por
Tânia Consuelo___
Francesca Woodman |
Viver
reprisando mais uma vez.
Algo redundante. Estava cansada da cor estéril do esmalte. O cigarro dourando os dentes, enegrecendo os lábios. Diacho epidêmico. Agosto na vida. E quem escreveu essa obra. Quem foi que não recriou as histórias da vida? Melinda sempre a cozer e empanturrar. Comida encomendada pelo diabo. Olhava para o lado e um ramo de arruda para contrabalancear. A pequena que tanto sonhava? A minha querida olhando para onde não tinha gente. Era sempre assim e eu tentava imaginar o que passava. Não era às vezes que colocava os olhos para a parede. E eu parava e vagava meu pensamento a tal ponto que tudo ao redor perdia o foco, passava a me comunicar com o passado. Refazia uma a uma as questões ao me relacionar com o mundo. Muitas pessoas eu lembrava e de repente um gosto de sangue na boca. Fazia muitas costuras com sentimentos de mágoas e ponderava cada rancor. As intrigas iam se desfazendo na minha cabeça. Aquilo que vinha na minha mente, sentimentos que se interpunham a qualquer angústia. E meus impulsos que não pretendiam reconhecer certas ousadias. Não adiantava voltar atrás dos que vêem a vida por um ângulo tão arbitrário. Que se mentem o tempo todo. A ilusão que está sempre pronta a revidar e tolher-se depois de uma intriga. E pensava o quanto era interessante saltar de um ponto e ver a vida de fora. Qual um satélite para com a Terra. Por esta premissa, o desgosto não mais me abala. A angústia se desfaz. Não sou eu que tive ausências, pois exilar-se é também uma forma de dizer que em algum lugar existe o não-exílio. Para que ter medo da loucura? O reflexo de uma loucura está no profundo da alma. E quando me tenho raso eu simplesmente adoeço. Porque não dá mais para ver certas coisas quando se prefere a superfície para nunca temer o óbvio que é a vida. Então pretendes encarnar sempre do mesmo ponto para sentir somente uma parte do existir. A dor é o revés da tolice.
Algo redundante. Estava cansada da cor estéril do esmalte. O cigarro dourando os dentes, enegrecendo os lábios. Diacho epidêmico. Agosto na vida. E quem escreveu essa obra. Quem foi que não recriou as histórias da vida? Melinda sempre a cozer e empanturrar. Comida encomendada pelo diabo. Olhava para o lado e um ramo de arruda para contrabalancear. A pequena que tanto sonhava? A minha querida olhando para onde não tinha gente. Era sempre assim e eu tentava imaginar o que passava. Não era às vezes que colocava os olhos para a parede. E eu parava e vagava meu pensamento a tal ponto que tudo ao redor perdia o foco, passava a me comunicar com o passado. Refazia uma a uma as questões ao me relacionar com o mundo. Muitas pessoas eu lembrava e de repente um gosto de sangue na boca. Fazia muitas costuras com sentimentos de mágoas e ponderava cada rancor. As intrigas iam se desfazendo na minha cabeça. Aquilo que vinha na minha mente, sentimentos que se interpunham a qualquer angústia. E meus impulsos que não pretendiam reconhecer certas ousadias. Não adiantava voltar atrás dos que vêem a vida por um ângulo tão arbitrário. Que se mentem o tempo todo. A ilusão que está sempre pronta a revidar e tolher-se depois de uma intriga. E pensava o quanto era interessante saltar de um ponto e ver a vida de fora. Qual um satélite para com a Terra. Por esta premissa, o desgosto não mais me abala. A angústia se desfaz. Não sou eu que tive ausências, pois exilar-se é também uma forma de dizer que em algum lugar existe o não-exílio. Para que ter medo da loucura? O reflexo de uma loucura está no profundo da alma. E quando me tenho raso eu simplesmente adoeço. Porque não dá mais para ver certas coisas quando se prefere a superfície para nunca temer o óbvio que é a vida. Então pretendes encarnar sempre do mesmo ponto para sentir somente uma parte do existir. A dor é o revés da tolice.
por João Gomes___
Recordo
a primeira vez que tive acesso, por meio do YouTube, com o trabalho
de Liniker. Ao primeiro contato senti medo daquele estilo tão
potente, capaz de desestruturar o turbilhão de significados contidos
em sua maneira suave e poética de dizer as coisas com uma sintonia
estarrecedora. Fui inteiramente abduzido. Tudo ali, inclusive o grupo
Os Caramelows, era dado em fatias no momento certo, e nada sobrava.
Ora com um vozeirão no estilo Tim Maia, ora com uma voz suave, às
vezes rouca e às vezes grave, suas canções, como sugere o título
do seu primeiro disco, Remonta (2016) o amor e suas raízes. É
realmente de se tombar, e tombar o preconceito.
Seu
EP de estreia, Cru (2015), foi gravado ao vivo para imprimir a
força do momento de natureza íntima, e realizado de forma
colaborativa através da plataforma Catarse. Em uma semana, um dos
vídeos gravados chegava a um milhão de visualizações, e uníssono
e eternamente os internautas agradecem que a black music de
seu estilo tenha adentrado na nova música brasileira, fazendo muitos
se gostarem ainda mais, por meio de tanta identificação. Música de
ou sem qualidade vicia, e quando possui autonomia e referências que
transcendem, já viu aonde pode chegar. E tudo isso sem ambição,
somente para empoderar sua existência, seu direito de estar e fazer
o que bem desejar, embora carinhosamente já seja chamada de deusa
pelos fãs.
Divulgação |
Com
formação cultural do samba ao soul, Liniker de Barros Ferreira
Campos, ou simplesmente Liniker, cujo nome é uma homenagem ao
futebolista inglês Gary Lineker, vem de uma família de músicos
profissionais da cidade de Araraquara, interior de São Paulo.
