Reminiscências [Apojatura]


por Rebeca Gadelha__
Artista: Asteroid

Tenho (re)visitado essas memórias até se tornaram lugar-comum, revisito-as com uma xícara de chá, como se me preparasse para algo: poderia ser o começo de um novo dia, o fim de uma fase, o meio de qualquer coisa que já passou da hora de terminar. Quando criança, costumava dizer “meu pai caiu no mar e um navio passou por cima” era a explicação infantil para justificar o descaso da ausência. Alguns anos depois, mamãe me disse, com uma voz macia, que meu pai vinha me visitar — e então meu mundo virou do avesso — então ele não havia caído no mar, se perdido entre o infinito de água acima e abaixo, mas estava lá em algum lugar e finalmente este lugar seria perto de mim. “Ele quer te conhecer” e foi assim que se começou o processo de idas e vindas, sem permanências. Conto nos dedos suas visitas e suas promessas — quero ter contato com você, dessa vez vai ser diferente — já na terceira vez que mamãe anunciou com a mesma voz macia a visita deste ser distante, eu disse “NÃO” e somente vovó me convenceu do contrário, ao que parece, avós tem um certo jeito para convencer pessoas. Nada foi diferente, tudo ficou no lugar, exceto a criança em mim, que deslocava-se cada vez mais para algum lugar estranho, as somas de decepção minando aquela vontade de ser completa, aquela nostalgia pelo o que não existia.

Veio-se então a vez que seria a última — e dentro de mim acredito que já sabia — porque agora seria diferente, porque eu já tinha 20 anos e éramos adultos, poderíamos falar sinceramente um com o outro, abrir o jogo sobre questões do passado, lavar a roupa suja que se amontoara nos quartos escuros. Não houve sinceridade que bastasse, nem todo a roupa suja foi lavada, talvez fosse preciso todas as águas do mundo para isso, talvez bastasse um pouco mais de vontade. O fato é que sabia que ele não ficaria, não importava o que fosse dito e que, sabendo disso, fosse melhor que fosse embora para sempre e sumisse de uma vez. Continuaríamos como dois estranhos: ele como um nome na certidão de nascimento e eu como um nome no imposto de renda. Uma relação de ausências convenientes, principalmente para ele — que ainda recebe descontos aqui e ali do leão por me declarar como dependente. Alguns trocados por mês para poupar o que o dinheiro não compra: tempo.

Este texto é parte da série Reminiscências, que narra a tentativa de uma garota de recuperar parte da história de sua família a fim de compreender a si mesma. Clique aqui para ler o prólogo.



Rebeca Gadelha nasceu no Rio em agosto de 1992, cresceu em Fortaleza, na companhia dos avós. Geógrafa sem senso de direção, artista digital, é apaixonada por animes, mangás, games e chá gelado. Tem medo de avião e a única coisa que consegue odiar de verdade é fígado. Foi responsável pela diagramação, ilustrações e concepção visual em Balbúrdia, participa da coletânea Paginário, publicada pela Editora Aliás. Atualmente escreve para as revistas do Medium Ensaios sobre a Loucura e Fale com Elas sob o pseudônimo de Jade