Fotografias de Bárbara Ellen

Fotografia: Bárbara Ellen
Fotografia: Bárbara Ellen
Fotografia: Bárbara Ellen
Fotografia: Bárbara Ellen



por Tânia Consuelo___

Francesca Woodman
Viver reprisando mais uma vez. 
Algo redundante. Estava cansada da cor estéril do esmalte. O cigarro dourando os dentes, enegrecendo os lábios. Diacho epidêmico. Agosto na vida. E quem escreveu essa obra. Quem foi que não recriou as histórias da vida? Melinda sempre a cozer e empanturrar. Comida encomendada pelo diabo. Olhava para o lado e um ramo de arruda para contrabalancear. A pequena que tanto sonhava? A minha querida olhando para onde não tinha gente. Era sempre assim e eu tentava imaginar o que passava. Não era às vezes que colocava os olhos para a parede. E eu parava e vagava meu pensamento a tal ponto que tudo ao redor perdia o foco, passava a me comunicar com o passado. Refazia uma a uma as questões ao me relacionar com o mundo. Muitas pessoas eu lembrava e de repente um gosto de sangue na boca. Fazia muitas costuras com sentimentos de mágoas e ponderava cada rancor. As intrigas iam se desfazendo na minha cabeça. Aquilo que vinha na minha mente, sentimentos que se interpunham a qualquer angústia. E meus impulsos que não pretendiam reconhecer certas ousadias. Não adiantava voltar atrás dos que vêem a vida por um ângulo tão arbitrário. Que se mentem o tempo todo. A ilusão que está sempre pronta a revidar e tolher-se depois de uma intriga. E pensava o quanto era interessante saltar de um ponto e ver a vida de fora. Qual um satélite para com a Terra. Por esta premissa, o desgosto não mais me abala. A angústia se desfaz. Não sou eu que tive ausências, pois exilar-se é também uma forma de dizer que em algum lugar existe o não-exílio. Para que ter medo da loucura? O reflexo de uma loucura está no profundo da alma. E quando me tenho raso eu simplesmente adoeço. Porque não dá mais para ver certas coisas quando se prefere a superfície para nunca temer o óbvio que é a vida. Então pretendes encarnar sempre do mesmo ponto para sentir somente uma parte do existir. A dor é o revés da tolice.


por João Gomes___

Recordo a primeira vez que tive acesso, por meio do YouTube, com o trabalho de Liniker. Ao primeiro contato senti medo daquele estilo tão potente, capaz de desestruturar o turbilhão de significados contidos em sua maneira suave e poética de dizer as coisas com uma sintonia estarrecedora. Fui inteiramente abduzido. Tudo ali, inclusive o grupo Os Caramelows, era dado em fatias no momento certo, e nada sobrava. Ora com um vozeirão no estilo Tim Maia, ora com uma voz suave, às vezes rouca e às vezes grave, suas canções, como sugere o título do seu primeiro disco, Remonta (2016) o amor e suas raízes. É realmente de se tombar, e tombar o preconceito.

Seu EP de estreia, Cru (2015), foi gravado ao vivo para imprimir a força do momento de natureza íntima, e realizado de forma colaborativa através da plataforma Catarse. Em uma semana, um dos vídeos gravados chegava a um milhão de visualizações, e uníssono e eternamente os internautas agradecem que a black music de seu estilo tenha adentrado na nova música brasileira, fazendo muitos se gostarem ainda mais, por meio de tanta identificação. Música de ou sem qualidade vicia, e quando possui autonomia e referências que transcendem, já viu aonde pode chegar. E tudo isso sem ambição, somente para empoderar sua existência, seu direito de estar e fazer o que bem desejar, embora carinhosamente já seja chamada de deusa pelos fãs.


Divulgação

Com formação cultural do samba ao soul, Liniker de Barros Ferreira Campos, ou simplesmente Liniker, cujo nome é uma homenagem ao futebolista inglês Gary Lineker, vem de uma família de músicos profissionais da cidade de Araraquara, interior de São Paulo. Performático em todos os sentidos, tendo primeiro estudado teatro na Escola Livre de Teatro de Santo André na adolescência com o desejo de desenvolver seu visual não-binário, inicialmente se apresentava com uma mistura de turbante, saia, argolas, batom e bigode. Mas sabemos que Liniker é muito mais que isso, e não alguém que deseja apenas chocar. Em entrevista ao EL PAÍS, questiona: “Por que colocar uma calça jeans e uma camiseta e mostrar meu trabalho só com a voz? Meu corpo é um corpo político.”

Mesmo muito jovem (nascido, pasmem, em 1995), através de suas referências sentimos o quanto é orgânico e clássico o seu trabalho, tendo uma força capaz de se inserir em qualquer público liberto. Tássia Reis, Tulipa Ruiz, Clube do Balanço, da música brasileira atual, Nina Simone, Etta James, Beyoncé, Mariah Carey, Caetano, Gil, Gal e Cartola são as referências e o que ouve Liniker. Com o apoio do público internauta, seu começo viralizou e fez sua carreira virar da noite para o dia. Mas nada veio pronto, suas composições vêm desde os 16 anos, cartas que não tinha coragem de enviar aos garotos que desejava ter algo, quando agora nos embala os corações como salvação da nossa música nacional. Tamanha a força, sente-se que veio para permanecer.