Performático em todos os sentidos, tendo primeiro estudado teatro na
Escola Livre de Teatro de Santo André na adolescência com o desejo
de desenvolver seu visual não-binário, inicialmente se apresentava
com uma mistura de turbante, saia, argolas, batom e bigode. Mas
sabemos que Liniker é muito mais que isso, e não alguém que deseja
apenas chocar. Em entrevista ao EL PAÍS, questiona: “Por que
colocar uma calça jeans e uma camiseta e mostrar meu trabalho só
com a voz? Meu corpo é um corpo político.”
Mesmo
muito jovem (nascido, pasmem, em 1995), através de suas referências
sentimos o quanto é orgânico e clássico o seu trabalho, tendo uma
força capaz de se inserir em qualquer público liberto. Tássia
Reis, Tulipa Ruiz, Clube do Balanço, da música brasileira atual,
Nina Simone, Etta James, Beyoncé, Mariah Carey, Caetano, Gil, Gal e
Cartola são as referências e o que ouve Liniker. Com o apoio do
público internauta, seu começo viralizou e fez sua carreira virar
da noite para o dia. Mas nada veio pronto, suas composições vêm
desde os 16 anos, cartas que não tinha coragem de enviar aos garotos
que desejava ter algo, quando agora nos embala os corações como
salvação da nossa música nacional. Tamanha a força, sente-se que
veio para permanecer.
Para
que o público idolatre um artista, nem sempre seu trabalho precisa
ser consistente. Chocar, ou simplesmente lacrar, tombar, também
qualquer um pode ter esse desejo maior e vir a realizá-lo,
esquecendo outros requisitos, ou não tendo como interferir nisso,
por mais que faça parcerias para alavancar mais ainda o efêmero
sucesso na mídia. Liniker começou por baixo, o mais baixo átrio de
nossos corações, com o sucesso Zero, onde entoa o seu
autobiográfico “Peguei até o que era mais normal de nós / E
coube tudo na malinha de mão do meu coração” para cantar uma
sofrência tão comum quando em questão de amor “A gente fica
mordido, não fica?”, e bem mais ainda quando esta mesma canção
já ultrapassa os 22 milhões de visualizações. Podem até dizer
que sofrência é o que vende, depois do cantor baiano Pablo, ou da
drag e cantora Pabllo Vittar e, mais recente e com mais apuro
estético, a recifense Duda Beat que também estourou com o álbum
Sinto muito.
A
autonomia de opinar foi dada a todos após o surgimento da redes
sociais, mas só o de opinar, ser diferente 24h e independente não,
ainda é visto como doença, palhaçada, vontade de aparecer,
oportunismo. Felizmente Liniker nunca sofreu agressões físicas por
ser o que é, esse cruzamento entre o masculino e feminino, um ser
não binário, isto é, fora do contexto limitador que conhecemos
biologicamente. Mas ultrapassar todos esses gêneros, e com um
talento tão arrasador, não é para muitos por mais que queiram.
Para alguns, Liniker não precisava de nada além da voz, sendo todo
o resto apelatório e descabido, isso como se estivéssemos na era do
rádio e não da imagem. Ainda para isso da apelação, citemos Nego
do Borel no seu clipe Me solta, onde sempre travestido beija
outro homem para ultrapassar no momento os 140 milhões de
visualizações de uma música pensada somente para baile funk. No
mesmo vídeo, alguém alfineta: “Critica o cara, mas no Carnaval
sai vestido de mulher e se amarra.” Quando é para a minha alegria,
pode, não é errado, mas se o outro ultrapassa o mês da folia, é
doença e apelação.
A
cantora Liniker, como prefere ser chamada, no feminino, já saiu das
fronteiras brasileiras, chegando recentemente a participar do Tiny
Desk Concert produzido pela NPR Music, rádio de titularidade pública
e sem fins lucrativos do EUA. Em tradução livre, sobre o concerto
de Liniker e os Caramelows, escreveram na descrição do vídeo:
“Assistir a esta performance é testemunhar
um feitiço sendo lançado, nota por nota. [...] Você tem que voltar
para a mistura de jazz e música brasileira no final dos anos 50 para
apreciar a afinidade que nossos dois países tiveram um pelo outro
musicalmente.” Também anteriormente esteve na TV portuguesa RTP,
fazendo todos os apresentadores dançarem com uma composição que
parte da sofrência para o amor propriamente de alguém-ele-mesmo que
é chamada de Tua.
Aí está uma troca positiva entre as nações, de caráter cultural
e não ideológico, de riqueza cultural e não de bestialidade
fascista.
Liniker
sem nenhuma afetação é brasileiríssima, com uma identidade
própria, dona de um trabalho visceral e sobre ser ele ou ela
responde: “Quando me questionam sobre gênero, eu falo que eu não
sei quem eu sou e eu acho que é importante viver essa dúvida
também. Eu não preciso ter uma certeza de ‘sou homem’ ou ‘sou
mulher’, meu corpo é livre, meu corpo é um corpo político, ele
merece a liberdade dele e eu preciso caminhar com isso, aceitar que
eu sou assim”, disse em entrevista ao G1. É para isso que se luta,
para empoderar e sair do “menina veste rosa e menino veste azul”
que não acrescenta nada na evolução humana, pelo contrário,
resume e encerra junto com o fascismo todas as problemáticas de
nosso tempo.
No
entanto: dissonâncias é uma antologia da editora Castanha Mecânica
que reúne 23 autoras e autores que escrevem sobre a recente
atmosfera pós-eleitoral, cujo discurso aprovado nas urnas enaltece
violências, ameaças às minorias, redução de direitos
trabalhistas e enriquecimento da classe patronal. São 23 distintos
lugares de fala, usando da construção literária, para resistir a
uma narrativa delirante de extrema direita que se alimenta de
revisionismos históricos e fake news para aniquilar multiplicidades
e colocar em subalternidade o conhecimento e seus agentes de difusão.
