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As ruas sem nome, de Tieko Irii

por Taciana Oliveira | 


As ruas sem nome (Editora Patuá, 2025) é uma obra que desafia rótulos ao costurar romance, memória, crônica urbana, arte-visual e poesia em uma tessitura autobiográfica afetiva. A escritora, artista visual e cenógrafa Tieko Irii elabora uma cartografia particular da cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu, ao mesmo tempo, em que revisita a trajetória de seu pai, Hisashi Irii, imigrante japonês que chegou ao Brasil nos anos 1950.

 A estrutura do livro é cuidadosamente desenhada. Dividida em quatro partes e traz, como contracanto, a narrativa do seu pai em um bloco autônomo que amplia a densidade histórica do projeto:

Parte 1 – “Radar do desejo” inaugura o mapa afetivo paulistano. Aqui, a cidade é corpo e arquivo: a lavanderia da família, o rio soterrado, a avenida que engole o córrego, a vizinhança que desaparece sob a verticalização e a lógica do progresso que enterra córregos, desaloca vizinhos e silencia memórias. A autora desenha o gesto fundador do livro: encontrar a si mesma na topografia mutante de SP.  Ao narrar essa experiência, Tieko apresenta como essas mudanças urbanísticas reconfiguraram modos de vida, sociabilidades e subjetividades. O espaço que antes era comunitário se torna mais frio, segmentado, privatizado, espelhando transformações políticas do país no período da ditadura militar tardia e da redemocratização, quando a urbe foi profundamente marcada por desigualdades e especulação imobiliária. 

Parte 2 – “A cartografia do silêncio”: mapeia as zonas mudas da memória, racismo recreativo, violência cotidiana, apagamentos familiares e a política do não-dito. É a camada onde o silêncio vira método de leitura do espaço social e do corpo, e a linguagem, muitas vezes, instrumento de ferida. Essa experiência individual dialoga com transformações comportamentais da época, em que movimentos sociais e culturais (como o feminismo, o surgimento de novos espaços de expressão política e artística e o questionamento de padrões identitários) começam a ganhar corpo. A autora narra sua inserção no mundo adulto (de festas, independência financeira, sexualidade e corpo) com ritmo vertiginoso, deixando ver uma cidade que também produz subjetividades.

Parte 3 – Na terceira parte, “O Espírito Yamato, que não me tocou”, Tieko realiza um gesto político e íntimo: inverter a rota da diáspora familiar e ir ao Japão em busca de uma origem. Mas a experiência revela um desencontro: a identidade japonesa imaginada não a acolhe, e ela se vê estrangeira em ambos os mundos.

O “espírito Yamato”, ideia cultural de pertencimento homogêneo, é desconstruído página a página, e a autora descobre que identidade não é essência, mas construção. O título do livro, “As ruas sem nome”, vem daí: para navegar nesse território, é preciso criar mapas próprios, baseados em afetos e experiências.

Parte 4 – “O espaço vazio do mar”. A quarta parte amplia as fronteiras geográficas e simbólicas. O Sudeste Asiático aparece como espaço-ponte, um lugar de travessia em que Tieko elabora a experiência de não pertencer tal qual potência criativa. Aqui, a identidade deixa de ser busca por uma raiz fixa e passa a ser relação com o movimento.

O bloco final, “Um Imigrante japonês, Hisashi Irii”, funciona semelhante a ponto de inflexão. Ao descobrir e incorporar o manuscrito do pai, a autora revela ao leitor uma narrativa paralela a de um jovem que saiu de casa, teve ligação com a yakuza, serviu nas Forças de Autodefesa e imigrou para o Brasil nos anos 1950.

Esse testemunho paterno ressignifica toda a narrativa anterior: o silêncio do pai deixa de ser enigma para se tornar herança. Tieko compreende que suas inquietações ecoam as travessias dele, e que pertencimento não é destino, mas diálogo entre vozes.

Sob o olhar da autora, São Paulo é um corpo vivo, em constante mutação, que guarda marcas da migração japonesa, das tensões de classe e do urbanismo desigual. Ao narrar sua infância no cruzamento da Avenida Santo Amaro com o Córrego do Sapateiro e as mudanças da metrópole nos anos 1970 e 1980, Tieko desenha uma geografia afetiva, na qual esquinas, córregos e pontes não são somente coordenadas geográficas, mas registros emocionais e políticos. A autora, ao deslocar o eixo simbólico da narrativa, tenta conectar sua experiência como descendente nikkei com a terra dos antepassados. O Japão aparece tanto como lugar concreto quanto como mito, revelando contradições identitárias entre ser “de dentro” e “de fora”.

 “As Ruas sem nome” propõe uma reflexão sobre pertencimento e invisibilidade, inspirando-se na lógica japonesa de endereçamento em que ruas sem nome exigem mapas mentais, afetivos e relacionais. É nessa lógica que a autora alcança um dos ápices poéticos da narrativa, fundindo deslocamento, identidade, urbanismo e ancestralidade.

Tieko Irii recorre a colagens visuais, fragmentos de manuscritos, imagens familiares e trechos autobiográficos, entrelaçando a própria voz com a do pai. Essa operação narrativa e estética recupera a história de sua família, mas também questiona as formas oficiais de narrar a imigração japonesa no Brasil, geralmente contadas por homens e com pouco espaço para experiências femininas. O resultado é um livro que, ao mesmo tempo, em que se ancora na história pessoal, amplia-se para um imaginário coletivo da diáspora, um gesto de escrita que desenterra camadas de cidade, corpo e memorabília.

A oscilação entre o ritmo vertiginoso de São Paulo e a suspensão das travessias asiáticas cria quase  que uma experiência sensorial onde o leitor percorre mapas, atravessa muros, sente o cheiro de tinta das lavanderias, ouve o silêncio pesado das fronteiras internas. Tieko Irii desafia classificações, desmonta mitos de pertencimento e cria um espaço narrativo onde a identidade não é destino, mas travessia. Ao iluminar a vida secreta do pai e assumir a própria multiplicidade, a autora nos entrega uma narrativa honesta, política e emocional.


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Tieko Irii é artista visual, diretora de arte e escritora paulistana. Formada em cinema pela FAAP em 1988, trabalhou por 25 anos em publicidade e no audiovisual, com passagens por filmes como Os Matadores (1987), O Menino Maluquinho 2 (1998), Castelo Rá-Tim-Bum (1999), e séries como Retrato Falado (Rede Globo). Publicou três livros infantis antes de se dedicar à "As ruas sem nome", sua primeira obra autobiográfica. Viveu no Japão entre 1989 e 1991, experiência que influenciou sua pesquisa sobre memória, diáspora, gênero e raça.




Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo”. Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.