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Poemaria: Davi Kinski comenta influências, desafios e impacto internacional do filme

 por *Taciana Oliveira | 



Poemaria se constrói como um laboratório sensível onde depoimento, performance e poesia se fundem, não como artifício, mas como experiência. Ao longo de quase uma década de criação independente, Kinski ergueu um dispositivo cinematográfico que vai além da mera captação de relatos. No estúdio minimalista, um verdadeiro “templo da escuta”, como o próprio diretor descreve, cada convidado atravessa camadas íntimas e coletivas, permitindo que a palavra apareça em estado de verdade. No encontro com nomes como Adélia Prado, Leona Cavalli, Jean Wyllys e Marcelino Freire, surge um painel que revela que a poesia transborda o texto e se inscreve nas vidas, memórias e escombros de cada um.

A força de Poemaria ultrapassou fronteiras. Depois da estreia no Festival de Gramado, o filme coleciona prêmios e exibições no Brasil, na China, na Índia e nos Estados Unidos — um alcance que surpreende somente à primeira vista. Porque, embora nascido de uma tradição profundamente brasileira, o filme fala do essencial: a vulnerabilidade, a escuta, o desejo e as múltiplas formas de existir no mundo. Talvez seja por isso que ressoa em públicos tão distintos. A palavra, afinal, é matéria universal, sobretudo quando alguém se arrisca a pronunciá-la diante de uma câmera disposta a ouvir. Nesta conversa, Davi Kinski aprofunda os caminhos éticos, estéticos e emocionais que moldaram seu filme, a herança de Coutinho, o impacto avassalador do depoimento de Adélia Prado, a construção ritualística do estúdio de filmagem, o percurso desgastante do cinema independente brasileiro e a recepção calorosa da obra em diferentes culturas.


1.“Poemaria” nasce inspirado no cinema direto de Eduardo Coutinho. De que maneira essa influência guiou suas escolhas éticas e estéticas na relação com os entrevistados, especialmente no equilíbrio entre o real, o performático e o poético?


Quando eu via os filmes do Eduardo Coutinho, o que sempre me impactava não era apenas a forma, mas a precisão brutal do equilíbrio que ele construía: depoimentos de uma potência quase insuportável — social, poética, antropológica — articulados sem truques, sem ilusões, somente através da escuta radical e da mise-en-scène mínima. Desde Cabra Marcado para Morrer, ele dominava um dispositivo capaz de extrair do outro não apenas relatos, mas a própria experiência viva, o pensamento em combustão, a palavra em estado de verdade.


Coutinho foi mestre em algo que poucos compreenderam: criar circunstâncias que induzem o personagem a acessar camadas que normalmente não se acedem — por pudor, por hábito, por defesa. Uma poética construída na confiança e no risco.


Quando concebi Poemaria, toda a pesquisa partiu exatamente dessa herança. O filme nasce como um híbrido entre performance e depoimento, mas sem perder o rigor do dispositivo. Não é apenas “gente falando poesia”: é um laboratório de escuta, onde arte, sociedade e intimidade são tensionadas diante da câmera para produzir não um registro, mas um acontecimento.


A intersecção entre Coutinho e Poemaria está menos na imitação formal e mais na ética do encontro. Me debrucei sobre a escola continiana para entender quais dispositivos eram necessários para que cada entrevistado atravessasse a superfície e chegasse ao que realmente importava — aquilo que não se diz facilmente.


O resultado final de Poemaria é essa síntese: um filme que assume a performance como gesto, a palavra como corpo, e o depoimento como matéria viva — sempre orientado pelo princípio Coutiniano de que o cinema só existe quando alguém se arrisca a falar diante de alguém disposto a escutar de verdade. 




2. O filme trata a poesia como força que atravessa o íntimo e o coletivo. Durante as filmagens, houve algum momento ou depoimento que redefiniu sua compreensão sobre o papel da poesia na vida das pessoas?


O depoimento da Adélia Prado, para mim, foi um divisor de águas — pessoal e artisticamente. Antes e depois. Como pessoa, escritor e cineasta, eu saí daquela conversa outro. E isso não foi uma impressão isolada: muita gente que assistiu ao filme relatou a mesma sensação.


Adélia fez algo raro. Ela conseguiu esmiuçar, com uma lucidez poética quase desconcertante, aquilo que geralmente é impossível de formular sobre a poesia e sobre o próprio fazer poético. Alternando seus textos, sua fala cotidiana e uma retórica que não se apoia em abstrações, ela articulou o que normalmente permanece no indizível.


Muitos depoimentos do filme me emocionaram profundamente, mas o da Adélia ocupa um lugar absolutamente singular. É um marco — na minha trajetória e na trajetória do Poemaria. Não só porque engrandeceu o filme, mas porque revelou, com precisão, como a poesia atravessa simultaneamente o íntimo e o coletivo, o que somos e o que compartilhamos. 


3. O estúdio minimalista funciona quase como um ‘templo da escuta’. Como foi a construção desse espaço e de que forma ele influenciou a entrega emocional dos participantes e a atmosfera do filme?


Você sabe: o mágico não revela o segredo da magia…(risos). Mas posso dizer que usamos uma combinação de dispositivos muito precisos. Isso vai desde um estudo profundo que fiz da psicanálise até a forma específica como abordávamos cada entrevistado, cada personalidade.