Estão
na antologia: Adilson Silva Didil, Ane Montarroyos, Bell Puã, Caio
Lima, Carlos Gomes, David Biriguy, Enoo Miranda, Ezter Liu, Flávia
Gomes, Fred Caju, Guedes, João Gomes, Jonatas Onofre, Katarine
Araújo, Lucas Holanda, Maria Samara, Odailta Alves, Pedro Tostes,
Philippe Wollney, Renata Santana, Rodrigo Acioli, Samarone Lima e
Thays Albuquerque.
Lançamento:
12/01 – 21h13, Sebo Casa Azul, Rua 13 de maio, 121 - Carmo, Olinda/PE
por
Aleksandro F. de Paula___
Imagine
uma pessoa sendo criada com todo o cuidado, todo o carinho do mundo,
dentro de um ambiente familiar seguro e feliz. Seus pais evitam que
ela tenha contato com qualquer coisa que sugira a violência —
filme, desenho, gibi, brincadeira — isso é coisa para menino, ela
é uma garota, sempre a encheram tão somente de mimos e afeto.
Imagine
que essa garotinha, já então uma adolescente, tem seu coração
invadido por todo o feitiço, toda a mística encantadora do amor. Já
então com uma tonalidade um pouco diferente do que estava
acostumada, mas com a mesma substância do amor cuidadoso e
verdadeiro de que sempre fora alvo. Sua vida, de repente, é um conto
de fadas. O príncipe encantado, um garotão que responde aos olhares
de princesa, as deixas de apaixonada. Ele se diz encantado por ela
também, ela enlouquece de amor. Agora sua existência é tudo
aquilo; tantos contos de fadas assistidos e, então, ela era a
protagonista. E o cara é um príncipe mesmo, enche-lhe de todo
carinho e da afeição que ela sempre tivera.
Alguns
meses de convivência e, de repente, ela recebe o primeiro tapa;
informação difícil para apreender. Fica chocada com aquilo, mas,
acima de tudo, está apaixonada. Como uma esponja, o seu amor absorve
esta nova palavra sentida na pele virgem: Violência. E continua
amando-o “mais que tudo”, como costuma dizer-lhe e repetir ao
ouvido
Um
segundo tapa já não é tão traumatizante, embora, o que sente,
então, recorde a dor na alma do primeiro ato.
O
terceiro, o quarto tapa... e, mais tarde, o primeiro murro; um olho
roxo é mais evidente que a primeira olheira, causada pelas noites de
insônia, quando o conhecera. O amor talvez seja a doença da alma. A
mulher tem dessas coisas em sua singeleza; uma amiga dela nunca
esquecera o primeiro amor, ainda que tenha durado tão pouco. O dela
poderia perdurar por muito e muito tempo, se...
Quando
o primeiro dente quebrado e a primeira tentativa de ele feri-la com
uma faca de mesa acontecem, ela talvez já tivesse assimilado o termo
“Violência”. Mas, ao contrário, se desespera ainda. Passa pela
cabeça como seus pais não a prepararam para aquilo. No entanto,
mais difícil de trazer consigo aquela feia cicatriz no tórax, é
aceitar viver sem o seu grande amor. O primeiro e único amor.
Contudo,
quando acontecem os cem números de tapas, de murros, o segundo corte
no rosto — resultado de mais uma prova de amor dele — o primeiro
e derradeiro tiro, ela, possivelmente, já tivesse assimilado a
palavrinha maldita, e, talvez, fosse a única palavra que lhe
restasse daquele “amor”. Mas, então, era uma compreensão já
tardia e ineficaz, ainda que o manuseio da arma e a precisão dele
não o fossem.
O
pai dela já não consegue ver o resultado final de sua princesinha
no velório. Com tanto amor e carinho a criara, e outro, usando das
mesmas palavrinhas mágicas, a levara, tolamente, para aquele fim.
Conto selecionado da obra O Mecanismo das Horas, Selo Redondezas, 2015.
-------------
Sobre o autor
Aleksandro
F. de Paula (Olinda/PE, 1976) é escritor e funcionário
público. Publicou O Mecanismos das Horas (Selo Redondezas,
2015), 46 Escritos (Selo Birrumba, 2018), Nada mais
e outros poemas (Selo Futurarte – Poesia, 2016) e A
Criação do Temor e outros contos (Selo Redondezas,
20170. No prelo: Novos Escritos e Objetos Mortais Inusitados e
outros contos.
por Adriane Garcia___
Maria
Tereza, protagonista de Canção sem palavras (ed. Scriptum),
mais novo romance de Laura Cohen Rabelo, é uma musicista,
violonista, filha de um famoso e requisitado luthier. Tendo vivido no
universo da música desde seu nascimento, Maria Tereza se torna uma
virtuose do violão. A narrativa se concentra especialmente no
período de estudos universitários de Maria Tereza, na Escola de
Música em Belo Horizonte – quando já fazia concertos em um duo de
cordas, com o namorado Arie — e no primeiro ano após a formatura.
Dos
conflitos e angústias comuns aos jovens assim que deixam a
faculdade, Laura Cohen dá atenção especial à questão da vocação
e da escolha de um projeto de vida. Tanto Arie quanto Maria Tereza
entrarão em uma crise que coloca em dúvida não só o lugar que a
música ocupa em suas vidas, quanto o lugar deles próprios na
relação amorosa. É nesta crise que surgirá a viagem. Tanto Maria
Tereza quanto Arie são filhos de mães judias e têm a possibilidade
de fazer o “birthrigth”, um programa de turismo educativo
para fortalecer a identidade judaica e colocar em contato jovens
judeus de todo o mundo com os israelenses.
