por Taciana Oliveira* |
Nonada, de
Renato Amado: um romance sobre finitude, amor e solidão em uma Terra plana e
distópica
O segundo romance do escritor carioca Renato Amado, doutor em Literatura em Língua Portuguesa pela Brown University e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, propõe uma reflexão filosófica sobre o que significa existir e amar em um mundo atravessado pela distância e pela mediação tecnológica. Publicado pela Editora Cajuína, Nonada combina elementos de ficção científica e existencialismo para construir uma narrativa ao mesmo tempo, íntima política.
Ambientado em
uma Terra plana e mil vezes maior que a nossa, onde continentes são mundos
isolados e o contato entre eles é raro e caro, o romance acompanha Galeano,
motorista de aplicativo e ex-praticante de wingsuit. Ao observar através de um
telescópio uma mulher de outro continente — Seiryu —, ele inicia uma relação
marcada por ausências, silêncios e projeções. “Lido pessimamente com a nossa
finitude. Decidi trabalhar isso em um romance, como forma de me ajudar a
sobreviver ao nosso absurdo”, diz o autor sobre a gênese da obra.
No prefácio, assinado por Leila Lehnen, professora e chefe do Department of Portuguese and Brazilian Studies da Brown University, o telescópio é descrito como metáfora de um “desejo frustrado de presença, de um amor atravessado por mediações”. A distância entre Galeano e Seiryu torna-se um espelho das relações digitais contemporâneas, nas quais a conexão existe, mas o toque é impossível. A prosa de Renato Amado oscila entre o registro coloquial das conversas entre o protagonista e seus passageiros de Uber (retratos agudos de um Brasil urbano saturado de desigualdades) e momentos em que a narrativa mergulha em reflexões sobre amor, finitude e impotência.
FICHA TÉCNICA
Livro: Nonada
Autor: Renato Amado
Editora : Editora Cajuína
Ano: 2025
Número de páginas: 78 páginas
Gênero: Ficção
ISBN-13: 978-6585957441
Disponível em: bit.ly/4h2JCed
Leia abaixo uma entrevista com o autor:
1. O livro se passa em uma Terra plana e mil vezes maior que a nossa. Como surgiu essa ideia e o que ela simboliza para você?
A ideia do mundo plano surgiu em duas etapas, separadas por mais de trinta anos. Quando eu tinha uns onze anos, comentei com a minha irmã que, se a Terra fosse plana, poderíamos ver a África de Copacabana. Ela negou e, como prova dos nove, fez o que se faz nessa idade: perguntou ao nosso pai. Ele respondeu com humor: “com ou sem uma luneta brutal?”. Esse diálogo ficou arquivado em algum canto da minha memória.
Décadas depois, em San Diego, participando de uma conferência de brasilianistas, ele voltou à tona. Caminhando à beira-mar com um amigo, poucas horas após ter feito minha apresentação, perguntei: “se a Terra fosse plana, será que teria gente aqui com telescópios bisbilhotando como é a vida no Japão?”.
Já a decisão de tornar a Terra mil vezes maior e, por consequência, com os continentes extremamente distantes, foi por razões práticas: não queria que Galeano e Seiryu resolvessem tudo por WhatsApp ou um telefonema. Nem que um encontro entre eles dependesse apenas de comprar uma passagem aérea e viajar por até um dia e meio. Por isso, criei um mundo em que os continentes são ilhas, sem cabos submarinos ou meios de comunicação à distância, devido à distância exacerbada.
Não penso essa Terra alternativa como um símbolo. É apenas um cenário que viabiliza a história — de um homem que encontra sentido observando uma mulher de outro continente por um telescópio. Essa relação tangencia o impossível e tangenciá-lo é uma forma de transcender. Ela convida a imaginar vínculos livres de etiquetas, de modelos e, na medida do possível, dos nossos próprios constructos.
Há também a projeção de um sentimento comum: a busca por sentido “em outro lugar”. Um lugar que ninguém sabe onde fica, mas que perseguimos o tempo todo por meio de telas.
2. A relação entre Galeano e Seiryu acontece à distância, mediada por um telescópio. Como essa metáfora dialoga com as formas de afeto e conexão no mundo digital de hoje?