Para que o público idolatre um artista, nem sempre seu trabalho precisa ser consistente. Chocar, ou simplesmente lacrar, tombar, também qualquer um pode ter esse desejo maior e vir a realizá-lo, esquecendo outros requisitos, ou não tendo como interferir nisso, por mais que faça parcerias para alavancar mais ainda o efêmero sucesso na mídia. Liniker começou por baixo, o mais baixo átrio de nossos corações, com o sucesso Zero, onde entoa o seu autobiográfico “Peguei até o que era mais normal de nós / E coube tudo na malinha de mão do meu coração” para cantar uma sofrência tão comum quando em questão de amor “A gente fica mordido, não fica?”, e bem mais ainda quando esta mesma canção já ultrapassa os 22 milhões de visualizações. Podem até dizer que sofrência é o que vende, depois do cantor baiano Pablo, ou da drag e cantora Pabllo Vittar e, mais recente e com mais apuro estético, a recifense Duda Beat que também estourou com o álbum Sinto muito.

A autonomia de opinar foi dada a todos após o surgimento da redes sociais, mas só o de opinar, ser diferente 24h e independente não, ainda é visto como doença, palhaçada, vontade de aparecer, oportunismo. Felizmente Liniker nunca sofreu agressões físicas por ser o que é, esse cruzamento entre o masculino e feminino, um ser não binário, isto é, fora do contexto limitador que conhecemos biologicamente. Mas ultrapassar todos esses gêneros, e com um talento tão arrasador, não é para muitos por mais que queiram. Para alguns, Liniker não precisava de nada além da voz, sendo todo o resto apelatório e descabido, isso como se estivéssemos na era do rádio e não da imagem. Ainda para isso da apelação, citemos Nego do Borel no seu clipe Me solta, onde sempre travestido beija outro homem para ultrapassar no momento os 140 milhões de visualizações de uma música pensada somente para baile funk. No mesmo vídeo, alguém alfineta: “Critica o cara, mas no Carnaval sai vestido de mulher e se amarra.” Quando é para a minha alegria, pode, não é errado, mas se o outro ultrapassa o mês da folia, é doença e apelação.

A cantora Liniker, como prefere ser chamada, no feminino, já saiu das fronteiras brasileiras, chegando recentemente a participar do Tiny Desk Concert produzido pela NPR Music, rádio de titularidade pública e sem fins lucrativos do EUA. Em tradução livre, sobre o concerto de Liniker e os Caramelows, escreveram na descrição do vídeo: “Assistir a esta performance é testemunhar um feitiço sendo lançado, nota por nota. [...] Você tem que voltar para a mistura de jazz e música brasileira no final dos anos 50 para apreciar a afinidade que nossos dois países tiveram um pelo outro musicalmente.” Também anteriormente esteve na TV portuguesa RTP, fazendo todos os apresentadores dançarem com uma composição que parte da sofrência para o amor propriamente de alguém-ele-mesmo que é chamada de Tua. Aí está uma troca positiva entre as nações, de caráter cultural e não ideológico, de riqueza cultural e não de bestialidade fascista.

Liniker sem nenhuma afetação é brasileiríssima, com uma identidade própria, dona de um trabalho visceral e sobre ser ele ou ela responde: “Quando me questionam sobre gênero, eu falo que eu não sei quem eu sou e eu acho que é importante viver essa dúvida também. Eu não preciso ter uma certeza de ‘sou homem’ ou ‘sou mulher’, meu corpo é livre, meu corpo é um corpo político, ele merece a liberdade dele e eu preciso caminhar com isso, aceitar que eu sou assim”, disse em entrevista ao G1. É para isso que se luta, para empoderar e sair do “menina veste rosa e menino veste azul” que não acrescenta nada na evolução humana, pelo contrário, resume e encerra junto com o fascismo todas as problemáticas de nosso tempo.


No entanto: dissonâncias é uma antologia da editora Castanha Mecânica que reúne 23 autoras e autores que escrevem sobre a recente atmosfera pós-eleitoral, cujo discurso aprovado nas urnas enaltece violências, ameaças às minorias, redução de direitos trabalhistas e enriquecimento da classe patronal. São 23 distintos lugares de fala, usando da construção literária, para resistir a uma narrativa delirante de extrema direita que se alimenta de revisionismos históricos e fake news para aniquilar multiplicidades e colocar em subalternidade o conhecimento e seus agentes de difusão.
Estão na antologia: Adilson Silva Didil, Ane Montarroyos, Bell Puã, Caio Lima, Carlos Gomes, David Biriguy, Enoo Miranda, Ezter Liu, Flávia Gomes, Fred Caju, Guedes, João Gomes, Jonatas Onofre, Katarine Araújo, Lucas Holanda, Maria Samara, Odailta Alves, Pedro Tostes, Philippe Wollney, Renata Santana, Rodrigo Acioli, Samarone Lima e Thays Albuquerque.


