Nonada, de Renato Amado: um romance sobre finitude, amor e solidão em uma Terra plana e distópica

por Taciana Oliveira* | 


Nonada, de Renato Amado: um romance sobre finitude, amor e solidão em uma Terra plana e distópica

O segundo romance do escritor carioca Renato Amado, doutor em Literatura em Língua Portuguesa pela Brown University e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, propõe uma reflexão filosófica sobre o que significa existir e amar em um mundo atravessado pela distância e pela mediação tecnológica. Publicado pela Editora Cajuína, Nonada combina elementos de ficção científica e existencialismo para construir uma narrativa ao mesmo tempo, íntima política.

Ambientado em uma Terra plana e mil vezes maior que a nossa, onde continentes são mundos isolados e o contato entre eles é raro e caro, o romance acompanha Galeano, motorista de aplicativo e ex-praticante de wingsuit. Ao observar através de um telescópio uma mulher de outro continente — Seiryu —, ele inicia uma relação marcada por ausências, silêncios e projeções. “Lido pessimamente com a nossa finitude. Decidi trabalhar isso em um romance, como forma de me ajudar a sobreviver ao nosso absurdo”, diz o autor sobre a gênese da obra.

No prefácio, assinado por Leila Lehnen, professora e chefe do Department of Portuguese and Brazilian Studies da Brown University, o telescópio é descrito como metáfora de um “desejo frustrado de presença, de um amor atravessado por mediações”. A distância entre Galeano e Seiryu torna-se um espelho das relações digitais contemporâneas, nas quais a conexão existe, mas o toque é impossível. A prosa de Renato Amado oscila entre o registro coloquial das conversas entre o protagonista e seus passageiros de Uber (retratos agudos de um Brasil urbano saturado de desigualdades) e momentos em que a narrativa mergulha em reflexões sobre amor, finitude e impotência.

 Galeano é um personagem complexo: suas fragilidades emocionais convivem com gestos atravessados por machismo estrutural — uma contradição que o autor não suaviza, mas expõe com honestidade. “Ele não é um misógino, mas reproduz um machismo estrutural que afeta todos ou quase todos. O livro serve como um espelho”, observa Renato. A estrutura narrativa é marcada pelo não-dito, pelo espaço entre as palavras e pela força dos silêncios. O título Nonada remete a esse “quase-nada”, a presença esquiva que permeia toda a trama. Ao mesmo tempo, em que narra uma história de amor impossível, Nonada também funciona como um painel do Brasil contemporâneo: um país esgotado, desigual, violento, mas que ainda pulsa.



FICHA TÉCNICA

Livro: Nonada

Autor: Renato Amado

Editora ‏: ‎ Editora Cajuína

Ano: 2025 

Número de páginas: ‎ 78 páginas 

Gênero: Ficção

ISBN-13: ‎ 978-6585957441

Disponível em: bit.ly/4h2JCed



Leia abaixo uma entrevista com o autor:

1. O livro se passa em uma Terra plana e mil vezes maior que a nossa. Como surgiu essa ideia e o que ela simboliza para você?

A ideia do mundo plano surgiu em duas etapas, separadas por mais de trinta anos. Quando eu tinha uns onze anos, comentei com a minha irmã que, se a Terra fosse plana, poderíamos ver a África de Copacabana. Ela negou e, como prova dos nove, fez o que se faz nessa idade: perguntou ao nosso pai. Ele respondeu com humor: “com ou sem uma luneta brutal?”. Esse diálogo ficou arquivado em algum canto da minha memória.

Décadas depois, em San Diego, participando de uma conferência de brasilianistas, ele voltou à tona. Caminhando à beira-mar com um amigo, poucas horas após ter feito minha apresentação, perguntei: “se a Terra fosse plana, será que teria gente aqui com telescópios bisbilhotando como é a vida no Japão?”.

Já a decisão de tornar a Terra mil vezes maior e, por consequência, com os continentes extremamente distantes, foi por razões práticas: não queria que Galeano e Seiryu resolvessem tudo por WhatsApp ou um telefonema. Nem que um encontro entre eles dependesse apenas de comprar uma passagem aérea e viajar por até um dia e meio. Por isso, criei um mundo em que os continentes são ilhas, sem cabos submarinos ou meios de comunicação à distância, devido à distância exacerbada.

Não penso essa Terra alternativa como um símbolo. É apenas um cenário que viabiliza a história — de um homem que encontra sentido observando uma mulher de outro continente por um telescópio. Essa relação tangencia o impossível e tangenciá-lo é uma forma de transcender. Ela convida a imaginar vínculos livres de etiquetas, de modelos e, na medida do possível, dos nossos próprios constructos.