Criamos um ambiente que não era apenas um estúdio — era um espaço intimista, cuidadosamente preparado. A equipe, reduzida e muito afinada, sabia exatamente como receber cada convidado para que se sentisse seguro, confortável e disposto a se expor com verdade.


As gravações aconteciam, em geral, à noite. Antes de filmar, partilhávamos um pequeno jantar, abríamos uma garrafa de vinho, conversávamos. Nada forçado. Apenas convivência. E, quando eles percebiam, já estavam ali — falando, revelando, declamando poesia diante da câmera.


O processo inteiro tinha algo de ritual. E muitos dos momentos que surgiram foram realmente emocionantes. 

Adélia Prado e Davi Kinski


4. “Poemaria” levou quase uma década para se concretizar e foi majoritariamente independente. O que este percurso longo e artesanal lhe ensinou sobre persistência, criação e o próprio fazer documentário no Brasil?


Fazer cinema no Brasil é um ato de resistência. De coragem extrema. Não é retórica — é literal. Produzir já é difícil, e ainda existe um distanciamento histórico do público com a própria cinematografia. Às vezes, parece um “todos contra um”. Mesmo assim, quem trabalha com audiovisual persiste porque sabe que o Brasil é um gigante cultural, e que esse país precisa ser documentado, interpretado, esmiuçado. É isso que sustenta o cinema independente.


Poemaria é meu primeiro longa-metragem, e posso dizer que aprendi muito — em todos os níveis. Nove anos de processo. E, diante de tantas dificuldades, ver o filme encontrar reconhecimento é uma alegria enorme. Não só em festivais do Brasil, mas também no exterior. Agora, em dezembro, teremos sessões na China, Índia, Los Angeles, Nova York. É muito gratificante ver o trabalho circular dessa maneira.


Eu também sou escritor, e já enfrento as dificuldades de publicar e sustentar literatura no país. Mas o cinema é um desafio ainda maior: envolve equipe, custos altos, tempo, infraestrutura, finalização. É um processo que testa todos os limites. Por isso digo que é uma escolha corajosa — e consciente.


Seguimos, apesar de tudo. Inclusive, com o desejo de desdobrar Poemaria em uma série documental, dessa vez dedicada especificamente a escritores e poetas. Mas, como sempre, estamos na batalha. Porque fazer cinema no Brasil continua sendo exatamente isso: resistência cotidiana. 


5. A trajetória internacional do filme mostra que a poesia, muitas vezes vista como algo local ou íntimo, atravessa fronteiras. Por que você acha que “Poemaria” ressoa tão profundamente com públicos de países e culturas tão diferentes?


Poemaria ressoa tão profundamente em públicos de países e culturas distintas porque foi concebido na lógica do cinema direto e do dispositivo Coutiniano como prática de escuta. A intenção sempre foi essa: extrair depoimentos que investigassem o que há de humano no homem — para usar a expressão clássica.


O filme não trata apenas de poesia e literatura. Ele aborda a poética das vivências, o olhar singular de cada pessoa, a maravilha da diversidade cultural e as narrativas que emergem desses encontros. Por isso, quando o público internacional escuta esses poemas, esses relatos, essas conversas, há identificação imediata. Somos feitos da mesma matéria-prima: somos seres humanos antes de sermos qualquer nacionalidade.


E, honestamente, se o mundo estivesse mais disposto a ouvir o outro e a aprender com as diferenças culturais — ao invés de reagir a elas — não estaríamos diante de tantas guerras, conflitos e crises sociais.


Então, embora o filme tenha como eixo principal a poesia — especialmente a poesia brasileira, a poesia lusófona — ele ecoa em outros países justamente porque fala do essencial. Ele fala do ser humano, em sua fragilidade, força e potência.




Davi Kinski desenvolve trabalhos em teatro, cinema e literatura. Formado pela Academia Internacional de Cinema, dirigiu sete curtas, incluindo “Cineminha”, premiado e exibido em festivais na Itália e nos EUA. Seu primeiro longa-metragem documental “Poemaria” foi premiado em primeiro lugar com o Prêmio da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo em 2024 para a finalização, com este filme estreou mundialmente no 52o Festival de Cinema de Gramado em 2024 na mostra competitiva de longas documentais o mesmo ganhou “Melhor Documentário Internacional ” no festival TIFA (Tietê Film Awards), Melhor Filme do Festival Cinema e Transcendência, Menção Honrosa do Santos Film Festival e ainda particpou de mais de 10 festivais inclusive internacionais em 2025. Também em novembro de 2025 lança como diretor o curta-metragem "Alice, cinco minutos antes do Pôr do Sol " já selecionado para premier nos EUA no Culver City Festival em Hollywood, bem como o mesmo já ganhou “Melhor Curta-metragem International" no Festival Tamizhagam na Índia. Como ator, foi indicado ao prêmio de Melhor Ator no Festival de Gramado de 2008 pelo filme Nome Próprio e participou de diversas produções teatrais, incluindo o monólogo “Lixo e Purpurina”. Na literatura, publicou o livro de poesia “Corpo Partido” e a biografia “Pasolini, do Neorrealismo ao Cinema Poesia”, indicada ao Prêmio Jabuti. Também é letrista, com composições registradas em projetos comov“Buscando Buskers” e “A Trilha Sonora da Cidade”, premiados internacionalmente. Além disso, ministrou aulas em instituições como Oficina Oswald de Andrade e atuou colaborando em curadorias em eventos como a FLIP e ações no MASP e Instituto Mix Brasil.









*Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo”. Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.