Lançamento:
12/01 – 21h13, Sebo Casa Azul, Rua 13 de maio, 121 - Carmo, Olinda/PE






por Aleksandro F. de Paula___


Imagine uma pessoa sendo criada com todo o cuidado, todo o carinho do mundo, dentro de um ambiente familiar seguro e feliz. Seus pais evitam que ela tenha contato com qualquer coisa que sugira a violência — filme, desenho, gibi, brincadeira — isso é coisa para menino, ela é uma garota, sempre a encheram tão somente de mimos e afeto.

Imagine que essa garotinha, já então uma adolescente, tem seu coração invadido por todo o feitiço, toda a mística encantadora do amor. Já então com uma tonalidade um pouco diferente do que estava acostumada, mas com a mesma substância do amor cuidadoso e verdadeiro de que sempre fora alvo. Sua vida, de repente, é um conto de fadas. O príncipe encantado, um garotão que responde aos olhares de princesa, as deixas de apaixonada. Ele se diz encantado por ela também, ela enlouquece de amor. Agora sua existência é tudo aquilo; tantos contos de fadas assistidos e, então, ela era a protagonista. E o cara é um príncipe mesmo, enche-lhe de todo carinho e da afeição que ela sempre tivera.

Alguns meses de convivência e, de repente, ela recebe o primeiro tapa; informação difícil para apreender. Fica chocada com aquilo, mas, acima de tudo, está apaixonada. Como uma esponja, o seu amor absorve esta nova palavra sentida na pele virgem: Violência. E continua amando-o “mais que tudo”, como costuma dizer-lhe e repetir ao ouvido
Um segundo tapa já não é tão traumatizante, embora, o que sente, então, recorde a dor na alma do primeiro ato.

O terceiro, o quarto tapa... e, mais tarde, o primeiro murro; um olho roxo é mais evidente que a primeira olheira, causada pelas noites de insônia, quando o conhecera. O amor talvez seja a doença da alma. A mulher tem dessas coisas em sua singeleza; uma amiga dela nunca esquecera o primeiro amor, ainda que tenha durado tão pouco. O dela poderia perdurar por muito e muito tempo, se...

Quando o primeiro dente quebrado e a primeira tentativa de ele feri-la com uma faca de mesa acontecem, ela talvez já tivesse assimilado o termo “Violência”. Mas, ao contrário, se desespera ainda. Passa pela cabeça como seus pais não a prepararam para aquilo. No entanto, mais difícil de trazer consigo aquela feia cicatriz no tórax, é aceitar viver sem o seu grande amor. O primeiro e único amor.

Contudo, quando acontecem os cem números de tapas, de murros, o segundo corte no rosto — resultado de mais uma prova de amor dele — o primeiro e derradeiro tiro, ela, possivelmente, já tivesse assimilado a palavrinha maldita, e, talvez, fosse a única palavra que lhe restasse daquele “amor”. Mas, então, era uma compreensão já tardia e ineficaz, ainda que o manuseio da arma e a precisão dele não o fossem.

O pai dela já não consegue ver o resultado final de sua princesinha no velório. Com tanto amor e carinho a criara, e outro, usando das mesmas palavrinhas mágicas, a levara, tolamente, para aquele fim.




              Conto selecionado da obra O Mecanismo das Horas, Selo Redondezas, 2015.

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Sobre o autor


Aleksandro F. de Paula (Olinda/PE, 1976) é escritor e funcionário público. Publicou O Mecanismos das Horas (Selo Redondezas, 2015), 46 Escritos (Selo Birrumba, 2018), Nada mais e outros poemas (Selo Futurarte – Poesia, 2016) e A Criação do Temor e outros contos (Selo Redondezas, 20170. No prelo: Novos Escritos e Objetos Mortais Inusitados e outros contos.


por Adriane Garcia___
Maria Tereza, protagonista de Canção sem palavras (ed. Scriptum), mais novo romance de Laura Cohen Rabelo, é uma musicista, violonista, filha de um famoso e requisitado luthier. Tendo vivido no universo da música desde seu nascimento, Maria Tereza se torna uma virtuose do violão. A narrativa se concentra especialmente no período de estudos universitários de Maria Tereza, na Escola de Música em Belo Horizonte – quando já fazia concertos em um duo de cordas, com o namorado Arie  e no primeiro ano após a formatura. 
Dos conflitos e angústias comuns aos jovens assim que deixam a faculdade, Laura Cohen dá atenção especial à questão da vocação e da escolha de um projeto de vida. Tanto Arie quanto Maria Tereza entrarão em uma crise que coloca em dúvida não só o lugar que a música ocupa em suas vidas, quanto o lugar deles próprios na relação amorosa. É nesta crise que surgirá a viagem. Tanto Maria Tereza quanto Arie são filhos de mães judias e têm a possibilidade de fazer o “birthrigth”, um programa de turismo educativo para fortalecer a identidade judaica e colocar em contato jovens judeus de todo o mundo com os israelenses. 
Ao partir para Israel, em um grupo de quarenta jovens, Maria Tereza empreenderá uma viagem surpreendente e  aqui o grande mérito de Laura Cohen  o leitor irá junto.


