Arte - O que é arte e o que é amizade?

Por Tadeu Sarmento__

Fotografia: Igor Cerqueira



Vamos começar com uma comparação. Como você agiria se um amigo seu, de longa data, desembolsasse cem mil reais por uma tela em branco (pintada por um obscuro artista de nome holandês, chamado “Andrius”) e, envaidecido com essa aquisição, cheio de pompa e cerimônia lhe mostrasse o quadro monocromático, obviamente esperando de você uma opinião que validasse a grande decisão de comprá-lo? Pois foi o que fez Sérgio, amigo de Marcos, dois dos três protagonistas da peça “Arte”, texto da francesa Yasmina Reza, montado e dirigido por Sérgio Abritta.

Eis o fato (à primeira vista) banal, que no palco desencadeia toda sorte de neuroses, ressentimentos, invejas, entre outros afetos de baixa extração, os quais, aos poucos, vamos notando terem sido sedimentados ao longo de vinte anos de uma duradoura amizade. Tudo porque Marcos, no lugar de se empolgar com a compra do amigo, discorda dele de uma maneira exagerada, intolerante e quase histérica, criticando ferozmente Sérgio por adquirir um quadro que, no seu entendimento, não possui nenhum valor artístico.
Óbvio que Sérgio se ofende, atribuindo a resposta à falta de ferramentas teóricas, necessárias para que o amigo desfrute de uma experiência estética contemporânea, e o que se segue a este estopim é um acirrado (e, ora hilário, ora comovente) embate intelectual entre os dois, cada qual tentando trazer para seu lado o amigo em comum. Este amigo é Ivan, terceiro protagonista da história: à primeira vista, um espírito mais conciliador e menos combativo que os demais. Só que o seu esforço inicial de se manter isento e fora do jogo acaba atiçando ainda mais a disputa entre Sérgio e Marcos, terminando por atingir e ultrapassar quase todos os marcos civilizatórios que nos permitem viver em sociedade.

A esta altura, já temos bem traçadas no palco as personalidades dos três amigos: Sérgio é um pós-modernista diletante com ares de novo-rico; Marcos, um conservador esnobe, cínico e irritadiço; e Ivan, um delicado sonhador que dança conforme a banda toca. A maneira como estes personagens se desenvolvem, através de diálogos precisos e naturais até a maestria, é extraordinária, sugerindo desde o início que todos têm motivos de sobra para romperem relações, embora, estranhamente, não o façam, até que o final espetacular traga à tona as razões de estarem juntos há tanto tempo.

Fotografia: Igor Cerqueira

O que é arte e o que é amizade, são as duas perguntas que ecoam o tempo inteiro enquanto os atores contracenam. E quais os limites de ambos? Aos poucos, os espectadores vão percebendo que Sérgio, Marcos e Ivan são personalidades complementares, não excludentes, e que todos nós podemos ser cada um deles em determinadas fases de nossas vidas, daí nossa imediata identificação. Quem de nós nunca considerou sua opinião como um valor absoluto (como Sérgio) ou já duvidou da emoção do outro diante de algo que julgava sem valor, como Marcos? Quem de nós nunca se ressentiu, como Ivan, diante da riqueza e do sucesso do outro, escondendo sua subserviência atrás da máscara do bom-mocismo?

Aqui, o grande mérito do texto de Reza é deixar em segundo plano o debate sobre o que é arte na pós-modernidade (debate que, de tão batido, poderia deixar a peça maçante) e usá-lo apenas como pretexto para lançar suas luzes sobre os testes de resistência à sinceridade que uma amizade é capaz de suportar. E se o senso comum afirma que precisamos de situações extremas que nos coloquem em contato com nossa verdadeira natureza, “Arte” vem comprovar que as situações banais também podem cumprir esta função, jogando as pessoas, de uma hora para outra, em posições nada confortáveis, como a de se sentirem obrigadas a tomar partido.

Não bastasse o ótimo texto, os três atores em cena estão afiados e, apesar de terem suas personalidades rapidamente distinguidas pelo público, não são nem um pouco esquemáticos. Em tempos como os nossos, onde o diálogo vem sendo substituído por uma cacofonia de ataques, a intolerância como a principal barreira da comunicação é um dos pontos chave da peça. E por falar em tempos como os nossos, “Arte” está em cartaz com zero de patrocínio, de nenhuma esfera do poder público. É um empreendimento corajoso, mantido por apaixonados, e conta com a nossa presença para prosseguir.


Arte
Texto: Yasmina Reza.
Direção: Sérgio Abritta.
Elenco: Alexandre ToledoGustavo Werneck, Marcus Labatti.
Em cartaz no Teatro da Cidade, Rua da Bahia, 1341
Sexta e sábado às 20:30 e domingos às 19:00






















#Arte  #TeatroMinasGerais   #Resistência

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Tadeu Sarmento é autor dos livros breves fraturas portáteis (Fina-Flor Editora, 2005) e Paisagem com ideias fixas (Bartlebee, 2012). Associação Robert Walser para sósias anônimos (Cepe Editora, 2016) e O Cometa é Um Sol que não deu certo (Edições SM, 2019)