Ao
partir para Israel, em um grupo de quarenta jovens, Maria Tereza
empreenderá uma viagem surpreendente e — aqui o grande mérito de
Laura Cohen — o leitor irá junto.
Chama a atenção em Canção sem palavras a fluidez do texto e a forma quase matemática (como a música) em que a narrativa vai se dando. Há um ritmo de imersão para o leitor. Nada é dado de mais ou de menos, a leitura alcança uma verossimilhança total. Laura Cohen é profunda observadora de seus personagens, flagrando suas nuances e pensamentos. Tendo escolhido contar a história na terceira pessoa, mas no tempo verbal do presente do indicativo, Laura Cohen coloca seu narrador “colado” à sua protagonista, tanto que, no fim das contas, o leitor sabe que Maria Tereza existe, que pode ter passado por ela alguma vez e até lamenta não ter ido a um concerto seu.
Chama a atenção em Canção sem palavras a fluidez do texto e a forma quase matemática (como a música) em que a narrativa vai se dando. Há um ritmo de imersão para o leitor. Nada é dado de mais ou de menos, a leitura alcança uma verossimilhança total. Laura Cohen é profunda observadora de seus personagens, flagrando suas nuances e pensamentos. Tendo escolhido contar a história na terceira pessoa, mas no tempo verbal do presente do indicativo, Laura Cohen coloca seu narrador “colado” à sua protagonista, tanto que, no fim das contas, o leitor sabe que Maria Tereza existe, que pode ter passado por ela alguma vez e até lamenta não ter ido a um concerto seu.
Outro
fato notável é que aqueles que não conhecem Israel ficam com a
sensação de já terem ido lá, ainda que em sonho, enquanto leem o
romance de Laura Cohen. Se a melhor literatura de viagem é aquela em
que o leitor sente o que sente o viajante, fica próximo de outra
cultura, ganha informações que pertencem a campos distintos do
conhecimento, desenha em sua imaginação o cenário proposto a ponto
de parecer ter pisado nesse outro território, Laura Cohen a cumpre
em Canção sem palavras.
Além
do universo da viagem, o romance traz dilemas intrínsecos aos
músicos e aos estudantes de música. Como se já não fosse o
suficiente, o leitor curioso encontrará uma espécie de “playlist”
para ouvir, já que Maria Tereza em seu percurso de estudos vai nos
mostrando o nome de grandes obras e compositores.
Canção
sem palavras é um romance múltiplo, com personagens completos e
complexos, demasiadamente humanos, procurando seu caminho no deserto.
Da crítica geopolítica à condição feminina e à consciência do
mito da masculinidade, do sucesso profissional ao sentimento
constante de precariedade e da perecibilidade das coisas. Sutilmente,
o lugar da viagem — um país jovem numa terra inóspita, que ameaça
e é ameaçado – é também metáfora: “Ela tem a impressão
de que tudo é frágil e vai acabar ruindo em pedaços um dia.”
“O
homem sem cidade ou é um deus ou é um monstro. Ela tem a impressão
de que tudo é frágil e vai acabar ruindo em pedaços um dia. O que
a salva dessa impressão sedutora e quase confortável de um fim
violento é a rotina. Mais do que tudo, ela ama a rotina. Há os dias
bons e os dias ruins, e isso ela pode controlar. Acorda, estuda, vai
ao restaurante, trabalha, sai mais cedo quando tem aula de violão ou
ensaio com o quarteto, volta para casa, estuda, toma um banho, lê,
dorme. Sente que está avançando muito no violão, como se algum nó
de aprendizado tivesse finalmente se desfeito, e agora ela gasta todo
o tempo que tem para tocar tocando, e não se refestelando nas
angústias em que se envolvera no Brasil depois que Arie foi embora.
O que era uma promessa de ficar melhor finalmente tinha ficado
melhor, e ela se lembra da melhor parte dos seus dias, o estudo, a
rotina.
Anda
muito a pé e pega a bicicleta do tio Jacques e pedala por todas as
partes. Gosta de ver os judeus religiosos caminhando pela rua, gosta
de passar entre eles, atravessá-los como o presente atravessa o
passado. Os mais moços olham, às vezes sorriem como crianças
tímidas. Bochechas coradas, homens puros. O sonho de toda religião
é manter todos nós como crianças para sempre, sempre puros e sem
erro. Vai enrolando para entrar no curso de hebraico, mas aprende aos
poucos com a tia Deborah.
— Você não sabe de nada — diz a tia enquanto mexe a panela de molho de tomate. — Seu tio Jacques brigou com seu avô não porque ele queria ir para Israel e ele não deixava. Seu tio Jacques saiu de casa porque ele é gay. Sua mãe não te conta as coisas direito, conta?” (p. 192/193)
— Você não sabe de nada — diz a tia enquanto mexe a panela de molho de tomate. — Seu tio Jacques brigou com seu avô não porque ele queria ir para Israel e ele não deixava. Seu tio Jacques saiu de casa porque ele é gay. Sua mãe não te conta as coisas direito, conta?” (p. 192/193)
Por
Juliana Berlim___
A vegetariana de Han Kang (Editora Todavia, 2018)
A literatura, por vezes, emerge de sonhos. Seja da perturbação noturna de Gregor Samsa em A metamorfose de Franz Kafka, seja, dilatando a ideia de literário, da sequência onírica expressiva da peça O sonho, do dramaturgo sueco August Strindberg, o texto poético vem fazendo uso há bastante tempo da ocorrência de sonhos como solução, explicação ou mesmo justificativa de fenômenos que soam inexplicáveis do ponto de vista do realismo. A autora sul-coreana Han Kang parte de premissa semelhante: coloca sua protagonista, Yeonghye, dominada pela forte impressão deixada por uma série de sonhos terríveis que a levam a não querer mais comer, cozinhar, servir ou comprar carne. Graças a esta simples tomada de decisão, súbita e absolutamente pessoal, a moça, bem como os leitores, é levada a (re)conhecer o machismo, a indiferença e a brutalidade das pessoas que a cercam.