Chama a atenção em Canção sem palavras a fluidez do texto e a forma quase matemática (como a música) em que a narrativa vai se dando. Há um ritmo de imersão para o leitor. Nada é dado de mais ou de menos, a leitura alcança uma verossimilhança total. Laura Cohen é profunda observadora de seus personagens, flagrando suas nuances e pensamentos. Tendo escolhido contar a história na terceira pessoa, mas no tempo verbal do presente do indicativo, Laura Cohen coloca seu narrador “colado” à sua protagonista, tanto que, no fim das contas, o leitor sabe que Maria Tereza existe, que pode ter passado por ela alguma vez e até lamenta não ter ido a um concerto seu.
Outro fato notável é que aqueles que não conhecem Israel ficam com a sensação de já terem ido lá, ainda que em sonho, enquanto leem o romance de Laura Cohen. Se a melhor literatura de viagem é aquela em que o leitor sente o que sente o viajante, fica próximo de outra cultura, ganha informações que pertencem a campos distintos do conhecimento, desenha em sua imaginação o cenário proposto a ponto de parecer ter pisado nesse outro território, Laura Cohen a cumpre em Canção sem palavras.
Além do universo da viagem, o romance traz dilemas intrínsecos aos músicos e aos estudantes de música. Como se já não fosse o suficiente, o leitor curioso encontrará uma espécie de “playlist” para ouvir, já que Maria Tereza em seu percurso de estudos vai nos mostrando o nome de grandes obras e compositores.
Canção sem palavras é um romance múltiplo, com personagens completos e complexos, demasiadamente humanos, procurando seu caminho no deserto. Da crítica geopolítica à condição feminina e à consciência do mito da masculinidade, do sucesso profissional ao sentimento constante de precariedade e da perecibilidade das coisas. Sutilmente, o lugar da viagem  um país jovem numa terra inóspita, que ameaça e é ameaçado – é também metáfora: “Ela tem a impressão de que tudo é frágil e vai acabar ruindo em pedaços um dia.”
“O homem sem cidade ou é um deus ou é um monstro. Ela tem a impressão de que tudo é frágil e vai acabar ruindo em pedaços um dia. O que a salva dessa impressão sedutora e quase confortável de um fim violento é a rotina. Mais do que tudo, ela ama a rotina. Há os dias bons e os dias ruins, e isso ela pode controlar. Acorda, estuda, vai ao restaurante, trabalha, sai mais cedo quando tem aula de violão ou ensaio com o quarteto, volta para casa, estuda, toma um banho, lê, dorme. Sente que está avançando muito no violão, como se algum nó de aprendizado tivesse finalmente se desfeito, e agora ela gasta todo o tempo que tem para tocar tocando, e não se refestelando nas angústias em que se envolvera no Brasil depois que Arie foi embora. O que era uma promessa de ficar melhor finalmente tinha ficado melhor, e ela se lembra da melhor parte dos seus dias, o estudo, a rotina.
Anda muito a pé e pega a bicicleta do tio Jacques e pedala por todas as partes. Gosta de ver os judeus religiosos caminhando pela rua, gosta de passar entre eles, atravessá-los como o presente atravessa o passado. Os mais moços olham, às vezes sorriem como crianças tímidas. Bochechas coradas, homens puros. O sonho de toda religião é manter todos nós como crianças para sempre, sempre puros e sem erro. Vai enrolando para entrar no curso de hebraico, mas aprende aos poucos com a tia Deborah.

— Você não sabe de nada  diz a tia enquanto mexe a panela de molho de tomate.  Seu tio Jacques brigou com seu avô não porque ele queria ir para Israel e ele não deixava. Seu tio Jacques saiu de casa porque ele é gay. Sua mãe não te conta as coisas direito, conta?” (p. 192/193)



Por Juliana Berlim___

A vegetariana de Han Kang (Editora Todavia, 2018)


