por Taciana Oliveira|
Sarah Munck lança “Esquecemos os nomes dos pássaros”, obra poética que confronta violência, memória e silenciamentos
A poeta e professora mineira Sarah Munck apresenta ao público seu novo livro, Esquecemos os nomes dos pássaros (Provérbio Editora, 97 págs.), uma obra que se firma como manifesto literário contra o esquecimento e a barbárie. Com forte dimensão política e estética, o livro articula poesia, memória e resistência, dando voz a experiências historicamente silenciadas e transformando a linguagem em espaço de denúncia e refúgio. Com texto de quarta capa assinado por Mírian Freitas e posfácio da escritora Gisela Maria Bester, a publicação propõe uma travessia entre o íntimo e o coletivo. Munck constrói versos que ecoam vozes femininas, memórias de guerra, violências naturalizadas e a urgência de preservar vidas e narrativas ameaçadas. “Busquei construir um tecido de imagens que se expandem entre o íntimo e o político, revelando as marcas da violência, da guerra e da desigualdade social”, afirma a autora.
Viabilizado pelo Edital Murilão do Programa Cultural Murilo Mendes, da Fundação Cultural Ferreira Lage (FUNALFA), o livro se destaca pelo compromisso com a acessibilidade. Um QR code na capa permite ao leitor acessar audiodescrição, declamação em voz pela própria autora e interpretação em Libras realizada por profissional da área. Organizado em seções como “enxoval”, “extermínio” e “angelus novus”, o livro funciona como um mosaico de poemas que se conectam por ressonâncias simbólicas. Um dos fios centrais é a figura de Kitty, do diário imaginário de Anne Frank, que reaparece nas cartas-poemas de Sarah Munck como confidente e testemunha. “A palavra ‘Kitty’ me permite escrever para além de mim… é uma escuta, uma forma de registrar o que muitas mulheres ainda não puderam dizer em voz alta”, explica. Em diálogo com autoras e autores como Walter Benjamin, Heba Abu Nada, Federico García Lorca e Maria Teresa León, Munck constrói uma obra que amplia o campo da poesia contemporânea.
Abaixo segue uma entrevista com Sarah Munck:
1. O livro nasce da urgência de lembrar e resistir. Você afirma que a poesia pode “preservar o humano em meio à perversidade”. Como esse compromisso ético se manifesta na sua escrita e no processo de criação de Esquecemos os nomes dos pássaros?
Esquecemos os nomes dos pássaros é, antes de tudo, um livro escrito contra o esquecimento. Quando afirmei que a poesia pode “preservar o humano em meio à perversidade”, eu pensava na imagem benjaminiana do “Anjo da História”, essa figura que encara o passado e vê um campo de ruínas, vidas suspensas, fragmentos que ainda exigem leitura. A escrita nasce desse gesto: enfrentar os escombros e, mesmo assim, insinuar um fio de futuro. A palavra é frágil, mas teimosa. Vigia, resiste, documenta.
Durante o processo, compreendi que ética e estética não se apartam. A linguagem que procuro não se contenta com ornamento: ela fere e sutura, denuncia e ampara. Meu compromisso ético aparece quando permito que a palavra não suavize a violência, mas também não a converta em espetáculo. Busco um modo de dizer que honre os nomes apagados, que devolva alguma dignidade ao que a barbárie tenta reduzir a número, estatística, ruído.
Por isso o livro é tecido de ecos e assombrações: corpos interrompidos, crianças “chorando os vivos”, filas de pão, mães insone. Mas também de gestos mínimos de sobrevivência: o vagalume que escolhe ser luz e não bala, a orquídea que insiste em florir sobre um canteiro de ossos. A poesia, para mim, é essa devolução de atenção ao que ainda pulsa, mesmo quando quase já não existe.
2. A figura de “Kitty”, do diário de Anne Frank, atravessa o livro como uma interlocutora simbólica. Por que escolheu esse diálogo e o que significa, para você, escrever “para alguém que escuta, mesmo em meio ao silêncio e à guerra”?
A presença da Kitty surgiu porque ela representa, para mim, um modo muito particular de escrever em meio ao perigo: escrever para alguém que não apenas lê, mas que escuta. Minha relação com O diário de Anne Frank nasceu na infância e retornou com força quando reli o livro em 2019. Foi ali que compreendi como Anne, cercada pelo terror, criou para si uma escuta íntima, uma presença capaz de acolher o que ela não podia dizer ao mundo.
Ao escolher dialogar com Kitty, quis reencontrar esse gesto ancestral das mulheres que escrevem mesmo sob a suspeita de que talvez jamais sejam lidas. Kitty é mais que personagem: é um espaço de confiança. Escrever para ela é afirmar: “eu sei que existe alguém capaz de ouvir aquilo que tantas mulheres, crianças e sobreviventes não puderam dizer”.