Yeonghye
passa por um processo voluntário de abandono do humano, em trânsito
entre os reinos animal, vegetal e mineral. Mas, combinado a ele,
temos o processo de desumanização paralelo conduzido por seus
parentes, que vão deixando claro a funcionalidade de Yeonghye
em suas vidas, mostrando-a, na maior parte dos casos, como peça-chave
em seus processos de ascensão social. A Yeonghye
esposa e filha de jovem promissor da malha urbana de Seul é
conveniente e, portanto, tolerável. A partir do momento em que o
radicalismo de seu vegetarianismo atrapalha as conveniências de suas
relações conjugais e familiares, percebe-se o quanto a personagem
está envolvida em uma malha de manipulação patriarcal que
culminará em seu isolamento social.
O
recurso narrativo empregado por Kang
é não dar voz, em nenhum momento, à própria Yeonghye.
Até que ponto a moça está louca? Mas o livro não se debruça
sobre o desequilíbrio mental (aos olhos dos que cercam a
protagonista), e sim sobre os efeitos da atitude de recusa da jovem
em ser uma mulher onívora. Dos três relatos nos quais se divide o
livro, o último é o mais próximo da anima da personagem,
justamente o da irmã mais velha e fisicamente muito parecida com
Yeonghye,
metáfora para o espelhamento contínuo entre as duas irmãs
realizado pelas demais personagens. Perceba-se aqui a desintegração
e a reintegração de uma na outra.
Que
a história desta Bartleby
sul-coreana, até mais reativa e violenta que seu original, possa
sensibilizar os leitores brasileiros para a boa literatura produzida
na Coreia do Sul atualmente (como Sukiyaki
de domingo,
de Bae
Su-ah,
lançado no Brasil pela editora Estação
Liberdade),
em especial no tocante à condição da mulher na sociedade
sul-coreana contemporânea.
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Juliana
Belim é professora de Língua Portuguesa e Literatura do Colégio
Pedro II. Conduz no mesmo colégio, o projeto de iniciação
científica Neuromancers, de leitura e pesquisa sobre romances de
ficção científica, bem como faz parte do corpo docente da
pós-graduação Lato Sensu Ererebá – Educação Étnico-Raciais
no Ensino Básico. Participou de três edições da FLUP – Festa
Literária das Periferias, com a publicação de quatro contos no
total.
por
Lucas
Fernandes___
Elisa Lispector |
Certamente
ser irmã de Clarice Lispector seria uma honra para qualquer pessoa.
No entanto, ser apenas irmã de alguém não faz justiça a ninguém,
muito menos para uma escritora premiada e reconhecida pela crítica
literária como é o caso de Elisa Lispector (1911-1989).
Seu
primeiro romance, Além
da Fronteira
(1945), apresenta alguns traços marcantes que se mantiveram ao longo
dos mais de 40 anos de carreira: a densidade psicológica dos
personagens, a solidão e a reflexão filosófica existencialista. No
romance autobiográfico No
Exílio (1948), a
escritora narra a viagem de imigração da sua família e os
primeiros anos morando no Brasil. Esse livro é considerado um marco
na literatura judaica no Brasil e já está na terceira edição
(2005). Também foi publicado na França, En
Exil (1987).
Ronda
Solitária (1954),
um de seus melhores romances, antecede sua obra mais conhecida: o
premiado romance O
Muro de Pedras
(1963), pelo qual ela recebeu os prêmios José Lins do Rêgo (1962),
concedido pela Editora José Olympio, e Coelho Neto (1964), da
Academia Brasileira de Letras. O
Dia Mais Longo de Thereza
(1965) é um dos romances mais densos de Elisa. O primeiro livro de
contos, Sangue no
Sol (1970), foi
bastante elogiado pela crítica literária da época. O romance A
Última Porta
(1975) foi reconhecido como uma obra de excepcional caráter
existencialista. O livro de contos Inventário
(1977) reafirma a escritora como contista. O romance Corpo
a Corpo (1983) é
marcado pela profunda melancolia da protagonista. Seu último título
lançado em vida, a coletânea de contos O
Tigre de Bengala
(1985), recebeu o Prêmio Luíza Cláudio de Souza, concedido pelo
Pen Clube do Rio de Janeiro.
Segundo
amigos próximos, Elisa era uma mulher reservada, culta e solitária.
Nunca se casou nem teve filhos, faleceu de câncer em 6 de janeiro de
1989. Ela deixou um vasto acervo pessoal do qual foi possível
publicar o livro póstumo de memórias Retratos
Antigos: Esboços a Serem Ampliados
(2012).
Apesar
de uma carreira relativamente bem sucedida, Elisa e suas obras foram
progressivamente esquecidas. Seus livros nunca foram sucesso de
vendas, mas eram apreciados por intelectuais e por outros escritores.
A ausência de reedições de seus livros é um das principais
dificuldades para que o público tenha acesso a sua obra atualmente.
Muito
mais poderia ser falado sobre Elisa Lispector, cuja morte completa
hoje 30 anos, porém, certamente outras oportunidades virão. Até
lá, ficamos com a leitura de seus livros e sabendo que ela foi muito
mais do que irmã de Clarice Lispector.
por Taciana Oliveira___
A performance Mulheres que carregam homens dá seus primeiros passos no ano de 2013, a partir da concepção de uma pequisa intitulada Violência de Gênero: Da opressão à transformação social através do diálogo. Desde então o grupo Nexto - Núcleo em Experimentações do Teatro do Oprimido, formado pelos atores Andréa Veruska e Wagner Montenegro, se debruça sobre o tema através da elaboração de oficinas e realização de espetáculos. Em 2016 o projeto Do gênero performativo às performatividades de gênero no Teatro de Rua, é aprovado no Edital do Funcultura - PE. O objetivo dessa nova pesquisa é a promoção do diálogo entre as pessoas e o espaço urbano. Espaço esse que não está acostumado a debater questões sobre a violência de gênero.