A literatura, por vezes, emerge de sonhos. Seja da perturbação noturna de Gregor Samsa em A metamorfose de Franz Kafka, seja, dilatando a ideia de literário, da sequência onírica expressiva da peça O sonho, do dramaturgo sueco August Strindberg, o texto poético vem fazendo uso há bastante tempo da ocorrência de sonhos como solução, explicação ou mesmo justificativa de fenômenos que soam inexplicáveis do ponto de vista do realismo. A autora sul-coreana Han Kang parte de premissa semelhante: coloca sua protagonista, Yeonghye, dominada pela forte impressão deixada por uma série de sonhos terríveis que a levam a não querer mais comer, cozinhar, servir ou comprar carne. Graças a esta simples tomada de decisão, súbita e absolutamente pessoal, a moça, bem como os leitores, é levada a (re)conhecer o machismo, a indiferença e a brutalidade das pessoas que a cercam.
Yeonghye passa por um processo voluntário de abandono do humano, em trânsito entre os reinos animal, vegetal e mineral. Mas, combinado a ele, temos o processo de desumanização paralelo conduzido por seus parentes, que vão deixando claro a funcionalidade de Yeonghye em suas vidas, mostrando-a, na maior parte dos casos, como peça-chave em seus processos de ascensão social. A Yeonghye esposa e filha de jovem promissor da malha urbana de Seul é conveniente e, portanto, tolerável. A partir do momento em que o radicalismo de seu vegetarianismo atrapalha as conveniências de suas relações conjugais e familiares, percebe-se o quanto a personagem está envolvida em uma malha de manipulação patriarcal que culminará em seu isolamento social.
O recurso narrativo empregado por Kang é não dar voz, em nenhum momento, à própria Yeonghye. Até que ponto a moça está louca? Mas o livro não se debruça sobre o desequilíbrio mental (aos olhos dos que cercam a protagonista), e sim sobre os efeitos da atitude de recusa da jovem em ser uma mulher onívora. Dos três relatos nos quais se divide o livro, o último é o mais próximo da anima da personagem, justamente o da irmã mais velha e fisicamente muito parecida com Yeonghye, metáfora para o espelhamento contínuo entre as duas irmãs realizado pelas demais personagens. Perceba-se aqui a desintegração e a reintegração de uma na outra.
Que a história desta Bartleby sul-coreana, até mais reativa e violenta que seu original, possa sensibilizar os leitores brasileiros para a boa literatura produzida na Coreia do Sul atualmente (como Sukiyaki de domingo, de Bae Su-ah, lançado no Brasil pela editora Estação Liberdade), em especial no tocante à condição da mulher na sociedade sul-coreana contemporânea.
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Juliana Belim é professora de Língua Portuguesa e Literatura do Colégio Pedro II. Conduz no mesmo colégio, o projeto de iniciação científica Neuromancers, de leitura e pesquisa sobre romances de ficção científica, bem como faz parte do corpo docente da pós-graduação Lato Sensu Ererebá – Educação Étnico-Raciais no Ensino Básico. Participou de três edições da FLUP – Festa Literária das Periferias, com a publicação de quatro contos no total.


por Lucas Fernandes___

Elisa Lispector

Certamente ser irmã de Clarice Lispector seria uma honra para qualquer pessoa. No entanto, ser apenas irmã de alguém não faz justiça a ninguém, muito menos para uma escritora premiada e reconhecida pela crítica literária como é o caso de Elisa Lispector (1911-1989).
Seu primeiro romance, Além da Fronteira (1945), apresenta alguns traços marcantes que se mantiveram ao longo dos mais de 40 anos de carreira: a densidade psicológica dos personagens, a solidão e a reflexão filosófica existencialista. No romance autobiográfico No Exílio (1948), a escritora narra a viagem de imigração da sua família e os primeiros anos morando no Brasil. Esse livro é considerado um marco na literatura judaica no Brasil e já está na terceira edição (2005). Também foi publicado na França, En Exil (1987).
Ronda Solitária (1954), um de seus melhores romances, antecede sua obra mais conhecida: o premiado romance O Muro de Pedras (1963), pelo qual ela recebeu os prêmios José Lins do Rêgo (1962), concedido pela Editora José Olympio, e Coelho Neto (1964), da Academia Brasileira de Letras. O Dia Mais Longo de Thereza (1965) é um dos romances mais densos de Elisa. O primeiro livro de contos, Sangue no Sol (1970), foi bastante elogiado pela crítica literária da época. O romance A Última Porta (1975) foi reconhecido como uma obra de excepcional caráter existencialista. O livro de contos Inventário (1977) reafirma a escritora como contista. O romance Corpo a Corpo (1983) é marcado pela profunda melancolia da protagonista. Seu último título lançado em vida, a coletânea de contos O Tigre de Bengala (1985), recebeu o Prêmio Luíza Cláudio de Souza, concedido pelo Pen Clube do Rio de Janeiro.
Segundo amigos próximos, Elisa era uma mulher reservada, culta e solitária. Nunca se casou nem teve filhos, faleceu de câncer em 6 de janeiro de 1989. Ela deixou um vasto acervo pessoal do qual foi possível publicar o livro póstumo de memórias Retratos Antigos: Esboços a Serem Ampliados (2012).
Apesar de uma carreira relativamente bem sucedida, Elisa e suas obras foram progressivamente esquecidas. Seus livros nunca foram sucesso de vendas, mas eram apreciados por intelectuais e por outros escritores. A ausência de reedições de seus livros é um das principais dificuldades para que o público tenha acesso a sua obra atualmente.
Muito mais poderia ser falado sobre Elisa Lispector, cuja morte completa hoje 30 anos, porém, certamente outras oportunidades virão. Até lá, ficamos com a leitura de seus livros e sabendo que ela foi muito mais do que irmã de Clarice Lispector.

