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 por Branca Sobreira__



 por Juliana Berlim__



 por Quiercles Santana__

Foto: Kléber Santana

 

por Macello Camelo__


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 por Adriano B. Espíndola Santos___



Levanta a cabeça, estropício!”, com os grossos e insistentes gritos que escutou ao longo da curta vida, mínima, por último, feito uma chibatada na moleira, catapultou-se da letargia.

Arfava o peito de medo, só medo. Era o sentimento que vinha, complementado pela dúvida cruenta do que poderia suceder. Negligenciava tudo ao redor, uma espécie de defesa instintiva, para escapar dos vultos que lhe afetavam o andar, o falar; os sensos de vida.

Cada impulso de seu pai, o cioso vaqueiro Raimundo, ou respeitabilíssimo Mundo, como era conhecido, na chegada das lidas, revoltado com o quadro que se alastrara, envolvendo até a mulher e os filhos, que não davam conta do serviço, rendia à Quitéria a confusão e o atropelo, com as palavras que ela tentava decifrar, emboladas. Pelo citado ímpeto voraz, Quitéria comprimia-se em tremenda aflição. Nem por isso conseguia mudar o fluxo.

Dona Valda, a mãe zelosa, suplicou auxílio ao padre, que, ocupado, atendendo a duas comunidades, relatara que não teria tempo de vê-la tão cedo; que, se tivesse aperreio, ela mesma puxasse a novena de Santa Rita, para as causas difíceis, que ele, de onde estivesse, daria a sua bênção; que isso já valia muito; que a sua presença seria um detalhe, que competia a eventos graves; e que, pelo que notara, não vinha ao caso.

Mundo defendia-se, com a rabugem que lhe era peculiar, que estas seriam medidas necessárias, para que a filha não caísse na lassidão, na vadiagem, próprias de gente desocupada; sendo ela moça de família, muito bem criada.

Quitéria, no entanto, ouvia e nada entendia, deixando transparecer a indefinição, como se houvesse de fato, acompanhada de um comprometimento sobrenatural, algo que rápido atribuíram à obra do mal.

Não se levantava da cama fazia, exatos, quinze dias. Valda, por isso, cria em possessão, quebranto; o pai não media palavras: “Safadeza!”; que a “mocinha”, se não se ajeitasse, por si só, levaria umas boas peias, para aprender e para largar mão de tanta frescura. “Tudo tem um limite! Tudo tem limite! Se avexe, sinhá mocinha; tome tento!”.

Quitéria amofinava, progressivamente. Valda e os filhos, na surdina, tentaram rezadeira, orações de todas as ordens, e lhe entupiram de chás. Nada – ou quase nada – solapava a indisposição encruada.

Prostrada, sem forças nas pernas, com dores por todo o corpo, dedicou-se exclusivamente a orar, porque era temente a Deus; participou da novena levada a cabo pela mãe; seguiu a cartilha de boa filha, obediente. Mas, quando o pai abordava, afogueado, o processo desandava; e a moça, para se ver livre dos arroubos de loucura, colocava as mãos no rosto, principiava um choro miado, e declarava-se – ou queria declarar – ser frágil; estar tremendamente doente.

Valda não tirava os joelhos do chão e, também, não aprontava a casa e não preparava o de-comer, atrevendo-se a ser condenada pelo marido. Os irmãos de Quitéria, Francisco e Aldo, trabalhavam dobrado, para não serem enleados na história; e ajudavam a mãe, inclusive nos afazeres domésticos. Porém, sempre restava um bocado, que depressa Mundo percebia, com olhos de carcará sequioso, e reclamava arrumação; que não teria casado com mulher preguiçosa; que não teria criado filhos para serem prontos na vida; que, da próxima vez, cada um ia sentir o gosto de sua mão, para todos da vizinhança alcançarem o desgosto que sofria.

Claro, uma artimanha das mais potentes, perniciosa, porque ser recriminado em público por um pai e marido diligente – como se pintava – seria o decreto do esquecimento e da desgraça eterna. O homem, nesses tempos, ainda ditava os destinos dos seus; sejam bens ou pessoas coisificadas, que, contrariando os seus quereres, facilmente ganhariam o degredo da vida social, do convívio com a população.

O amor da mãe, que se colocava em choros convulsivos em frente à Quitéria, para protegê-la de uma premente tormenta, quando o pai partia para cima; segurando-o, em tempo de ser arrastada, levou a moça, episodicamente e aos poucos, a refletir, a recobrar os parcos sentidos.

Até que, sem meios, aproveitando o sono alheio, na calada da noite, tomou o rumo do vento, aprumada na jumentinha Juma. Não deixou carta, bilhete algum; ainda assim, Valda se comprazia com a ideia de liberdade, querendo ela mesma se debandar; e esperando, num dia próximo, ser resgatada por sua menina.