Há também a projeção de um sentimento comum: a busca por sentido “em outro lugar”. Um lugar que ninguém sabe onde fica, mas que perseguimos o tempo todo por meio de telas.

2. A relação entre Galeano e Seiryu acontece à distância, mediada por um telescópio. Como essa metáfora dialoga com as formas de afeto e conexão no mundo digital de hoje?

Hoje podemos nos relacionar tanto com quem está presente quanto com ausentes, e ambos competem por nossa atenção. Se você está jantando com alguém e a pessoa pega o celular, ela te priva da presença dela e oferece atenção ao distante.

Galeano faz algo semelhante. Tem a companheira e o filho, mas prefere afastar-se deles numa tarde de sol para buscar, no telescópio, a presença da ausente. O gesto dialoga com o comportamento de quem pega o celular ao menor sinal de desconforto ou silêncio. Telescópio e celular partem do mesmo impulso: o de preencher vazios. Ocorre que ambos enfrentam limitações, pois o outro nem sempre está disponível. Desse desencontro à distância nasce ansiedade, sensação de abandono e cobranças que demandam que o outro ofereça explicações que cessem estes sentimentos. 

3. Em “Nonada”, você aborda fragilidades masculinas e machismo estrutural com muita sutileza. Como foi construir um personagem que provoca identificação e incômodo ao mesmo tempo?

Todos fomos educados para sermos machistas. Bastou relembrar meu próprio comportamento antes de tomar consciência e potencializá-lo em Galeano. Também acrescentei o que vejo muitos homens feitos ainda reproduzirem. Não o fazem por misoginia deliberada, mas por uma mentalidade patriarcal tão naturalizada que opera sem reflexão. O incômodo vem da identificação. Ao reconhecer em Galeano aspectos de si, o leitor se inquieta. E o desconforto é o primeiro passo para alguma mudança.

4. O romance combina existencialismo e ficção científica. Quais foram suas principais referências literárias, filosóficas ou culturais para compor essa atmosfera?

Simplesmente tive duas ideias iniciais: voyeurs culturais que ficariam bisbilhotando culturas de outros continentes em uma Terra plana; olhares que se encaixariam através de telescópios, de duas pessoas em continentes distantes. Tinha o enredo, mas ainda não as questões subterrâneas. Estas foram encontradas quando olhei para dentro. Com a história de superfícia e as questões subterrâneas definidas, montei a história, sem pensar em referências. Mas, inevitavelmente, o que me forma transborda. Provavelmente há ecos de Schopenhauer, Clarice Lispector e Vergílio Ferreira.

5. O título “Nonada” evoca a ideia do “quase-nada”, do silêncio e da ausência. Por que essa palavra e de que maneira ela sintetiza o espírito do livro? 

Nonada remete a ausência e também significa ninharia. O que é a vida, senão um quase-nada? O vazio é a regra no universo. Se o núcleo de um átomo tivesse a dimensão de uma bola de tênis, mantida a escala, os elétrons estariam a dois quilômetros. A vida humana é uma lufada entre dois nadas. A vida de uma estrela, uma lufada um pouco mais longa. Estima-se que o período em que o cosmos manterá estrelas — e, portanto, luz — e galáxias estruturadas, corresponda a 1% de sua duração: um piscar de olhos cósmicos entre trevas. E a própria duração total do universo, não deixa de ser mero ponto sobre o eterno. É tudo ninharia. O livro explora essa condição de flutuar por um breve instante em meio ao nada que, como diz a narradora, cedo ou tarde nos engolirá.



Renato Amado é escritor carioca, doutor em Estudos Portugueses e Brasileiros pela Brown University (EUA) e mestre em Literatura Brasileira pela UERJ. Formado em Direito pela PUC-Rio, deixou uma carreira de dez anos como advogado concursado da Petrobras para dedicar-se integralmente à literatura e à vida acadêmica. Lecionou língua, literatura e cultura brasileira em universidades dos Estados Unidos, onde também coordenou o programa de português da University of Arkansas. Possui uma sólida trajetória como editor e agitador cultural: fundou a Editora Flâneur, voltada para literatura e quadrinhos, e o coletivo multiartístico Caneta, Lente & Pincel, que unia literatura, fotografia e artes plásticas em publicações e exposições em espaços como o Centro Cultural Justiça Federal (CCJF) e o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ). Com contos publicados em antologias, "Nonada" é seu segundo romance.






*Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo”. Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.