Divulgação: NEXTO |
A performance Mulheres que carregam homens dá seus primeiros passos no ano de 2013, a partir da concepção de uma pequisa intitulada Violência de Gênero: Da opressão à transformação social através do diálogo. Desde então o grupo Nexto - Núcleo em Experimentações do Teatro do Oprimido, formado pelos atores Andréa Veruska e Wagner Montenegro, se debruça sobre o tema através da elaboração de oficinas e realização de espetáculos. Em 2016 o projeto Do gênero performativo às performatividades de gênero no Teatro de Rua, é aprovado no Edital do Funcultura - PE. O objetivo dessa nova pesquisa é a promoção do diálogo entre as pessoas e o espaço urbano. Espaço esse que não está acostumado a debater questões sobre a violência de gênero.
Mulheres
que carregam homens é um dos dispositivos gestados dentro desse
projeto. As principais referências para concepção dessa
performance habita no conceito de performatividade de gênero,
apresentado por Judith Butler e na narrativa mais do que necessária
da obra Teoria King Kong de Virginie Despentes. A
performance conta com a participação de atores em espaços
públicos, oferecendo assim oportunidade para se conhecer outras formas de atuação teatral. Mulheres que carregam homens é muito
mais que uma metáfora, é a constatação que a arte não se afasta do
cotidiano. Uma performance provocativa, um espelho para quem assiste
e muita vezes não se dá conta que reproduz o que condena. Conversando
com a atriz e uma das idealizadoras do projeto, Andréa Veruska, ela
comenta que a reação do público feminino, em algumas das
apresentações, é de surpresa ao se deparar com a suposta inversão
da “lógica”: homens é que carregam mulheres. Esse mesmo público
se questiona, se revolta ou se reconhece na performance. Expressam
descontentamento ao enxergar na dramatização o papel designado para
mulher na sociedade. A resposta de parte do público masculino já é
diferente. Quando convidados para atuar no dispositivo, manifestam
naturalmente um comportamento agressivo e machista.
Mulheres que carregam homens, como quase toda intervenção performática, é antes de tudo um ritual, uma abordagem para uma leitura crítica de algo que diz tanto sobre nós. A performance não procura responder sobre o tema. Não é esse o objetivo. O NEXTO busca estimular o diálogo e a participação popular. Após assistir o vídeo que documenta a passagem dos atores no Mercado Público do bairro de Afogados, peço licença e tomo emprestado o poema de Alice Ruiz para encerrar o texto: algumas flores teimam em viver/ apesar do tempo/ apesar do peso/ apesar da morte/ apesar de algumas que teimam em morrer/ apesar de tudo.
Mulheres que carregam homens, como quase toda intervenção performática, é antes de tudo um ritual, uma abordagem para uma leitura crítica de algo que diz tanto sobre nós. A performance não procura responder sobre o tema. Não é esse o objetivo. O NEXTO busca estimular o diálogo e a participação popular. Após assistir o vídeo que documenta a passagem dos atores no Mercado Público do bairro de Afogados, peço licença e tomo emprestado o poema de Alice Ruiz para encerrar o texto: algumas flores teimam em viver/ apesar do tempo/ apesar do peso/ apesar da morte/ apesar de algumas que teimam em morrer/ apesar de tudo.
Taciana
Oliveira é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife,
apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura.
Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra
quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.
por Taciana Oliveira__
Estou fascinada com a poesia agridoce de suas letras e a sonoridade cool de suas guitarras. Tudo pulsa além. Tudo é respirar, correr e não se render ao lugar comum:
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Linda Martini |
Linda
Martini é uma banda lusitana com mais de quinze anos de estrada.
Sim, só agora eu a conheci! Um amigo, poeta português, me presentou
com essa descoberta há alguns meses. Não quero nesse momento
pontuar os vários motivos que levam o nosso afastamento do universo
musical de Portugal. Acho uma perda sem tamanho que isso ainda
prevaleça. Torço para que essa aproximação, de nossa parte, um
dia ultrapasse os limites da geografia, já que do outro lado a
receptividade é a melhor possível. Esse texto sobre o Linda Martini
nasce para tentar expressar o sentimento maior quando da primeira
vez tive a oportunidade de ouvi-los. Os versos de Volta ainda soam em
mim: Há tanto tempo que nada apetece/Já não aquece,
é sempre devagar/Tudo se desmonta.
Fonte: MHD |
Fecho-me em copas e escondo/ Cidades inteiras em sitio nenhum/ Vê como caem sem estrondo/ O fado que canto não é fado algum.
Aos poucos começo a me aventurar na discografia do grupo, composta por cinco álbuns e quatro EPS. É quase um processo de reconhecimento. O Linda Martini é formado por Pedro Geraldes (guitarra e voz), Cláudia Gerreiro (contrabaixo e voz), Hélio Morais (bateria e voz) e André Henriques (voz e guitarra). A
arte tem o poder de te guiar pra onde você nem sabe que pode chegar.
Foi assim que me perdi em Adeus Tristeza , versão rock para a
clássica canção do cancioneiro português, de autoria de Fernando
Tordo. Linda Martine é rock sem contraindicação. O novo álbum foi
batizado com o nome da banda, e está disponível para acesso nas
plataformas de streaming. Quem acompanha a produção dos videoclipes
do grupo encontra um conceito visual potente que se traduz na sua
performance. Linda Martini é um assombro daqueles que a gente tem
prazer de reverenciar.
* Ah, o poeta-amigo se chama Alberto Paulo Moreira Ferreira.
