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por Fernando de Souza__

..Não dá pé, não é direito
Não foi nada, eu não fiz nada disso e você fez um
Bicho de sete cabeças
Não dá pé, não tem pé nem cabeça
Não tem ninguém que mereça, não tem coração que esqueça...
(Zé Ramalho)

A expressão popular “bicho de sete cabeças”, assim como “fazer muito barulho por nada”, refere-se à (infindável) capacidade humana de projetar seus medos, ansiedades e angústias em situações aparentemente sem grandes repercussões factuais. Este “bicho” nos lembra a Hidra de Lerna, monstro da mitologia grega, também com várias cabeças, e que tinha a capacidade de regenerá-las toda vez que uma era cortada, crescendo outras em seu lugar. Via de regra, o grande problema dos “bichos de sete cabeças” é justamente este: assim como a Hidra, eles tendem a tomar proporções maiores do que as reais, especialmente quando mal ou não resolvidos...
Neto, personagem interpretado por Rodrigo Santoro, vive com seus pais e sua irmã mais velha, e frequenta o Ensino Médio. É um adolescente comum, com as dificuldades de relacionamento com os pais, dúvidas e conflitos, como outros de sua fase. Usa maconha esporadicamente com seus colegas, por lazer (ou falta dele!), embora mantenha conservados os vínculos familiares, sociais, escolares, etc. Certo dia, Neto e seus amigos, num ato de rebeldia, vandalizam e picham um prédio, somente ele é preso pela polícia e solto mediante a presença de seus pais: ele, autoritário; ela, passiva. A partir deste evento e da posterior descoberta, por seu pai, de um cigarro de maconha no bolso de sua roupa, a vida de Neto vira de cabeça para baixo, com sua internação compulsória num hospital psiquiátrico, autorizado por sua família, para um pretenso tratamento para dependência química - apesar de nenhum exame laboratorial, avaliação psiquiátrica ou psicológica ou sequer entrevista ser realizada durante sua internação – baseado exclusivamente na administração de medicamentos e exposto à realidade de pacientes dos mais variados problemas de saúde mental e de graus de gravidade clínica. Após um período de ressocialização malograda, acontece uma segunda internação noutra instituição, com efeitos terapêuticos e sequelas psicológicas igualmente desastrosas. A nova internação nem surte os “resultados esperados” (por quem?) como, ainda por cima, desestabiliza ainda mais a saúde mental de Neto, novamente entregue a um tratamento desumano, irresponsável e ineficaz. O que não era, até então, um grande problema, agora o é. Um bicho de sete cabeças.
O filme Bicho de sete cabeças (direção de Laís Bodanzky, 2001 ) nos possibilita várias reflexões. Numa esfera subjetiva - embora representativa da realidade de muitos jovens, tomando Neto como seu representante - pensamos nas experiências de descoberta e de rebeldia durante a adolescência, os conflitos geracionais presentes nas dinâmicas familiares, causados pelo autoritarismo, repressão, incompreensão e falta de abertura, e os impactos destas relações na vida afetiva e no comportamento dos adolescentes. Podemos refletir também na dificuldade em aceitarmos o “diferente” (eufemismo para “perturbador” ou “indesejável” tanto nos indivíduos de conduta transgressora juvenil como naqueles acometidos por psicopatologias, por apresentarem comportamentos “excêntricos” (outro eufemismo, desta vez para “inadequado”, “incômodo” ou “desagradável?). Ambos os “perfis” são frequentemente rotulados como desviantes e, em consequência, estigmatizados e marginalizados.

Entretanto, há uma reflexão – senão uma crítica – imprescindível neste filme: trata-se de um símbolo da luta antimanicomial no Brasil. Bicho de sete cabeças é baseado no livro Canto dos malditos, de Austregésilo Carrano Bueno, que conta suas experiências de internação em hospitais psiquiátricos, similares às de Neto.




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Fernando de Souza é psicólogo em formação, mestre em Letras e bacharel em Comunicação pela UFPE. Publicou artigos acadêmicos em Psicologia, concorreu e recebeu alguns prêmios de poesia entre 1991 e 1995.