Tudo o que fazemos reverbera nos outros e no universo


por João Gomes__


Wilson Freire



Compositor, poeta, escritor, produtor cultural, cineasta e médico também homeopata. No auge dos seus 60 como é, Wilson, conviver com todas essas qualidades e aptidões e, a saber como é sua rotina, um ofício complementa o outro?


As coisas foram acontecendo em mim. Nunca disse coisas assim: um dia serei escritor, compositor, cineasta, médico. Um dia me peguei escrevendo versos rimados, nos moldes da literatura de cordel, dos violeiros repentistas, ainda criança, contos ou crônicas também, no Sertão de Pernambuco, Sertânia, onde morava, em um caderno escolar que guardo até hoje. Também tinha muito gosto pela literatura e pelos estudos do colégio. Era um “bom aluno”. Depois da minha vinda para o Recife, em meados dos anos 70, conheci a cultura popular do litoral, da zona da mata canavieira e, da mesma forma, me peguei escrevendo canções de maracatu, frevo, caboclinhos, fazendo letras para amigos e participando dos festivais de música. Foi nesta época também que conheci o movimento dos cineastas superoitistas, que tinha figuras fantásticas, como Jomard Muniz de Britto, Fernando Spencer, Celso Marconi, Geneton Moraes Neto, Fernando Monteiro, Djair Almeida Freire e tantos outros. Como era muito caro fazer esse tipo de cinema, fiquei só na vontade de realizar filmes com aquela bitola de 8 mm, a Super 8. Ainda, no final desta década, conheci o multiartista Antônio Nóbrega, nos tornamos amigos e parceiros até hoje. Com o advento das câmeras digitais, então pude fazer aquilo que não fiz no passado: filmes. Foi quando entrei na universidade para estudar medicina, que é uma coisa que gosto muito, com a qual convivo sem muitos grilos, fazendo essas outras coisas, quando pinta na telha ou na tela.
Minha rotina não tem nada de especial. Gosto de me acordar cedo e escrever alguma coisa, pois geralmente me levanto com uma ideia nova ou alguma que já fui dormir pensando, vou trabalhar como médico, passo o dia nos ambulatórios ou no hospital, atendendo, e à tarde volto pra casa, caminho um pouco pra oxigenar as ideias, janto e vou ler ou escrever ou ver um filme ou não fazer nada, só conversar com as pessoas de casa. Faço o que me dá vontade. Nos finais de semana gosto de gravar as imagens dos meus filmes ou editar as que já fiz. É tudo na boa, sem estresse. Faço tudo com prazer. Se não tiver isso envolvido, não rola. Nem por dinheiro. Sou holístico. Acredito que tudo o que fazemos reverbera dentro e fora de nós, nos outros e no universo. Então, minhas atividades de médico e com a arte são simbióticas.

Você vem do sertão pernambucano para o Recife ainda adolescente, em 1975, fez militância artística junto ao Movimento de Escritores Independentes de Pernambuco e tem ao longo de sua trajetória trabalhos em várias linguagens e formatos. Seu nome é bastante conhecido no cenário cultural de PE, e isso faz querer saber o que você acha das relações entre os artistas no meio?

Acho que, por talvez circular ao longo dessas décadas por entre e com artistas de várias vertentes, como artes plásticas, audiovisual e literatura, a minha presença não seja de toda estranha. Convivo com artistas que iniciaram suas carreiras ainda nas décadas de 60/70 e com os que estão iniciando hoje suas trajetórias. Também acho que neste momento em que as artes/artistas estão sofrendo um dos maiores ataques à produção por parte do governo federal, está havendo uma maior congregação entre todos, no sentido de resistir, produzir e viver do que fazem. Isso foi vivenciado no período do regime militar que se instaurou no país de 1964 a 1986. Temos que reaprender as lições exitosas do passado para atravessar esta longa noite que só está começando.

Sua escrita é sempre breve, por vezes apenas diálogos, pautada na concisão de poucos caracteres em textos que compõem séries publicadas instantaneamente nas redes sociais. Você também integra a antologia Os cem menores contos brasileiros do século, organizada por Marcelino Freire. Dada a velocidade da vida atual, a vida é tão curta que cabe num microconto, não tendo tempo a perder com tudo aquilo que se demora? É um facilitador sua concisão na escrita?