* Ah, o poeta-amigo se chama Alberto Paulo Moreira Ferreira.
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Taciana Oliveira é cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.
por Taciana Oliveira ___
Desde o medo já é tarde, de Casé Lontra Marques (Editora 7 Letras, 2018) é um mergulho sem a mínima chance de retorno ao ponto de partida. O autor não transita na zona de conforto. Ele se permite o corte, a visceralidade natural da criação. Sua composição poética declara, dentro e fora das entrelinhas, que escrever/viver é um exercício de resistência. Assim a narrativa escolhida para o livro se desnuda numa enxurrada de sensações conectadas no outro, o leitor.
Quando faz silêncio
no fundo do desassossego,
um sol
(imoderado) se move
pela
medula — envolvendo
nossos receios
sem
evitar nenhum
rasgo.
por
João
Gomes__
Na apresentação de O
nome do mundo (Armazém da
Cultura, 2014), livro anterior da mineira Adriane Garcia, o crítico
literário José Castello sobre sua poesia escreve: “na realidade,
não é no mar que a poeta mergulha, mas no abismo.” É muito
emocionante poder tomar conhecimento de todas essas águas que
percorrem a produção mais recente de seu novo volume, o Garrafas
ao mar (Penalux, 2018),
quando a poeta, depois de ficar Só,
com peixes (Confraria do
Vento, 2015) — outro livro que por ter uma unidade temática
constante teve o prazer de nos fazer mergulhar talvez com menos força
que este último — é chegado o momento de encontramos tudo o que
lançou no mais profundo mistério da existência.
Desde seu primeiro livro, Fábulas
para adulto perder o sono
(Biblioteca Paraná, 2013), vencedor do Prêmio de Literatura do
Paraná, que a poesia brasileira não foi mais a mesma. Enquanto
leitor constante do que se produz de excelente e de mal estruturado,
sempre me surpreendi com o que li desta poeta. Mas resenhar o livro
de uma poeta contemporânea, com uma produção tão constante e
atual pode parecer tarefa fácil, quando sabemos o quanto é
responsabilizador dizer algo que se some ao já dito.
De toda forma, não consigo seguir sem
antes dizer que a poesia de Adriane carrega referências das mais
variadas, menções que a poeta chamaria de fábulas,
fazendo do poema sempre um exercício que retroalimenta o real e o
imaginário, quer seja ele popular, infantil, filosófico, plástico
ou mesmo metapoético. Em tempos de poesias tão insípidas e
confesiobanais, a poeta escreve com o treino para perder
o sono quando em “Dos
encantamentos” escreve “Por muito tempo treinei / Encantamentos /
Confesso que / Num concurso / Ganhei primeiro lugar // Agora
desencanto / Para poder aprender novas magias: E pau é pau / Pedra é
pedra.”
Como todo poeta de ofício, corre riscos,
revendo o cotidiano encontrado com seus olhos de pitonisa, sabendo
que o poema pode ser um quadro feito de versos ou formas que de
antemão o leitor nunca deveria se cansar de mirar. Melhor dizendo, é
como se a poeta pintasse seus versos e emoldurasse na página com um
título tão certeiro à força que guarda o objeto. No poema “Nua”:
“Poesia, meu cansaço tu / Carregas e causas.” Sendo mineira,
contemporânea de Drummond, com sua poesia faz críticas não tendo
“... nuvens de calças / Nem a calma / Para olhar as vidas bestas /
Das janelas”, sendo esta uma imagem bem marcante nas ladeiras
históricas de Minas. Mas a crítica aí não desqualifica o poético
drummondiano, estando ambos em diferentes épocas, assim como fez o
poeta de Itabira em A rosa do
povo quando se inicia a
Segunda Guerra Mundial. Assim como ele, Adriane também não quis ser
“poeta de um mundo caduco”, verso do livro O
sentimento do mundo, pois pra
ambos “O tempo é a minha matéria, do tempo presente, os homens
presentes, a vida presente.”
Mas se engana quem acredita que se render
a grande figura drumondiana, verdadeiro pai da poesia mineira e o
maior poeta de nossa poesia, Adriane, sendo mulher, em referência
direta à poesia de Adélia Prado que questionou a servilidade e
dependência feminina de uma época, sobre essa independência aos
grandes poetas e aos maridos, ainda em “Nua” escreve: “Não /
Ninguém trouxe meu peixe / Para o jantar / Menos ainda / Levantou-me
a saia / Na cozinha”, porque em tempos de um feminismo fortalecido,
“O berro que eu dei / Eras tu / Poesia.”
Intuo que Adriane não quer se colocar,
apenas por se colocar, no cânone de Academia — a mesma que
preferiu deixar de fora de sua estrutura obsoleta a escritora
Conceição Evaristo dando o título de imortal a um cineasta, não
me questionando a qualidade cinematográfica do mesmo, este ano — e
sim estar à frente dele, porque em “Um dia de cada vez” conclui
que “Somando tudo / Dá zero // Garçom / Me vê só a dose de
hoje”. A poesia que escreve recicla formas, pensamentos e, o mais
importante na arte, faz perguntas sem trazer nenhuma resposta
absoluta ou pós-verdade. Quando se compara à Christiane F., livro
que leu seis vezes e eu também, diz: “Eu lia e escrevia como quem
se / Picava.” Por isso é essa mulher que sabemos hoje por meio de
sua produção poética.
Ética e estética se misturam, como na
palavra estÉtica, não por pura coincidência dentro da seleção
apuradíssima de Garrafas ao
mar. A poeta sabe que com este
título e, apesar do risco deste título, pelo que se pode oferecer,
não sendo quaisquer “algas” que escorrem, sendo o poeta, “por
ter aquele sinal à testa”, vai e sente mesmo que seu entendimento,
no poema “Impenetrável”, acredite que “Nunca / Jamais / Vale.”