por Taciana Oliveira___

 Divulgação: NEXTO

    A performance Mulheres que carregam homens dá seus primeiros passos no ano de 2013, a partir da concepção de uma pequisa intitulada Violência de Gênero: Da opressão à transformação social através do diálogo. Desde então o grupo Nexto - Núcleo em Experimentações do Teatro do Oprimido, formado pelos atores Andréa Veruska e Wagner Montenegro, se debruça sobre o tema através da elaboração de oficinas e realização de espetáculos. Em 2016 o projeto Do gênero performativo às performatividades de gênero no Teatro de Rua, é aprovado no Edital do Funcultura - PE. O objetivo dessa nova pesquisa é a promoção do diálogo entre as pessoas e o espaço urbano. Espaço esse que não está acostumado a debater questões sobre a violência de gênero.
    Mulheres que carregam homens é um dos dispositivos gestados dentro desse projeto. As principais referências para concepção dessa performance habita no conceito de performatividade de gênero, apresentado por Judith Butler e na narrativa mais do que necessária da obra Teoria King Kong de Virginie DespentesA performance conta com a participação de atores em espaços públicos, oferecendo assim oportunidade para se conhecer outras formas de atuação teatral. Mulheres que carregam homens é muito mais que uma metáfora, é a constatação que a arte não se afasta do cotidiano. Uma performance provocativa, um espelho para quem assiste e muita vezes não se dá conta que reproduz o que condena.  Conversando com a atriz e uma das idealizadoras do projeto, Andréa Veruska, ela comenta que a reação do público feminino, em algumas das apresentações, é de surpresa ao se deparar com a suposta inversão da “lógica”: homens é que carregam mulheres. Esse mesmo público se questiona, se revolta ou se reconhece na performance. Expressam descontentamento ao enxergar na dramatização o papel designado para mulher na sociedade. A resposta de parte do público masculino já é diferente. Quando convidados para atuar no dispositivo, manifestam naturalmente um comportamento agressivo e machista.
    Mulheres que carregam homens, como quase toda intervenção performática, é antes de tudo um ritual, uma abordagem para uma leitura crítica de algo que diz tanto sobre nós. A performance não procura responder sobre o tema. Não é esse o objetivo. O NEXTO busca estimular o diálogo e a participação popular. Após assistir o vídeo que documenta a passagem dos atores no Mercado Público do bairro de Afogados, peço licença e tomo emprestado o poema de Alice Ruiz para encerrar o texto: algumas flores teimam em viver/ apesar do tempo/ apesar do peso/ apesar da morte/ apesar de algumas que teimam em morrer/ apesar de tudo.



                                                      





Taciana Oliveira é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.




por Taciana Oliveira__

Linda Martini

Linda Martini  é uma banda lusitana com mais de quinze anos de estrada. Sim, só agora eu a conheci!  Um amigo, poeta português, me presentou com essa descoberta há alguns meses. Não quero nesse momento pontuar os vários motivos que levam o nosso afastamento do universo musical de Portugal. Acho uma perda sem tamanho que isso ainda prevaleça. Torço para que essa aproximação, de nossa parte, um dia ultrapasse os limites da geografia, já que do outro lado a receptividade é a melhor possível. Esse texto sobre o Linda Martini nasce para tentar expressar o sentimento maior quando da primeira vez tive a oportunidade de ouvi-los. Os versos de Volta ainda soam em mim: Há tanto tempo que nada apetece/Já não aquece, é  sempre devagar/Tudo se desmonta.


Fonte: MHD
Estou fascinada com a poesia agridoce de suas letras e a sonoridade cool de suas guitarras. Tudo pulsa além. Tudo é respirar, correr e não se render ao lugar comum: 
Fecho-me em copas e escondo/ Cidades inteiras em sitio nenhum/ Vê como caem sem estrondo/ O fado que canto não é fado algum. 
Aos poucos começo a me aventurar na discografia do grupo, composta por cinco álbuns e quatro EPS. É quase um processo de reconhecimento. O Linda Martini é formado por Pedro Geraldes (guitarra e voz), Cláudia Gerreiro (contrabaixo e voz), Hélio Morais (bateria e voz) e André Henriques (voz e guitarra). A arte tem o poder de te guiar pra onde você nem sabe que pode chegar. Foi assim que me perdi em Adeus Tristeza , versão rock para a clássica canção do cancioneiro português, de autoria de Fernando Tordo. Linda Martine é rock sem contraindicação. O novo álbum foi batizado com o nome da banda, e está disponível para acesso nas plataformas de streaming. Quem acompanha a produção dos videoclipes do grupo encontra um conceito visual potente que se traduz na sua performance. Linda Martini é um assombro daqueles que a gente tem prazer de reverenciar. 

* Ah, o poeta-amigo se chama Alberto Paulo Moreira Ferreira.






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Taciana Oliveira é cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.
por Taciana Oliveira ___

Desde o medo já é tarde, de Casé Lontra Marques (Editora 7 Letras, 2018) é um mergulho sem a mínima chance de retorno ao ponto de partida. O autor não transita na zona de conforto. Ele se permite o corte, visceralidade natural da criação. Sua composição poética declara, dentro e fora das entrelinhas, que  escrever/viver é um exercício de resistência. Assim a narrativa escolhida para o livro se desnuda numa enxurrada de sensações conectadas no outro, o leitor. 