A minha escrita curta e rápida, mais conhecida nas redes sociais, por conta do espaço e da pressa das pessoas que leem, é uma vertente da minha produção literária. Tenho textos longos. Alguns livros de contos, poesias, novelas, ensaios, ainda inéditos, desorganizadamente arquivados. Tenho muita preguiça em publicar por conta das dificuldades tanto de publicação quanto de distribuição. E aí que vou “desovando” essa dita mais rápida, quase diariamente e tentando juntar/organizar esta outra de mais fôlego, para possíveis futuras impressões físicas ou em formato e-book.

Sua filha Sofia Freire é cantora, pianista e compositora. Enquanto Clarice, sua outra filha, é autora do best-seller Pó de lua. Como é ser pai de duas filhas artistas e, aproveitando que sua formação é medicina, seria a hereditariedade ou a educação que torna alguém capaz de fazer arte?

Acho que o ambiente que circula arte influencia as pessoas que estão em formação. Com as minhas filhas não foi diferente. Foram criadas entre livros, discos e visitas de artistas parceiros e amigos. Por outro lado, também me viram na minha labuta diária com a medicina, como também a mãe delas em atividades ligadas à assistência às pessoas, principalmente crianças e adolescentes vítimas de violências, atendidas na rede pública de saúde. Elas conheceram essas duas vertentes. Como não fizemos nem fazemos pressão na escolha daquilo que cada uma quis seguir como profissão, Clarice fez publicidade e é escritora e Sofia é musicista. Ambas com a consciência que isto não é um hobby, mas uma profissão e, como tal, deve ser encarada e vivenciada. Estão na luta para sobreviver do que fazem. Como sabemos, não está sendo fácil, diante deste contexto político que estamos vivenciando. Mas foi uma escolha. Agora é fazer suas próprias caminhadas. A estrada é longa.

Você tem um trabalho de cura pela arte no Hospital Universitário Oswaldo Cruz. Poderia contar como funciona, quem é o público e como é aproveitado o processo criativo?

Há mais de 20 anos participo de um programa neste Hospital, que é “A arte na medicina às vezes cura, de vez em quando alivia, mas sempre consola”, idealizado pelo professor Paulo Barreto Campelo. Funciona em um prédio que fica ao lado do Centro de Oncologia, CEON, em uma estrutura física em forma de castelo, daí ser conhecido como o “castelinho”. São três andares onde funcionam atividades artísticas voltadas para, principalmente, as crianças que frequentam aquele Centro de tratamento contra o câncer, como uma forma coadjuvante de enfrentar a doença. Lá elas desenvolvem atividades de canto, dança, musicalização, trabalhos manuais com material reciclado, contação de história e atividades de audiovisual. Sou o responsável por esta última. Trabalhamos principalmente com elas na feitura de vídeos utilizando a técnica de stop motion, com massinha ou com material reciclado, ressignificando histórias que elas próprias contaram. O que se tem observado é que, quem faz essas atividades de forma mais regular, tem reduzido o tempo de internação e aceita melhor o tratamento, muitas vezes longo e doloroso das rádio e quimioterapias. Existem muitos trabalhos que comprovam os benefícios para estes pacientes, aumentando a eficácia do sistema imunológico que defende o organismo e, consequentemente, a possibilidade maior de cura.

Sobre suas pinturas com café, como são realizadas e como são guardadas? Surgiram a partir da necessidade de ilustrar seus textos?

Pintura com café, tela de Wilson Freire
A minha primeira manifestação artística foi a pintura. Por um curto período, incentivado por minha prima, Elbany Freire, fiz alguns quadros em madeira. Mas essa experiência esbarrou na questão financeira. Era caro comprar tinta e papel, nos anos 70, no Sertão. Lápis e papel era mais fácil. A literatura era mais acessível. Depois disso não pintei mais nada. Há cerca de dois anos, meio que por acaso, tomando café, derramei um pouco sobre a mesa. Observei que se formaram algumas figuras de formas meio surrealistas. Fiz pequenas intervenções e achei interessante o resultado. Fui experimentando até que não esperava mais o acaso, já direcionando o que queria fazer. Isso está resolvendo um problema que era o das ilustrações dos meus textos. Sempre que precisava, pedia a alguém para fazer ou comprava em sites, pelo uso das imagens. Hoje eu próprio faço minhas capas e ilustrações. Fiquei mais independente de terceiros. O processo se dá mais ou menos assim: depois de imaginar o que eu quero desenhar, derramo o café bem concentrado sobre uma mesa de superfície lisa - mas porosa, dessas tipo PVC - e vou tentando, com os dedos ou pincéis, fazer o que quero. Muitas vezes acabo fazendo outra coisa que nem imaginava. E assim vou pelo método da tentativa. Depois de terminado fotografo e apago, pois não tenho espaço para guardar. É uma arte efêmera, algo como um grafite. Gosto do processo.


