por Luís de Barreiros Tavares |
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| Detalhe de «Las Meninas» de Diego Velázquez — 1566 — Museu do Prado |
O cão e «Las Meninas» de Velázquez
Poeiras da Filosofia IX
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«Com todos os olhos vê a criatura
o Aberto. Só os nossos olhos estão
como invertidos e de todo postos à volta dela
como armadilhas, em círculo à volta da sua saída livre.
O que está lá fora, só o sabemos da face
do animal; pois já a criança pequena
nós a voltamos e a obrigamos a olhar para trás
para o mundo das formas, não para o Aberto, que
é tão profundo na face do animal.»
[Mit allen Augen sieht die Kreatur / Das Offene. Nur unsre Augen sind / wie umgekhert und ganz um sie gestellt / als Fallen ring um ihren freien Ausgang / Was draußen ist, wir wissens aus des Tiers / Antlitz allein; denn schon das frühe Kind / wenden wir um und zwingens, daß es rückwärts / Gestaltung sehe, nicht das Offne, das / im Tiergesicht so tief ist.]
Rainer Maria Rilke, «Oitava Elegia de Duíno» [Achte Duineser Elegie]
«[…] à direita o cão estirado, único elemento do quadro que não olha nem se mexe, porque ele, com seus fortes relevos e a luz que brinca em seus pêlos sedosos, só é feito para ser um objecto a ser olhado.»
Michel Foucault, «Las Meninas»
Este ensaio foi pela primeira vez publicado na Revista Caliban. Agora com uma revisão.
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Pensemos na extraordinária pintura «Las Meninas», de Diego Velázquez. Na pintura há um cão. Figura que passa de um certo modo despercebida. Ou aparentemente despercebida? É o que iremos tentar ver neste texto. De facto, se observarmos com atenção, algo de muito especial releva da sua postura e papel na cena do quadro. Velázquez apreciava os cães como motivos ou figuras particulares nas suas pinturas.
Pelo seu mero estar naquele momento, o cão (um mastim espanhol) não olha para o espectador, ou para o pintor, ou para o reflexo no espelho, ou para a possível tela (sobre os espelhos e linhas de visibilidade, leia-se a belíssima análise de Michel Foucault no seu texto «Las Meninas»). Tal como o cão, há mais algumas personagens que não olham para a frente, para o espelho, para o espectador invisível, ou para possíveis modelos. O menino anão olha apenas o cão e brinca com ele. Uma das damas de companhia atende e observa a infanta Margarida Teresa. Mais atrás, há duas figuras que dialogam, porventura comentando. Uma delas parece escutar, talvez fazendo uma pausa na contemplação, enquanto a outra espreita. Ao fundo, três outras que não perdem de vista o que se passa. Uma está em trânsito, mas mirando a cena. Há duas que se afiguram em espelho, o rei Filipe IV e sua esposa Mariana. O pintor poderá estar a representá-los, e a infanta vem contemplar (Foucault). Neste caso, esta já não será o modelo fitando-se num espelho, mas os próprios reis tomam o lugar de uma invisibilidade que é também a do espectador. Mas, da parte daqueles, a invisibilidade é parcial, digamos assim, pois apenas são vislumbráveis no outro espelho ao fundo. Por isso, o rei e a rainha «não são visíveis, ao menos directamente» (Foucault). Talvez a infanta vire o seu olhar para eles, num relance, depois de avaliá-los enquanto representados na tela.
Mas foquemo-nos no cão. Este é mencionado por Foucault apenas duas vezes e de passagem (uma na presente epígrafe, a outra: «do lado direito, o anão (com o calçado deposto sobre o dorso do cão))». Na verdade, o cão é a única figura que não olha, ou, mais propriamente, não atende nenhuma das personagens. E todas as restantes percepcionam ou têm em conta, de uma ou de outra maneira, a cena. «O primeiro olhar lançado ao quadro nos ensinou de que é constituído esse espectáculo-de-olhares. São os soberanos.» (Foucault).
Mas, e o cão? Será que não olha? Ele olha a não-cena. Olha o chão. Talvez fechando e abrindo os olhos. Entreabrindo-os em sonolência. Mas, imóvel e sem olhar, na representação, como refere Foucault («não olha nem se mexe, […] um objecto a ser olhado»), certamente ele levantará a cabeça durante as longas sessões do pousar pictural das personagens. Abrirá os olhos e, desperto, olhará em torno (já numa pintura tardia, «Infante Felipe Próspero», de 1660, surge um pequeno cão; ele olha-nos com uma maravilhosa transmissão de vida).
Mas, quanto ao cão de Las Meninas? A par da posição cabisbaixa, mas calma, solene e nobre (há uma altivez do animal na sua postura que comunga com o ambiente acolhedor), guarda a possibilidade do despertar. Diríamos que a abertura ao espaço envolvente é patente. Ele está ali, no conforto do espaço, no seu alheamento e proximidade.
Estaremos a antropomorfizá-lo? De modo nenhum. Porque salientamos acima de tudo o seu enigmático e fundamental arredamento, apesar deste ser, paradoxalmente, a seu modo, e ao mesmo tempo, convivente. Abissal distância-proximidade. Presença e ausência?