Quando faz silêncio 
no fundo do desassossego, 
um sol 
(imoderado) se move 
pela 
medula — envolvendo
nossos receios 
sem 
evitar nenhum 
rasgo. 


por João Gomes__

Na apresentação de O nome do mundo (Armazém da Cultura, 2014), livro anterior da mineira Adriane Garcia, o crítico literário José Castello sobre sua poesia escreve: “na realidade, não é no mar que a poeta mergulha, mas no abismo.” É muito emocionante poder tomar conhecimento de todas essas águas que percorrem a produção mais recente de seu novo volume, o Garrafas ao mar (Penalux, 2018), quando a poeta, depois de ficar Só, com peixes (Confraria do Vento, 2015) — outro livro que por ter uma unidade temática constante teve o prazer de nos fazer mergulhar talvez com menos força que este último — é chegado o momento de encontramos tudo o que lançou no mais profundo mistério da existência.
Desde seu primeiro livro, Fábulas para adulto perder o sono (Biblioteca Paraná, 2013), vencedor do Prêmio de Literatura do Paraná, que a poesia brasileira não foi mais a mesma. Enquanto leitor constante do que se produz de excelente e de mal estruturado, sempre me surpreendi com o que li desta poeta. Mas resenhar o livro de uma poeta contemporânea, com uma produção tão constante e atual pode parecer tarefa fácil, quando sabemos o quanto é responsabilizador dizer algo que se some ao já dito.
De toda forma, não consigo seguir sem antes dizer que a poesia de Adriane carrega referências das mais variadas, menções que a poeta chamaria de fábulas, fazendo do poema sempre um exercício que retroalimenta o real e o imaginário, quer seja ele popular, infantil, filosófico, plástico ou mesmo metapoético. Em tempos de poesias tão insípidas e confesiobanais, a poeta escreve com o treino para perder o sono quando em “Dos encantamentos” escreve “Por muito tempo treinei / Encantamentos / Confesso que / Num concurso / Ganhei primeiro lugar // Agora desencanto / Para poder aprender novas magias: E pau é pau / Pedra é pedra.”
Como todo poeta de ofício, corre riscos, revendo o cotidiano encontrado com seus olhos de pitonisa, sabendo que o poema pode ser um quadro feito de versos ou formas que de antemão o leitor nunca deveria se cansar de mirar. Melhor dizendo, é como se a poeta pintasse seus versos e emoldurasse na página com um título tão certeiro à força que guarda o objeto. No poema “Nua”: “Poesia, meu cansaço tu / Carregas e causas.” Sendo mineira, contemporânea de Drummond, com sua poesia faz críticas não tendo “... nuvens de calças / Nem a calma / Para olhar as vidas bestas / Das janelas”, sendo esta uma imagem bem marcante nas ladeiras históricas de Minas. Mas a crítica aí não desqualifica o poético drummondiano, estando ambos em diferentes épocas, assim como fez o poeta de Itabira em A rosa do povo quando se inicia a Segunda Guerra Mundial. Assim como ele, Adriane também não quis ser “poeta de um mundo caduco”, verso do livro O sentimento do mundo, pois pra ambos “O tempo é a minha matéria, do tempo presente, os homens presentes, a vida presente.”
Mas se engana quem acredita que se render a grande figura drumondiana, verdadeiro pai da poesia mineira e o maior poeta de nossa poesia, Adriane, sendo mulher, em referência direta à poesia de Adélia Prado que questionou a servilidade e dependência feminina de uma época, sobre essa independência aos grandes poetas e aos maridos, ainda em “Nua” escreve: “Não / Ninguém trouxe meu peixe / Para o jantar / Menos ainda / Levantou-me a saia / Na cozinha”, porque em tempos de um feminismo fortalecido, “O berro que eu dei / Eras tu / Poesia.”
Intuo que Adriane não quer se colocar, apenas por se colocar, no cânone de Academia — a mesma que preferiu deixar de fora de sua estrutura obsoleta a escritora Conceição Evaristo dando o título de imortal a um cineasta, não me questionando a qualidade cinematográfica do mesmo, este ano — e sim estar à frente dele, porque em “Um dia de cada vez” conclui que “Somando tudo / Dá zero // Garçom / Me vê só a dose de hoje”. A poesia que escreve recicla formas, pensamentos e, o mais importante na arte, faz perguntas sem trazer nenhuma resposta absoluta ou pós-verdade. Quando se compara à Christiane F., livro que leu seis vezes e eu também, diz: “Eu lia e escrevia como quem se / Picava.” Por isso é essa mulher que sabemos hoje por meio de sua produção poética.
Ética e estética se misturam, como na palavra estÉtica, não por pura coincidência dentro da seleção apuradíssima de Garrafas ao mar. A poeta sabe que com este título e, apesar do risco deste título, pelo que se pode oferecer, não sendo quaisquer “algas” que escorrem, sendo o poeta, “por ter aquele sinal à testa”, vai e sente mesmo que seu entendimento, no poema “Impenetrável”, acredite que “Nunca / Jamais / Vale.” O ser poeta habita o cerne da maioria dos poemas, com sua variedade de temas, intensidades, humores e intimidades com a morte e o amor. Nada escancarado mesmo com o poder da liberdade atravessando a “Hora de vestir, vestir / Hora de tirar, tirar // O carinho das palavras / Tem que ter medida // Se o cliente gosta / Se deve mesmo à firmeza / Ou sai um poema frouxo” do amarradíssimo “Entrevista com a cafetina”.