Hoje podemos nos relacionar tanto com quem está presente quanto com ausentes, e ambos competem por nossa atenção. Se você está jantando com alguém e a pessoa pega o celular, ela te priva da presença dela e oferece atenção ao distante.
Galeano faz algo semelhante. Tem a companheira e o filho,
mas prefere afastar-se deles numa tarde de sol para buscar, no telescópio, a
presença da ausente. O gesto dialoga com o comportamento de quem pega o celular
ao menor sinal de desconforto ou silêncio. Telescópio e celular partem do mesmo
impulso: o de preencher vazios. Ocorre que ambos enfrentam limitações, pois o
outro nem sempre está disponível. Desse desencontro à distância nasce
ansiedade, sensação de abandono e cobranças que demandam que o outro ofereça
explicações que cessem estes sentimentos.
3. Em “Nonada”, você aborda fragilidades masculinas e machismo estrutural com muita sutileza. Como foi construir um personagem que provoca identificação e incômodo ao mesmo tempo?
Todos fomos educados para sermos machistas. Bastou relembrar meu próprio comportamento antes de tomar consciência e potencializá-lo em Galeano. Também acrescentei o que vejo muitos homens feitos ainda reproduzirem. Não o fazem por misoginia deliberada, mas por uma mentalidade patriarcal tão naturalizada que opera sem reflexão. O incômodo vem da identificação. Ao reconhecer em Galeano aspectos de si, o leitor se inquieta. E o desconforto é o primeiro passo para alguma mudança.
4. O romance combina existencialismo e ficção científica. Quais foram suas principais referências literárias, filosóficas ou culturais para compor essa atmosfera?
Simplesmente tive duas ideias iniciais: voyeurs culturais que ficariam bisbilhotando culturas de outros continentes em uma Terra plana; olhares que se encaixariam através de telescópios, de duas pessoas em continentes distantes. Tinha o enredo, mas ainda não as questões subterrâneas. Estas foram encontradas quando olhei para dentro. Com a história de superfícia e as questões subterrâneas definidas, montei a história, sem pensar em referências. Mas, inevitavelmente, o que me forma transborda. Provavelmente há ecos de Schopenhauer, Clarice Lispector e Vergílio Ferreira.
5. O título “Nonada” evoca a ideia do “quase-nada”, do silêncio e da ausência. Por que essa palavra e de que maneira ela sintetiza o espírito do livro?
Nonada remete a
ausência e também significa ninharia. O que é a vida, senão um quase-nada? O
vazio é a regra no universo. Se o núcleo de um átomo tivesse a dimensão de uma
bola de tênis, mantida a escala, os elétrons estariam a dois quilômetros. A
vida humana é uma lufada entre dois nadas. A vida de uma estrela, uma lufada um
pouco mais longa. Estima-se que o período em que o cosmos manterá estrelas — e,
portanto, luz — e galáxias estruturadas, corresponda a 1% de sua duração: um
piscar de olhos cósmicos entre trevas. E a própria duração total do universo,
não deixa de ser mero ponto sobre o eterno. É tudo ninharia. O livro explora
essa condição de flutuar por um breve instante em meio ao nada que, como diz a
narradora, cedo ou tarde nos engolirá.
Renato Amado é escritor carioca, doutor em Estudos Portugueses e Brasileiros pela Brown University (EUA) e mestre em Literatura Brasileira pela UERJ. Formado em Direito pela PUC-Rio, deixou uma carreira de dez anos como advogado concursado da Petrobras para dedicar-se integralmente à literatura e à vida acadêmica. Lecionou língua, literatura e cultura brasileira em universidades dos Estados Unidos, onde também coordenou o programa de português da University of Arkansas. Possui uma sólida trajetória como editor e agitador cultural: fundou a Editora Flâneur, voltada para literatura e quadrinhos, e o coletivo multiartístico Caneta, Lente & Pincel, que unia literatura, fotografia e artes plásticas em publicações e exposições em espaços como o Centro Cultural Justiça Federal (CCJF) e o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ). Com contos publicados em antologias, "Nonada" é seu segundo romance.
*Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo”. Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.



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