Por isso, Mundo vomitou o decreto: “Deserdada!”, pois que, argumentava, cheio de provas conjecturadas, teria se amigado ou virado rapariga; que não se falasse mais nisso. Qualquer atrevimento, praguejava, seriam todos deserdados, inclusive a mulher, que tanto o servira. Assim sendo, batera o cajado: assunto encerrado. Restaram ele e a imensa amargura.





Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance Flor no caos, pela Desconcertos Editora; e em 2020 o livro de contos, Contículos de dores refratárias, pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em diversas revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir - sempre. Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra. Especialista em Escrita Literária, pelo Centro Universitário Farias Brito. Atualmente cursa doutorado, também em Direito, pela Universidade de Salamanca. É, sobretudo, dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.


 

Por Taciana Oliveira__

Bozonazireptliano, arte-colagem por Caio Lucas


 por Thiago Noronha__



 por Ticiana Werneck__




Por Quiercles Santana__




por Djania Beserra__

por Fernando Ferrone__



por Adriano B. Espíndola Santos__



por Huggo Iora__


por João Gomes__

Fotografia; © Mauro Pimentel
por Vanessa S.__


por Cinthia Kriemler_



Março de 2018. Quênia.

Eutanásia. O último rinoceronte branco do norte está morto. Sudan, 45 anos, se torna parte das espécies e subespécies dizimadas pelo único predador que mata por ignorância, por lucro. E sempre por prazer. Um macho de sorte — mesmo que sorte seja uma palavra estranha de significado. Não foi abatido como caça. Sobreviveu. Capturado aos 10 meses de idade, foi enviado para um zoológico. Por 36 anos agradou humanos. Morre, agora, num santuário. E santuário também é uma palavra de significado incomum. Um cativeiro cercado por boas intenções. Uma fração da história que deveria ter sido. De um jeito ou de outro, Sudan foi uma vida desvirtuada. Deturpada em seu roteiro original. Fecha os olhos cercado pelos soldados que o protegem, pelos cuidadores e pelos pesquisadores que o observam há quase uma década. E quando o seu corpo de dois mil e trezentos quilos — tomado por uma infecção generalizada — segue para o descanso da morte, ainda ostenta, intocado, o cobiçado chifre que fez dele um alvo por toda a sua vida. Sudan é o último macho dos rinocerontes brancos do norte. Mas o seu sêmen congelado ainda é esperança de rebentos. Multiplicados, alimentarão a lenta e difícil tentativa de reverter a extinção da subespécie. Se os caçadores não se reproduzirem como pragas, se a cobiça não caminhar mais rápido do que a ciência, se todos os obstáculos forem superados, talvez seja possível repovoar a savana.
Não há lágrimas pelos rinocerontes brancos do norte. São apenas bichos.

Abril de 2014. Chibok, Nigéria.

Negras. Virgens. Crianças. 276 meninas sequestradas de uma escola em Chibok por fundamentalistas islâmicos do Boko Haram. Em nome do fanatismo, da dominação e do ódio, essa trindade depravada. Afastadas de suas famílias, impedidas de suas crenças, privadas de qualquer dignidade. Pasto fresco para as bestas que justificam atrocidades em nome de um deus falsificado, omisso, cúmplice. Caças impotentes.
47 fugas. 117 libertações em trocas árduas com o governo. Mas 112 meninas de Chibok nunca mais são vistas. Para elas, não há a proteção do santuário. Só o cativeiro. E as curras que não cessam. E a parição de bebês indesejados que crescem ao lado de seus reprodutores selvagens, influenciados pela bestialidade de crenças pervertidas. 112 meninas-matrizes, como as cadelas acorrentadas que cruzam e cruzam sem descanso até a morte por infecção, por inanição ou por maus-tratos.
Não serão resgatadas. Não têm nome ou foto nos jornais. São apenas meninas negras da África. Descarte.

Fevereiro de 2018. Dapchi, Nigéria.

Não bastaram. O sequestro das 276 meninas de Chibok. Os casamentos forçados. A destruição das identidades. O aniquilamento dos alicerces psicológicos, religiosos e morais. As crianças geradas por espermas sem nome. Mais 110 são raptadas em Dapchi. Meninas. Em plena luz do dia. Porque a luz do dia parece ter se tornado uma sentinela inútil e impotente. Em igualdade perversa, as meninas nigerianas de Dapchi são como as meninas de Chibok. E como os rinocerontes brancos do Quênia. Indefesas. Caçadas. Afastadas de suas histórias originais. Exiladas. Cativas. Desenraizadas. Vítimas da mesma ganância. Neles, o que se cobiça são os chifres. Nelas, os úteros.
No mundo, tudo permanece silêncio. São apenas estatísticas ruins do Terceiro Mundo.

2 de setembro de 2015. Costa da Turquia.