Sendo este o quarto livro da autora, cujo domínio não poderia deixar de surpreender com a seriedade e força de seu ofício, “Este veículo que sou / E que é peça na engrenagem” que lemos em “Trator”. Adriane escreve sem medo, porque, em “Inventário”, “Só a sétima fênix / É a verdadeira”, e nela perco-me na quantidade de vezes que reli este volume sabendo que me reencontro a cada nova garrafa encontrada. Assim como na epígrafe de Thais Guimarães, “Encontrei uma mensagem criptografada: / Poesia”. Das dificuldades de organizar cada garrafa encontrada, “Pedi socorro por tantos dias quantos foram / Os de minha vida / Também encontrei garrafas / Às quais não abri”, no poema que dá título ao livro.
Pois é justamente esta a sensação quando penso em quem nunca abriu sequer um biscoito da sorte ou, mais vastamente possível aqui, pôde encontrar estas garrafas submergidas de poesia. Por suas mãos nos foi servido o melhor vinho de uma safra iniciada em 1973, ano de seu nascimento, ou de 2013, ano da publicação de seu primeiro livro. Este que por aqui não encerro o que tenho a dizer entra na lista dos que sempre releio por inteiro, pela riqueza temática e possibilidade vasta de entendimentos numa forma tão enxuta dizendo tanto sobre tudo e todos. Porque o mar da existência é vasto demais para não irmos de mãos dadas e em tempos como estes, sabemos, ninguém solta a mão de ninguém.
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 por Taciana Oliveira__


    Agora, minha terra é o Leme" Clarice Lispector 
    
   O livro O Rio de Clarice - Passeio afetivo pela cidade (Editora Autêntica, 2018) de Teresa Montero, resgata muito mais que um roteiro clariciano no Rio de Janeiro. A obra traz um rico apanhado de informações históricas sobre os bairros cariocas e personalidades que transitaram em épocas distintas no universo de Clarice Lispector. É sobretudo um mergulho fundamental na geografia afetiva da escritora, desde sua chegada no bairro da Tijuca, passando por caminhos referenciais da sua biografia, além do mapeamento de suas obras nesse percurso. Para o leitor, fã de Clarice Lispector, é a oportunidade de conhecer cenários escolhidos por ela para a criação de alguns das suas personagens: Ana (do conto Amor), Macabéa (da novela A Hora da Estrela), Lori (de Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres), as prostitutas da Praça Mauá (do conto Praça Mauá)... Todos circularam e ainda "circulam" por esses espaços. Impossível não "sentir" Clarice ao visitar o Jardim Botânico ou ao respirar a maresia da Praia do Leme.
Professora e biógrafa de Clarice Lispector, Teresa Montero sempre comprometida com o resgate cultural de sua cidade, criou os Caminhos da Arte no Rio de Janeiro, em 2008, após conhecer os Caminhos Drummondianos em Itabira, cidade do poeta Carlos Drummond de Andrade. O passeio O Rio de Clarice é resultado dessa experiência . Por esse motivo registramos no livro a presença de figuras emblemáticas que respondem pela construção de uma identidade intelectual e artística do Rio Janeiro, e pelo encantamento nostálgico da obra. A publicação nos remete algumas vezes a um almanaque, um mapa de afetos ou o registro iconográfico sentimental de uma metrópole.
Com um belo projeto gráfico, suas páginas são ilustradas por mapas e por um raro acervo fotográfico cedido pela família de Clarice e pela Fundação Casa de Rui Barbosa, Arquivo-Museu de Literatura Brasileira. Complementa ainda um ensaio exclusivo do fotógrafo Daniel Ramalho. A narrativa, costurada por comentários de amigos, familiares e trechos das obras de Clarice, também é o regaste da memória de uma cidade. O livro não se furta em receber o acolhimento de outros leitores distantes do universo clariciano. Teresa sempre pensou no envolvimento maior da população com o Rio de Janeiro: O passeio não é só a propósito da Clarice – é a propósito da cidade. (...) Porque o passeio propicia isso: você entra em contato com a cidade de uma forma muito direta, você sente os cheiros, você escuta os sons. É uma espécie de pedagogia dos sentidos. Leva a olhar o Rio de outra maneira, desperta o desejo de cuidar da cidade.
Confesso a emoção ao encontrar nomes como o da bailarina Gilda Murray e do artista plástico pernambucano Augusto Rodrigues. Ambos, amigos próximos de Clarice Lispector, figuras profundamente envolvidas em suas áreas de atuação. Teresa acerta na transposição da narrativa oral do passeio para a narrativa escrita. Ela abre portas, ruas e possibilita a sensação para o leitor, que não conhece o itinerário, de caminhar pela cidade ou até mesmo de que “comprou” uma cápsula do tempo. Testemunhei a criação desse projeto, acompanhei alguns dos passeios programados e guiados por Teresa Montero no Leme. Assisti de perto o esforço e determinação para que a publicação chegasse ao leitor com o máximo nível de qualidade. E chegou! No lançamento do livro em Recife comentei com Teresa: Dona Clarice ficaria orgulhosa!