo da nossa atividade psíquica. Da eterna luta entre Id e Super-eu.

 

3. Sua escrita é marcada pela concisão e frases curtas. Como chegou a esse estilo e de que forma acredita que ele impacta a experiência de leitura?

Minhas influências maiores são dois contistas por excelência: Rubem Fonseca e Julio Cortázar. Os dois conquistavam o leitor com pequenos jabs, até o nocaute, para usar uma imagem do próprio Cortázar. Além disso, a linguagem jornalística dos anos 70 até 90 também se utilizava desse método e me marcou bastante.

A grande vantagem da concisão e das frases curtas é deixar que o leitor use da sua criatividade mais subjetiva nos textos, elaborando parte da história com o autor. As lacunas propositais facilitam a participação do leitor.

 

4. As narrativas exploram relações atravessadas por desejo, repressão e violência. O que o levou a escolher esses dilemas humanos como eixo central do livro?

Tento descobrir isso há quase vinte anos, na terapia. Mas, como eu disse antes, a repressão é uma constante na vida de todos, e daí a neurose. Alguns preferem tratar do desejo como utopia a ser alcançada ou até como ponto de partida para livros de autoajuda. Como sou um freudiano mais ortodoxo, prefiro observar a neurose como resultado de repressão e causa de violência.

Talvez minha vivência no final do século XX, uma época em que a violência ainda era vista como um valor abjeto, tenha ajudado a usar esse tema como alegoria para as possibilidades mais sombrias do humano. Os contos que escrevo hoje já não apresentam a violência como alegoria ou metáfora. Hoje, a violência tem outro valor — é uma demonstração de poder, e não de distúrbio.

 

5. Publicar “52, casa 1” foi definido por você como a realização de um sonho. Que significados essa estreia tem para sua trajetória de escritor e professor?

O instante de ter o objeto livro em mãos foi de realização. Ter um livro publicado era um desejo antigo, desde a adolescência, e por uma editora que acreditou na minha escrita. Logo em seguida, essa satisfação passa a ser o primeiro passo para novos projetos a serem realizados. Este ano, finalizei duas peças teatrais e estou terminando um romance que quero lançar em 2026, além dos contos que vou escrevendo “a varejo”, para uma publicação futura. Deixei a função de professor há alguns anos, mas as conversas sobre o livro e a vontade de retomar debates sobre literatura me animaram a procurar alguma vaga no magistério. Mas é ainda uma ideia sem um rumo definido. O objetivo principal, agora, é montar as duas peças e lançar o romance, no ano que vem.


Trechos do livro

São Cosme e Damião: “Apesar da virada do plantão, hoje é dia de fazer os doces, não dá para ficar guardando o veneno em casa. Às seis da manhã chega o colega que me rende e eu posso colocar minha roupa e ir para casa, a arma vai presa nas costas. Pego o contrafluxo de gente indo para o trabalho, o ônibus quase vazio. Atrás da Central, compro os últimos ingredientes para os doces e os pacotes de saquinhos com os santos estampados em vermelho e verde. O trem de Japeri vai um pouco mais cheio, mas eu não ligo de ir em pé, é o único jeito de pegar um vento, perto da janela. Chego um pouco depois das oito na estação. Para casa, vou andando, apesar do sol e do paletó. Os embrulhos na mão vão ficando escorregadios, mas logo eu viro a minha esquina. Na frente de casa, alguns vizinhos, umas senhoras que não são da rua e uma patrulha com as portas abertas e dois guardas sentados. Os vizinhos me veem e se afastam, as senhoras começam a falar alto e os guardas saem do carro. Essa área é um pouco perigosa, a casa tem muro alto, mas ladrão entra em qualquer lugar, ainda mais em casa sem cachorro. A sorte é que ando sempre armado. O azar é acontecer logo hoje, que eu estou com os vidrinhos no bolso. As coincidências da vida.” Homem: “É cedo, os cafés nem foram servidos. Acho até que os funcionários do dia não chegaram, pelo silêncio que sobe até nosso quarto. É cedo, e essa mulher ainda está no banheiro, no banho. Eu não tenho que aturar isso, não tenho que esperar até que ela saia e olhe para mim, até que ela sorria ou me veja de longe como um filho mimado ou animal de estimação. Eu mesmo não tenho que olhar para ela e esboçar sorrisos amorosos ou promissores. Dois golpes, depois que a porta do box foi aberta devagar, quase que insinuando desejo pelo corpo que agora está no chão, pernas ainda recebendo água do chuveiro, e o rosto no chão, fora do box, modificado, idiotizado, agora que a expressão de surpresa vai se tornando rigidez cadavérica. É cedo, e eu posso passar pela recepção deixando a chave, um bom-dia costumeiro e nada comigo além da carteira, uma pasta com poucos papéis e uma revista. Um bom dia (e nenhuma lembrança de resposta) que ecoa na minha cabeça até o ônibus sair da rodoviária e começar a entrar pelos subúrbios para sair da cidade que eu não pretendo mais ver. Mas não. Enquanto ela toma banho, eu me arrumo. Cueca, camisa, calça, cinto, meias, sapatos, pasta e carteira. O hotel na Rua Barão do Flamengo não pede documentos, não pede que eu me explique, não exige que eu deixe chaves. O bom-dia sem resposta ao recepcionista e a imagem da rodoviária ainda ficam, depois daquela mini-história que me conto. História policialesca, mulher morta num hotel de encontros furtivos, homem desaparecido. Um detetive fracassado se importa com o caso. Mas não. A mesma pasta, a mesma carteira. Pronto para sair sem dizer adeus a ela.” Steve Austin: “Boa noite Boa noite, eu sou o pai de João Sampaio. Por favor, aguarde um momento. Pode se sentar nessa sala em frente, ele está em cirurgia e o médico vem falar com o senhor. Alguém pode me dizer do estado dele? Lee Majors como Steve Austin Ele chegou inconsciente. Roger. Landing rocket arm switch is on. Here comes the throttle. Circuit breaker’s in E foi direto para a sala de cirurgia. Ainda deve demorar um pouco, o senhor pode tomar um café ou uma água. We have separation. O Homem de Seis Milhões de Dólares. All looks good. Roger. Versão brasileira: Herbert Richers. All looks good”




Alexandre Amorim nasceu, cresceu e vive no Rio de Janeiro. Tem 59 anos e é doutor em Teoria Literária pela UERJ, instituição pela qual também concluiu graduação (1995), pós-graduação lato sensu (1998) e mestrado (2004). Concilia desde 2002 a carreira como analista de Tecnologia da Informação com sua trajetória literária e acadêmica, que inclui passagens como professor substituto na UERJ e na UNIRIO, tradutor e adaptador de peças teatrais, articulista de literatura no Jornal do Brasil e no CECIERJ.







Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo”. Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.