A alegria de amor é bastante e há o antigo e mero mar… | poemas inéditos de Manoel T. R.-Leal

 por Manoel Tavares Rodrigues-Leal | 



O mítico eléctrico 28 (Chiado – Lisboa) – Frame de «Pessoa, persona, pessoa como eu» – Filme documentário sobre Manoel T. R.-Leal e Fernando Pessoa (2020) | por Luís de Barreiros Tavares e Daniel Monteiro.

Quatro poemas inéditos do caderno 
A Noite (1967). 

Quatro poemas inéditos do caderno Os Passos do Amor (1977).



«O córrego chora.

A voz da noite…


(Não desta noite, mas de outra maior).»

Manuel Bandeira – do poema «Noite morta» - Petrópolis, 1921.


«Na noite profunda

morrem as estrelas.

Uma dor me inunda:

amor de coisas belas.»

[Nella notte profonda / si consumano le stelle. / Un dolore m’innonda: / un amor di cose belle.]

Sandro Penna


«Mas poeta é esta atenção pura a todas as coisas» 

M. T. R.-Leal (num poema em «Homenagem a Pier Paolo Pasolini» – recordando agora os 50 anos da sua morte – 2/11/75)


Caderno A Noite

I

Alcanço a noite eu próprio

na esfera do café

               na extremidade do cigarro

sabe-me o poema aberto

à cidade que é

e o círculo do meu abraço

falta real

                 se também nulo

ao corpo deitado


Lx. 29/7/67


II

Silêncio que oscila

sólido     lua densa

amor que grita

a exacta palavra

denúncia habita

na sede escrava


Lx. 3/4/67 – 27/7/67


III

Tarde de brancas 

                       silhuetas amplas 

mais tarde sem raízes

palavras mais que ditas

tarde adicional

           rente à cidade


Lx. 27/7/67  


IV

«Avenida da Liberdade»


Estática avenida

de sol perpendicular

reclinada no asfalto

habitual e recusada

genérico mar de gente

e carros a voarem

à noite geográfica

desenhada e drástica


Lx. 31/7/67 


*


«Caem palavras ao rio,

palavras que se procuram 

 – porque o amor já não espera

pelas palavras maduras – 

e se deixam, levemente,

como passos pela rua.»

Fernando Echevarría, de um poema de Tréguas para o Amor (1958)


«Palabras de amor, palabras»

Gerardo Diego – citado por Echevarría na obra citada.



Caderno Os Passos do Amor


V

Rara, raríssima a rapariga

que clarear meu dia de mudança.

São os passos do amor que colho rentes,

quando és tu, espelho sombrio e claro, a acenares rosas, pupilas, infinitamente.


Lx. 12-1-77


VI

Anéis da mais feroz solidão já não te anuncio

nem o oco eco de obsessões.


Já não te visito carne humedecida e cio:

delírios, meu amor, antiquíssimas visões.


Lx. 16-1-77 – (à Mali)


VII

Às vezes morrer é desejar

pranto visível

corpo audível

uma submarina beleza inscrita de amar


Lx. 16-1-77


VIII

Ouve, nova manhã é clandestina.

Como abandonar-te ao azul ordenado das ondas?

Danças, comovida e branda, no olhar…

A alegria de amor é bastante e há o antigo e mero mar…


Lx. 16-1-77


*

Manuscrito do poema I — repare-se na diferença de caligrafia (1967) relativamente à do manuscrito em baixo


Manuscrito do poema VIII (1977)


*

Referências

Fernando Echevarría, Obra Inacabada, Prefácio de Maria João Reynaud, Porto, Afrontamento, 2006.

Manuel Bandeira, Obras Poéticas, Lisboa, Minerva, 1956.

Sandro Penna, No Brando Rumor da Vida, trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo, Lisboa, Assírio & Alvim, 2003

Pontes: quatro artigos recentes incluindo poemas dos mesmos cadernos (A Noite e Os Passos do Amor). Um artigo na presente revista (Mirada), e os restantes três artigos nas revistas Athena, Caliban e Triplov.

Mirada – 03/08/2025

Athena – 29/09/2025

Caliban – 07/10/2025

Triplov – 04/11/2025


*

Manoel T. R.-Leal e Luís de B. Tavares – café «Laranja Limão» (c 2012 – Anjos – Lisboa)



*Poemas coligidos por Luís de Barreiros Tavares



Manoel Tavares Rodrigues-Leal
 (Lisboa, 1941–2016). Foi aluno das Faculdades de Direito de Lisboa e de Coimbra até ao 5.º ano, não concluindo. Conviveu em jovem com Herberto Helder no café Monte Carlo frequentando “as festas meio clandestinas, as parties de Lisboa dos anos 60 e 70”. Conheceu Sophia (era primo do marido da poeta, Francisco Sousa Tavares), Gastão Cruz, Maria Velho da Costa, José Sebag, Pedro Tamen, José Bação Leal, entre outros. Trabalhou na Biblioteca Nacional como “Auxiliar de Armazém de Biblioteconomia”. “A minha chefe deixava-me sair mais cedo para acabar o meu primeiro livro”, A Duração da Eternidade (2007). Cinco livros de edição de autor (de 2007 a 2011). Poemas na “Nova Águia”, “Caliban”, “Triplov”, “Mirada (BR)”, “Pessoa Plural (Brown University, University of Warwick, Universidad de los Andes), “A Ideia”, “Ameopoema (BR)”, “Occaso: voci poetiche dal Portogallo” (IT), “Athena”, etc. Os últimos dias de vida foram trágicos. Caído no quarto, morreu absolutamente só no Natal e passagem de Ano 2015–2016.