O ser poeta habita o cerne da maioria dos poemas, com sua variedade
de temas, intensidades, humores e intimidades com a morte e o amor.
Nada escancarado mesmo com o poder da liberdade atravessando a “Hora
de vestir, vestir / Hora de tirar, tirar // O carinho das palavras /
Tem que ter medida // Se o cliente gosta / Se deve mesmo à firmeza /
Ou sai um poema frouxo” do amarradíssimo “Entrevista com a
cafetina”.
Sendo este o quarto livro da autora, cujo
domínio não poderia deixar de surpreender com a seriedade e força
de seu ofício, “Este veículo que sou / E que é peça na
engrenagem” que lemos em “Trator”. Adriane escreve sem medo,
porque, em “Inventário”, “Só a sétima fênix / É a
verdadeira”, e nela perco-me na quantidade de vezes que reli este
volume sabendo que me reencontro a cada nova garrafa encontrada.
Assim como na epígrafe de Thais Guimarães, “Encontrei uma
mensagem criptografada: / Poesia”. Das dificuldades de organizar
cada garrafa encontrada, “Pedi socorro por tantos dias quantos
foram / Os de minha vida / Também encontrei garrafas / Às quais não
abri”, no poema que dá título ao livro.
Pois é justamente esta a sensação
quando penso em quem nunca abriu sequer um biscoito da sorte ou, mais
vastamente possível aqui, pôde encontrar estas garrafas submergidas
de poesia. Por suas mãos nos foi servido o melhor vinho de uma safra
iniciada em 1973, ano de seu nascimento, ou de 2013, ano da
publicação de seu primeiro livro. Este que por aqui não encerro o
que tenho a dizer entra na lista dos que sempre releio por inteiro,
pela riqueza temática e possibilidade vasta de entendimentos numa
forma tão enxuta dizendo tanto sobre tudo e todos. Porque o mar da
existência é vasto demais para não irmos de mãos dadas e em
tempos como estes, sabemos, ninguém solta a mão de ninguém.
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por Taciana Oliveira__
Agora, minha terra é o Leme" Clarice Lispector
Agora, minha terra é o Leme" Clarice Lispector
O
livro
O Rio de Clarice - Passeio afetivo pela cidade (Editora
Autêntica, 2018)
de Teresa
Montero,
resgata muito mais que um roteiro clariciano no Rio de Janeiro. A
obra traz um rico apanhado de informações históricas sobre os
bairros cariocas e personalidades que transitaram em épocas
distintas no universo de Clarice
Lispector.
É sobretudo um mergulho fundamental na geografia afetiva da
escritora, desde sua chegada no bairro da Tijuca, passando por
caminhos referenciais da sua biografia, além do mapeamento de suas
obras nesse percurso. Para o leitor, fã de Clarice
Lispector,
é a oportunidade de conhecer cenários escolhidos por ela para a
criação de alguns das suas personagens: Ana (do conto Amor),
Macabéa (da novela
A Hora da Estrela),
Lori (de
Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres),
as prostitutas da Praça Mauá (do conto Praça
Mauá)...
Todos circularam e ainda "circulam" por esses espaços.
Impossível não "sentir" Clarice ao visitar o Jardim
Botânico ou ao respirar a maresia da Praia do Leme.
Professora
e biógrafa de Clarice Lispector, Teresa
Montero
sempre comprometida com o resgate cultural de sua cidade, criou os
Caminhos
da Arte no Rio de Janeiro,
em 2008, após conhecer os Caminhos
Drummondianos
em Itabira, cidade do poeta Carlos Drummond de Andrade. O passeio O
Rio de Clarice
é resultado dessa experiência . Por esse motivo registramos no
livro a presença de figuras emblemáticas que respondem pela
construção de uma identidade intelectual e artística do Rio
Janeiro, e pelo encantamento nostálgico da obra. A publicação nos
remete algumas vezes a um almanaque, um mapa de afetos ou o registro
iconográfico sentimental de uma metrópole.
Com
um belo projeto gráfico, suas páginas são ilustradas por mapas e
por um raro acervo fotográfico cedido pela família de Clarice e
pela Fundação
Casa de Rui Barbosa, Arquivo-Museu de Literatura Brasileira.
Complementa ainda um ensaio exclusivo do fotógrafo Daniel
Ramalho.
A narrativa, costurada por comentários de amigos, familiares e
trechos das obras de Clarice, também é o regaste da memória de uma
cidade. O livro não se furta em receber o acolhimento de outros
leitores distantes do universo clariciano. Teresa sempre pensou no
envolvimento maior da população com o Rio de Janeiro: O
passeio não é só a propósito da Clarice – é a propósito da
cidade. (...) Porque o passeio propicia isso: você entra em contato
com a cidade de uma forma muito direta, você sente os cheiros, você
escuta os sons. É uma espécie de pedagogia dos sentidos. Leva a
olhar o Rio de outra maneira, desperta o desejo de cuidar da cidade.
Confesso
a emoção ao encontrar nomes como o da bailarina Gilda
Murray
e do artista plástico pernambucano Augusto
Rodrigues.
Ambos, amigos próximos de Clarice
Lispector,
figuras profundamente envolvidas em suas áreas de atuação. Teresa
acerta na transposição da narrativa oral do passeio para a
narrativa escrita. Ela abre portas, ruas e possibilita a sensação
para o leitor, que não conhece o itinerário, de caminhar pela
cidade ou até mesmo de que “comprou” uma cápsula do tempo.
Testemunhei a criação desse projeto, acompanhei alguns dos passeios
programados e guiados por Teresa Montero no Leme. Assisti de perto o
esforço e determinação para que a publicação chegasse ao leitor
com o máximo nível de qualidade. E chegou! No lançamento do livro
em Recife comentei com Teresa: Dona Clarice ficaria orgulhosa!