Aylan Kurdi não vence o mar. Como poderia? [... as águas são rotas de braços frios / que adormecem bebês / meninas, bebês meninos / para entregá-los, purificados / a um Criador envergonhado]. Aylan Kurdi é só um menino de três anos. Sírio. Como a maioria dos refugiados que fogem das guerras pelo poder. Aylan Kurdi é mais uma criança afogada numa praia da Turquia. Vira notícia porque a turca Nilüfer Demir e sua câmera estão em vigília na areia trágica. Ah, os fotógrafos! Esses seres despudorados que denunciam com suas lentes o que os olhares frágeis das pessoas frágeis preferem não ver. Ver é inquietação. Por isso, talvez, o mundo não tenha chorado por Galip, 5 anos, irmão de Aylan. O corpo dele não chegou à praia. Não foi fotografado.
Não ver é a alienação desejada.
Aylan e Galip saíram de casa para morrer no mar. Sem entender por que deixaram para trás o seu país. Crianças não entendem as guerras. Não deveriam, igualmente, fazer parte delas. Nem deveriam ser arrancadas das suas referências para serem jogadas no cativeiro do exílio.
Aylan e Galip fazem parte da cegueira cômoda. Afinal, são apenas meninos sírios.

20 de setembro de 2019. Morro do Alemão, Brasil.

Morro do Alemão. Ou qualquer outro morro. Desde que seja morro. Ágatha Vitória cai. 8 anos. Tiro nas costas. De fuzil. Coisa de covarde fardado. Mais uma — e já foram tantas. Crianças como ela, meninas como ela. Feitas de sorrisos, de brincadeiras, de fantasias. A de Mulher Maravilha invocando o sonho de um mundo de justiça e de mulheres guerreiras. E o pesadelo da realidade se contrapondo. Ceifando, ceifando, ceifando.
Crianças. Já nem se trata de quantas. Ágathas, Guilhermes, Alanas, Kayos, Larissas, Adrielles. Já nem se trata de onde. Nova Holanda, Borel, Alemão, Guarabu. Faz tempo que essa conta está perdida. E perdido é o que tudo está. Bala. Homem. Consciência. Futuro.

Outubro | Novembro | Dezembro de 2019. Em todos os grotões de pobreza.

Caixões brancos encaixados uns sobre os outros empilham-se em tédio cínico. Aguardam os hóspedes perpétuos que se deitarão entre suas paredes finas. E o cheiro do sangue que, mesmo lavado, se entranhará nas suas fibras fracas como uma droga perigosa, viciante, nauseante. Meninas. Meninos. De algum morro, de alguma comunidade, de algum bairro pobre. De qualquer lugar esquecido ou desprezado pela tal gente de bem.
Há também covas rasas. Esperando os que não podem pagar pela mísera decência de um caixão vagabundo. São bocas indigentes essas covas arreganhadas em espera curta. Sabem que logo será saciada a sua fome ávida. Mais tarde, corpos pequenos preencherão as suas entranhas. Perfurados por balas perdidas. Vítimas dos predadores que somos: os que abatem, os que aprisionam, os que empurram para a morte, os que perseguem até a extinção. Como os caçadores do Quênia, os estupradores da Nigéria, o ditador da Síria. Como os homens e mulheres de farda que atiram pelas costas.
Podemos fechar os olhos. Mais uma vez. Essa é a nossa expertise. Podemos desligar a TV, tampar os ouvidos, cobrir a cabeça. Podemos nos mudar para Paris. Ou para a Finlândia. Quando voltarmos, tudo estará terminado. E olharemos para o genocídio de meninas e meninos pobres com toda a piedade hipócrita que nos foi ensinada pelos nossos pais e pelas nossas igrejas. E nos sentaremos com um copo de cerveja, de vinho ou de uísque entre amigos que também terão acabado de voltar de Berlim ou de Barcelona. E discutiremos planos para reverter a extinção.
Em nossos planos, só uma falha. Não temos o sêmen do rinoceronte branco.




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Cinthia Kriemler é carioca e mora em Brasília. Autora, pela Editora Patuá, de O sêmen do rinoceronte branco (Contos, 2020). Tudo que morde pede socorro (Romance, 2019); Exercício de leitura de mulheres loucas (Poesia, 2018); Todos os abismos convidam para um mergulho (Romance, 2017) – finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018; Na escuridão não existe cor-de-rosa (Contos, 2015) – semifinalista do Prêmio Oceanos 2016; Sob os escombros (Contos, 2014); e Do todo que me cerca (Crônicas, 2012). Organizou a antologia de contos Novena para pecar em paz a convite da Editora Penalux, em 2017. Tem textos e poemas publicados em diversas antologias e em revistas literárias. 
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por Zeca Viana__

 Sebald Beham, Impossível, 1549

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