Seu curta Encruzilhada nos trilhos foi gravado e editado por você num smartphone e tem no elenco o jovem poeta Gleison Luiz Nascimento no papel de Dê Endi, também um jovem poeta solitário que vem pro Recife pelos trilhos encantado pela música de um rabequeiro. É autobiográfico o mote dessa narrativa?

Este projeto começou como um curta-metragem mas transformou-se num longa. Durante o processo de gravação fui percebendo que a história e as locações não eram apenas para uma narrativa curta. Hoje está no processo de finalização. Acho que toda ficção que escrevo tem um pouco de mim reinventada. Escrevi um poema em 1990, “No itinerário de um trem”, que falava de chegadas, partidas, idas, vindas, despedidas, que acontecem nas estações dos trens. Este foi o adaptado para o curta. O longa deixa o ambiente das estações e ganha os trilhos, um road movie, gênero que eu gosto muito de fazer, pois as locações, as mudanças de paisagem, por si só, já são uma das narrativas do filme final. Esses locais de filmagens foram visitados por mim quando fazia o percurso Recife-Sertânia nos vagões da RFFSA, na década de 70. Refiz este mesmo percurso contando a história que você referiu. Para baratear a produção, gravamos em um smartphone. O resultado é positivamente surpreendente.

Seu livro A outra voz, publicado de forma artesanal pela Mariposa Cartonera, mistura memória e ficção sobre o período da ditadura brasileira. Em sua opinião, o que faz uma irrisória parcela da população desejar a volta dos anos de chumbo e o que isso acarretaria, visto que em 64 não havia internet? A qualidade deturpada da educação brasileira torna os jovens menos críticos à história de nosso país?

Acho que os governos pós regime militar não cuidaram de difundir a verdade sobre este período, principalmente nas escolas. O acordo das elites da “anistia ampla, geral e irrestrita”, que perdoava torturadores, violadores dos direitos humanos, dizendo que “a partir de agora não se fala mais nisso”, “já passou” e outras coisas do gênero, fez com que as forças reacionárias, ao longo dos governos não militares, se reagrupassem e fizessem o que fizeram, depondo a presidenta Dilma, colocando Temer e elegendo Bolsonaro em seguida. Todo esse processo aconteceu por, principalmente, falta de informação da população que, primeiramente não reagiu ao golpe e, depois, engoliu o engodo das fake news. Informação foi e será causa e consequência de tudo. Não é à toa que um dos principais objetivos deste governo é a implantação do “escola sem partido” que, pretende, segundo o capitão, fazer com que “a garotada não se interesse por política”.

Já em A mulher que queria ser Micheliny Verunschk, uma mulher decide ser escritora usando o pseudônimo da escritora e poeta brasileira Micheliny Verunschk. Poderia contar o que inspirou esse atravessamento de possibilidades até o lançamento da obra?

A escrita deste livro só se iniciou quando encontrei o nome da escritora Micheliny Verunschk. Eu não a conhecia. Vi o nome dela em uma revista e achava que ela era do século passado, vinda da Rússia, Ucrânia, enfim. Pesquisando mais, descobri quem era a nossa querida Micheliny. Então, a partir daí, meio que por acaso, tinha o que me faltava para fechar o enredo: a mulher que queria colocar seu pseudônimo de Micheliny Verunschk, ao descobrir que a mesma está viva e em atividade, decide que seu pseudônimo será “A mulher que queria ser Micheliny Verunschk”. E aí foi só sentar e escrever. Em 21 dias a novela estava pronta.

Sempre se reciclando, ora num formato, ora numa linguagem diferente, quais são os próximos projetos que podemos aguardar desse múltiplo artista?

O lançamento de um romance, um filme longa-metragem e outros curtas, uma exposição de algumas fotografias e pinturas com café, um novo trabalho musical em parceria com Antônio Nóbrega e outros mais pontuais com outros músicos, incluindo a minha filha Sofia Freire. E continuar estudando e atuando como médico homeopata, minha grande paixão.



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João Gomes (Recife, 1996) é poeta, escritor, editor criador da revista de literatura e publicadora Vida Secreta. Participou de antologias impressas e digitais, e mantém no prelo seu livro de poesia.