Aqui começamos a perspectivar o Aberto (das Offene) de que fala Rilke em relação ao animal (ver epígrafe). Contrariamente, Heidegger vê o Aberto no humano e não no animal. Ele pensa o Aberto no humano e na aletheia (des-velamento): «na i-latência-latência do ser», escreve Agamben no seu texto «O Aberto». «O aberto de que fala Rilke não é o aberto no sentido do desvelado. Rilke não sabe nem pressente nada da aletheia; […] tal como Nietzsche.» (Heidegger, in Parménides, citado por Agamben, op. cit.).
Evidentemente que quando falamos aqui do animal, não falamos do «animal em geral». Pois, como refere Jacques Derrida num vídeo, um «cão, um chimpanzé», ou um gato, «distinguem-se radicalmente da formiga».
Aquela hipotética sonolência — bem como o alheamento, de que falávamos acima — não se limita ao «aturdimento» no animal, de que fala Heidegger: «O aturdimento apresenta-se aqui como uma espécie de Stimmung fundamental na qual o animal não se abre, como o Dasein, num mundo, mas, no entanto, se encontra extasiadamente tenso fora de si numa exposição que o sacode em todas as fibras do corpo.» (Agamben, id.). Aqui caberia lembrar uma parte da descrição de Foucault em epígrafe: «ele, com seus fortes relevos e a luz que brinca em seus pêlos sedosos».
Agamben, no final deste seu texto parece tentar estabelecer uma ponte entre as visões de Rilke e de Heidegger. Se há o «não-aberto no mundo animal», este pode ser o garante, ou, pelo menos, um sinal da «abertura do mundo humano», através da indagação desvelamento e velamento: «Talvez seja verdade […] que a abertura do mundo humano — enquanto também, e acima de tudo, abertura ao conflito essencial entre desvelamento e velamento — apenas pode ser alcançada através de uma operação efectuada no não-aberto do mundo animal.» (ibid.). Não será isto devido a uma espécie de estranhamento familiar entre o humano e o animal (qualquer coisa como uma Unheimlich — empregando aqui um conceito caro a Freud)? Não será isto o que podemos vislumbrar no cenário de Las Meninas e seu cão? Um possível aberto no animal?
Mas, precisamente, retornemos ao cão de Las Meninas. Este, na sua postura paciente, mas distinta é a figura paradoxalmente mais indiferenciada, e indistinta. Porque é um entre milhares e milhões que já existiram ao longo dos tempos. E existirão. Porém, o mais enigmático, é que ele não deixa de ser único, paradoxalmente nessa massa homogénea, ou quase, como cão entre todos os outros cães. Pelo contrário, é tido por adquirido que todos nós, humanos, guardamos, cada um, uma diferenciação fundamental em relação a cada um que é outro.
Mas naquela indiferenciação, que caracteriza o cão, poderemos dizer que ele, ao mesmo tempo, dá testemunho de uma partilha do momento com os outros, os humanos. Relegado eventualmente para um plano praticamente insignificativo — e sem olhar –, ele acompanha os humanos. Por isso, é extraordinária a ponte existencial e ontológica que se estabelece entre o animal humano e o animal não humano. Qualquer coisa de fundamental está ali, naquele animal dócil que apenas está. Apenas. Mas maravilhosamente presente naquele momento que presenciamos e que atravessa o tempo. Como se algo vivo — um outro vivo! — atravessasse a vida dos humanos desde o seu alvor. Com o sinal da vida, dois infinitos se tocam: o do humano e o do animal, numa misteriosa proximidade e distância. Sem dúvida que estas apelam à própria constituição do humano na indagação do in-finito. Lembremo-nos do questionamento de Emmanuel Levinas a propósito da alteridade do «outro» ou «Outrem» (Autrui), e o rosto (visage), como uma das interrogações fundamentais, como reenvio para um infinito que nos interpela na proximidade, que nos instiga a vários títulos (ético, transcendente, existente, etc.), nomeadamente, por exemplo, la responsabilité pour Autrui (vj. Autrement qu’être ou au-delà de l’essence, etc.).
«Las Meninas» de Diego Velázquez — 1566 — Museu do Prado
«Infante Felipe Próspero» de Diego Velázquez — 1660 — Kunsthistorisches Museum
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Ver Poeiras da Filosofia VIII – Férias da Filosofia
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Referências
Giorgio Agamben, O Aberto — O homem e o animal, Tradução de André Dias e Ana Bigotte Vieira, Lisboa, Ed. 70, 2011.
Emmanuel Levinas, Autrement qu’être ou au-delà de l’essence, Dordrecht, Martinus Nijhoff, 1986.
Michel Foucault, As Palavras e as Coisas — Uma arqueologia das ciências humanas, Tradução de Salma Tannus Muchail, São Paulo, Martins Fontes, 1981.
Rainer Maria Rilke, Poemas — As Elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu, Tradução de Paulo Quintela, Porto, O Oiro do Dia, 1983.
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