por *Taciana Oliveira |
1.“Poemaria” nasce inspirado no cinema direto de Eduardo Coutinho. De que maneira essa influência guiou suas escolhas éticas e estéticas na relação com os entrevistados, especialmente no equilíbrio entre o real, o performático e o poético?
Quando eu via os filmes do Eduardo Coutinho, o que sempre me impactava não era apenas a forma, mas a precisão brutal do equilíbrio que ele construía: depoimentos de uma potência quase insuportável — social, poética, antropológica — articulados sem truques, sem ilusões, somente através da escuta radical e da mise-en-scène mínima. Desde Cabra Marcado para Morrer, ele dominava um dispositivo capaz de extrair do outro não apenas relatos, mas a própria experiência viva, o pensamento em combustão, a palavra em estado de verdade.
Coutinho foi mestre em algo que poucos compreenderam: criar circunstâncias que induzem o personagem a acessar camadas que normalmente não se acedem — por pudor, por hábito, por defesa. Uma poética construída na confiança e no risco.
Quando concebi Poemaria, toda a pesquisa partiu exatamente dessa herança. O filme nasce como um híbrido entre performance e depoimento, mas sem perder o rigor do dispositivo. Não é apenas “gente falando poesia”: é um laboratório de escuta, onde arte, sociedade e intimidade são tensionadas diante da câmera para produzir não um registro, mas um acontecimento.
A intersecção entre Coutinho e Poemaria está menos na imitação formal e mais na ética do encontro. Me debrucei sobre a escola continiana para entender quais dispositivos eram necessários para que cada entrevistado atravessasse a superfície e chegasse ao que realmente importava — aquilo que não se diz facilmente.
O resultado final de Poemaria é essa síntese: um filme que assume a performance como gesto, a palavra como corpo, e o depoimento como matéria viva — sempre orientado pelo princípio Coutiniano de que o cinema só existe quando alguém se arrisca a falar diante de alguém disposto a escutar de verdade.
2. O filme trata a poesia como força que atravessa o íntimo e o coletivo. Durante as filmagens, houve algum momento ou depoimento que redefiniu sua compreensão sobre o papel da poesia na vida das pessoas?
O depoimento da Adélia Prado, para mim, foi um divisor de águas — pessoal e artisticamente. Antes e depois. Como pessoa, escritor e cineasta, eu saí daquela conversa outro. E isso não foi uma impressão isolada: muita gente que assistiu ao filme relatou a mesma sensação.
Adélia fez algo raro. Ela conseguiu esmiuçar, com uma lucidez poética quase desconcertante, aquilo que geralmente é impossível de formular sobre a poesia e sobre o próprio fazer poético. Alternando seus textos, sua fala cotidiana e uma retórica que não se apoia em abstrações, ela articulou o que normalmente permanece no indizível.
Muitos depoimentos do filme me emocionaram profundamente, mas o da Adélia ocupa um lugar absolutamente singular. É um marco — na minha trajetória e na trajetória do Poemaria. Não só porque engrandeceu o filme, mas porque revelou, com precisão, como a poesia atravessa simultaneamente o íntimo e o coletivo, o que somos e o que compartilhamos.
3. O estúdio minimalista funciona quase como um ‘templo da escuta’. Como foi a construção desse espaço e de que forma ele influenciou a entrega emocional dos participantes e a atmosfera do filme?
Você sabe: o mágico não revela o segredo da magia…(risos). Mas posso dizer que usamos uma combinação de dispositivos muito precisos. Isso vai desde um estudo profundo que fiz da psicanálise até a forma específica como abordávamos cada entrevistado, cada personalidade.
Criamos um ambiente que não era apenas um estúdio — era um espaço intimista, cuidadosamente preparado. A equipe, reduzida e muito afinada, sabia exatamente como receber cada convidado para que se sentisse seguro, confortável e disposto a se expor com verdade.
As gravações aconteciam, em geral, à noite. Antes de filmar, partilhávamos um pequeno jantar, abríamos uma garrafa de vinho, conversávamos. Nada forçado. Apenas convivência. E, quando eles percebiam, já estavam ali — falando, revelando, declamando poesia diante da câmera.
O processo inteiro tinha algo de ritual. E muitos dos momentos que surgiram foram realmente emocionantes.
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| Adélia Prado e Davi Kinski |
4. “Poemaria” levou quase uma década para se concretizar e foi majoritariamente independente. O que este percurso longo e artesanal lhe ensinou sobre persistência, criação e o próprio fazer documentário no Brasil?
Fazer cinema no Brasil é um ato de resistência. De coragem extrema. Não é retórica — é literal. Produzir já é difícil, e ainda existe um distanciamento histórico do público com a própria cinematografia. Às vezes, parece um “todos contra um”. Mesmo assim, quem trabalha com audiovisual persiste porque sabe que o Brasil é um gigante cultural, e que esse país precisa ser documentado, interpretado, esmiuçado. É isso que sustenta o cinema independente.
Poemaria é meu primeiro longa-metragem, e posso dizer que aprendi muito — em todos os níveis. Nove anos de processo. E, diante de tantas dificuldades, ver o filme encontrar reconhecimento é uma alegria enorme. Não só em festivais do Brasil, mas também no exterior. Agora, em dezembro, teremos sessões na China, Índia, Los Angeles, Nova York. É muito gratificante ver o trabalho circular dessa maneira.
Eu também sou escritor, e já enfrento as dificuldades de publicar e sustentar literatura no país. Mas o cinema é um desafio ainda maior: envolve equipe, custos altos, tempo, infraestrutura, finalização. É um processo que testa todos os limites. Por isso digo que é uma escolha corajosa — e consciente.
Seguimos, apesar de tudo. Inclusive, com o desejo de desdobrar Poemaria em uma série documental, dessa vez dedicada especificamente a escritores e poetas. Mas, como sempre, estamos na batalha. Porque fazer cinema no Brasil continua sendo exatamente isso: resistência cotidiana.
5. A trajetória internacional do filme mostra que a poesia, muitas vezes vista como algo local ou íntimo, atravessa fronteiras. Por que você acha que “Poemaria” ressoa tão profundamente com públicos de países e culturas tão diferentes?
Poemaria ressoa tão profundamente em públicos de países e culturas distintas porque foi concebido na lógica do cinema direto e do dispositivo Coutiniano como prática de escuta. A intenção sempre foi essa: extrair depoimentos que investigassem o que há de humano no homem — para usar a expressão clássica.
O filme não trata apenas de poesia e literatura. Ele aborda a poética das vivências, o olhar singular de cada pessoa, a maravilha da diversidade cultural e as narrativas que emergem desses encontros. Por isso, quando o público internacional escuta esses poemas, esses relatos, essas conversas, há identificação imediata. Somos feitos da mesma matéria-prima: somos seres humanos antes de sermos qualquer nacionalidade.
E, honestamente, se o mundo estivesse mais disposto a ouvir o outro e a aprender com as diferenças culturais — ao invés de reagir a elas — não estaríamos diante de tantas guerras, conflitos e crises sociais.
Então, embora o filme tenha como eixo principal a poesia — especialmente a poesia brasileira, a poesia lusófona — ele ecoa em outros países justamente porque fala do essencial. Ele fala do ser humano, em sua fragilidade, força e potência.




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