Portanto, quando me dirijo à Kitty, repito esse gesto de Anne e o estendo às meninas e mulheres silenciadas tanto pela história quanto pelo presente. Ela funciona como guardiã daquilo que não encontra espaço público, uma testemunha sensível que me permite escrever com franqueza, fragilidade e responsabilidade. Escrever para Kitty é escrever para todas aquelas pessoas que, mesmo envoltas em ruído, ainda precisam confiar suas dores e percepções a alguém que as acolha sem hostilidade. É um modo de afirmar: há, sim, um ouvido possível, mesmo quando o mundo está em guerra.
3. A obra está organizada em seções como “enxoval”, “extermínio” e “angelus novus”, compondo uma estrutura de ecos e ressonâncias. Como foi o processo de construir essa arquitetura poética entre o íntimo e o político, entre o trauma e a esperança?
A estrutura do livro nasceu quase como uma coreografia. Eu sentia que precisava organizar a dor, não para dominá-la, mas para compreendê-la. “Enxoval”, “extermínio” e “angelus novus” não são partes estanques: são três movimentos que (também) atravessam o corpo feminino, a memória coletiva e a crítica histórica.
O primeiro é o nascimento, o rito, o tecido íntimo em que aparecem as heranças, inclusive as violências primeiras. O segundo é o confronto direto com o horror coletivo. E o terceiro é o ponto de inflexão, o olhar que tenta reencontrar a possibilidade de futuro mesmo diante do trauma e da barbárie. A construção dessas seções surgiu da necessidade de reconhecer que a dor e a esperança coexistem, e que a poesia pode, sim, transitar entre essas duas forças sem apagá-las.
Enquanto escrevia, percebi que a intimidade é sempre política, e que a política toca, inevitavelmente, o mais íntimo. A estrutura do livro é, portanto, uma tentativa de organizar essa tensão, permitindo que um poema responda ao outro, que a dor encontre uma fresta e que a esperança, mesmo exígua, possa respirar. Assim, a estrutura não é apenas formal; é ética. Ela permite que a leitora e o leitor caminhem do quarto ao campo de batalha, do berço ao destroço; e retornem trazendo outra percepção de vida e de perda. No fundo, essa arquitetura nasce da percepção de que não há fronteira entre o corpo que sofre e o mundo que colapsa: ambos se espelham. E a poesia é o lugar no qual esse encontro se faz tangível.
4. Esquecemos os nomes dos pássaros dialoga com autores e autoras como Walter Benjamin, Heba Abu Nada e García Lorca. Que papel essas vozes desempenharam na tessitura da obra e de que forma elas te ajudam a pensar o lugar da arte em tempos de barbárie?
As vozes de Benjamin, Heba Abu Nada, García Lorca e María Teresa León atuam como linhas de força que atravessam o livro. De Benjamin, aprendo a olhar para as ruínas que o presente produz, não apenas as ruínas históricas, mas também as que se acumulam na velocidade das redes, na erosão das narrativas, no excesso de imagens que não deixa espaço para o luto. Ele me recorda que a história não avança em linha reta rumo ao progresso: ela deixa rastros, detritos, vidas interrompidas. E que a poesia pode ser uma forma de interromper essa marcha, de testemunhar aquilo que a pressa do mundo tenta apagar.
Heba Abu Nada, cuja existência e obra foram quebradas pela guerra, oferece um modelo de delicadeza radical: a coragem de sustentar beleza mesmo quando tudo ao redor insiste em ruir. Lorca me lembra que a metáfora também sangra, que a linguagem carrega corpos, lutos e revelações e que, por isso, escrever nunca é um gesto neutro. María Teresa León, por sua vez, amplia o sentido de liberdade como um vocabulário em permanente reconstrução, uma língua que resiste ao silêncio imposto.
Todas essas vozes, juntas, me fazem compreender que a arte, em tempos de barbárie, não é um adorno: é uma forma de insurgir-se contra o apagamento e impedir que a indiferença se normalize. Muito embora a poesia não detenha a violência, ela impede que o humano se perca por completo. A poesia nos devolve o gesto de nomear o mundo, mesmo quando o mundo parece irrecuperável. É nessa ínfima inflexão de fé, frágil, mas ainda luminosa, que escrevo.
Sobre a autora
Sarah Munck é poeta, professora e pesquisadora. Natural de Juiz de Fora (MG), é graduada, mestre e doutora em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Atua como professora efetiva do Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (IF Sudeste MG), campus Santos Dumont. Com menção honrosa no Prêmio Ria Livraria, é autora de “O diagnóstico do espelho” (2023) e agora lança “Esquecemos os Nomes dos Pássaros” (2025).
FICHA TÉCNICALivro: Esquecemos os nomes dos pássaros
Autora: Sarah Munck
Editora: Provérbio Editora
Número de páginas: 97
Ano: 2025
Gênero: Poesia
ISBN: 978-65-88135-69-3
Adquira a obra: no site da Provérbio Editora ou diretamente com a autora via esquecemososnomesdospassaros@
gmail.com
*Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo”. Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.


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