… qual delírio de seios e apetece morrer e morrer é pura habitação … | Sete poemas inéditos de Manoel T. R.-Leal

  por Manoel Tavares Rodrigues-Leal | 


… qual delírio de seios e apetece morrer e morrer é pura

habitação … | Sete poemas inéditos de Manoel T. R.-Leal

 

"Sem título” (31–3-1982) — Desenho a caneta, tintada china e gouache em papel
cavalinho — 30cm x 20,5 cm — © Luís de Barreiros Tavares — Colecção pessoal.


 

“Na vida corrente movemo-nos com linguagem precária, porque apenas descrevemos relações superficiais. Logo que se fala de relações profundas, imediatamente surge outra linguagem, a poética.”

Johann Wolfgang von Goethe (citado por Martin Heidegger num registo filmado)

 

“se
                                           nasce
                                           morre   nasce
                                           morre   nasce    morre
                                                                               renasce   remorre   renasce
                                                                                                remorre   renasce
                                                                                                                  remorre
                                                                                                                              re

                                                                   re
                                                      desnasce
                                  desmorre   desnasce
              desmorre   desnasce   desmorre
                                                                           nascemorrenasce
                                                                           morrenasce
                                                                           morre
                                                                           se”

 

Haroldo de Campos — poema “Se”

 

“Agora, morrer a morte (que morte) morre-se contigo

e contigo morrer será mero morrer porque morte tem Deus e sua beleza…”

M. T. R.-Leal — do poema V desta publicação

 

*

Sete poemas inéditos de Manoel T. R.-Leal, do caderno Livro do amador nómada.

 

I

Que este ofício – o de cantar, recordando – é duro,

queima como cativa loucura e o poema principia

e nada sei senão banir quente beijo e abdicar.

E após recordar o pó da erosão (Isabel) amadurece o dia

qual delírio de seios e apetece morrer e morrer é pura

habitação as coisas pessoas somam-se e em meramente a recordar….

 

Lx. 25-6-76 – É o primeiro poema do caderno. Porém, está indicado em nota no manuscrito:

 “Este poema irá figurar no fim do caderno de poesia”.

 

II

Não há nenhum anjo que guarde o gume de esta madrugada,

e mais se adensa, virgem ou viagem, esta grave angústia que não domo.

E cresce o ciúme, meu amor maior e impossível. Oh meu navio de solidão, tão só flor fingida e chama sagrada,

em um chão de sílabas, que me pergunto senão supérfluo, etéreo e vazio. Mestre, como?

 

Lx. 8-7-76

 

III

Caminha-se por vã manhã e não há pequeninas praias desertas,

com deuses eloquentes e esquecidos, nem anjos com sua aparição

coincidente com a paixão de um homem. Inclinam-se talvez suas frontes

sobre a nossa mítica condição. Há hálitos de brilhos breves, obsessivos: como dóis, doente, perene coração.

 

Lx. 10-7-76

 

IV

Mas, amor, colho melancolia no orvalho da manhã,

e são múltiplos seus corredores e puros brilhos, os mais lindos. 

Despedes-te: é bárbaro mármore cuja escultura é mulher e maçã.

Minha autêntica alma erra. mas sorri-se, de quanto choro, se sorrindo…

 

Lx. 10-7-76

 

V

Cruel esta separação, cisão de corpos contíguos.

E meu leito vacante, este surto de altíssimas águas de tristeza.

Agora, morrer a morte (que morte) morre-se contigo

e contigo morrer será mero morrer porque morte tem Deus e sua beleza,

e viver morrendo a sexo de morte é pior do que morrer em mil mortes em escassa vida – que já não persigo…

 

Lx. 10-7-76

 

VI

Com que sofrimento, beleza bebida e até obscuro talento, o poeta escreve

e não redime nenhum dos seus possíveis dons: só sons de criança enlouquecida,

ao acordar. E afogada a voz entre primitivas palavras e a morte, morrendo em vida…

 

Lx. 12-7-76

 

VII

Tudo antigo, tudo inscrito no crânio. Nada é eterno.

Profusas rosas, que recusas, escassas são.

Meu coração dividido, meu pensamento tão ausente.

Ama, como se fosse delapidado corpo, a alma que não temo.

Como abruptas bocas são um soluço de sonho tão vão.

E a arquitectura da alma é fingida e sincera, incesto tão presente.

 

Lx. 12-7-76

*

Manuscrito do poema II

*

 

Três publicações recentes em três revistas, com poemas do caderno Livro do amador nómada

Revista Triplov (PT)– 03/10/2025

Revista Ameopoema– Suplemento Acre (BR) – Setembro-Outubro – 2025

Revista Caliban (PT)– 03/09/2025

Vídeo comHeidegger e a citação de Goethe (epígrafe)

“Im gemeinen Leben kommen wir mit der Sprache notdürftig fort, weil wir nur oberflächliche Verhältnisse bezeichnen. Sobald von tiefern Verhältnissen die Rede ist, tritt sogleich eine andre Sprache ein, die poetische.”

Nota sobre a epígrafe: a tradução do alemão é da nossa responsabilidade.

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*Poemas coligidos por Luís de Barreiros Tavares

 

Manoel T. R.-Leal, 2010-2011. Café Rosa Choque – Lisboa – Rua de Macau – © L. de B. Tavares



Manoel Tavares Rodrigues-Leal (Lisboa, 1941–2016). Aluno das Faculdades de Direito de Lisboa e de Coimbra até ao 5.º ano, mas não concluindo. Conviveu em jovem com Herberto Helder no café Monte Carlo frequentando “as festas meio clandestinas, as parties de Lisboa dos anos 60 e 70”. Conheceu Gastão Cruz, Maria Velho da Costa, José Sebag, Pedro Tamen, entre outros. Trabalhou na Biblioteca Nacional como “Auxiliar de Armazém de Biblioteconomia”. “A minha chefe deixava-me sair mais cedo para acabar o meu primeiro livro”, A Duração da Eternidade (2007). Cinco livros de edição de autor (de 2007 a 2011). Poemas na “Nova Águia”, “Caliban”, “Triplov”, “Mirada (BR)”, “Pessoa Plural (Brown University, University of Warwick, Universidad de los Andes), “A Ideia”, “Ameopoema (BR)”, “Occaso: voci poetiche dal Portogallo” (IT), “Athena”, etc. Os últimos dias de vida foram trágicos. Caído no quarto, morreu absolutamente só no Natal e passagem do Ano 2015–2016.