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por Aleksandro F. de Paula___


Imagine uma pessoa sendo criada com todo o cuidado, todo o carinho do mundo, dentro de um ambiente familiar seguro e feliz. Seus pais evitam que ela tenha contato com qualquer coisa que sugira a violência — filme, desenho, gibi, brincadeira — isso é coisa para menino, ela é uma garota, sempre a encheram tão somente de mimos e afeto.

Imagine que essa garotinha, já então uma adolescente, tem seu coração invadido por todo o feitiço, toda a mística encantadora do amor. Já então com uma tonalidade um pouco diferente do que estava acostumada, mas com a mesma substância do amor cuidadoso e verdadeiro de que sempre fora alvo. Sua vida, de repente, é um conto de fadas. O príncipe encantado, um garotão que responde aos olhares de princesa, as deixas de apaixonada. Ele se diz encantado por ela também, ela enlouquece de amor. Agora sua existência é tudo aquilo; tantos contos de fadas assistidos e, então, ela era a protagonista. E o cara é um príncipe mesmo, enche-lhe de todo carinho e da afeição que ela sempre tivera.

Alguns meses de convivência e, de repente, ela recebe o primeiro tapa; informação difícil para apreender. Fica chocada com aquilo, mas, acima de tudo, está apaixonada. Como uma esponja, o seu amor absorve esta nova palavra sentida na pele virgem: Violência. E continua amando-o “mais que tudo”, como costuma dizer-lhe e repetir ao ouvido
Um segundo tapa já não é tão traumatizante, embora, o que sente, então, recorde a dor na alma do primeiro ato.

O terceiro, o quarto tapa... e, mais tarde, o primeiro murro; um olho roxo é mais evidente que a primeira olheira, causada pelas noites de insônia, quando o conhecera. O amor talvez seja a doença da alma. A mulher tem dessas coisas em sua singeleza; uma amiga dela nunca esquecera o primeiro amor, ainda que tenha durado tão pouco. O dela poderia perdurar por muito e muito tempo, se...

Quando o primeiro dente quebrado e a primeira tentativa de ele feri-la com uma faca de mesa acontecem, ela talvez já tivesse assimilado o termo “Violência”. Mas, ao contrário, se desespera ainda. Passa pela cabeça como seus pais não a prepararam para aquilo. No entanto, mais difícil de trazer consigo aquela feia cicatriz no tórax, é aceitar viver sem o seu grande amor. O primeiro e único amor.

Contudo, quando acontecem os cem números de tapas, de murros, o segundo corte no rosto — resultado de mais uma prova de amor dele — o primeiro e derradeiro tiro, ela, possivelmente, já tivesse assimilado a palavrinha maldita, e, talvez, fosse a única palavra que lhe restasse daquele “amor”. Mas, então, era uma compreensão já tardia e ineficaz, ainda que o manuseio da arma e a precisão dele não o fossem.

O pai dela já não consegue ver o resultado final de sua princesinha no velório. Com tanto amor e carinho a criara, e outro, usando das mesmas palavrinhas mágicas, a levara, tolamente, para aquele fim.




              Conto selecionado da obra O Mecanismo das Horas, Selo Redondezas, 2015.

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Sobre o autor


Aleksandro F. de Paula (Olinda/PE, 1976) é escritor e funcionário público. Publicou O Mecanismos das Horas (Selo Redondezas, 2015), 46 Escritos (Selo Birrumba, 2018), Nada mais e outros poemas (Selo Futurarte – Poesia, 2016) e A Criação do Temor e outros contos (Selo Redondezas, 20170. No prelo: Novos Escritos e Objetos Mortais Inusitados e outros contos.