Pesado demais para a ventania, antologia poética, de Ricardo Aleixo


por Adriane Garcia__


Multiartista, Ricardo Aleixo é ele próprio um testemunho da poesia. Seus poemas são grafados no papel e/ou no corpo (corpografia, a exemplo de O poemanto), nas apresentações performáticas que faz, no seu modo de sobreviver de arte, na voz e no movimento, no seu constante trabalho de ressignificação do mundo. Tudo isso pode ser percebido nos seus versos que, escritos por um autodidata erudito e incansável, compõem-se também em interlocução com o teatro, a dança, a música, as artes plásticas, as experimentações sonoras e de vídeo, em uma escrita que sai do seu domínio tradicional e adentra outros espaços, inclusive das novas tecnologias.
A antologia Pesado demais para a ventania vem quando este autor completa 25 anos de produção poética e permite um contato rico e vigoroso com sua poesia; nela estão seus temas, sua cosmogonia pessoal, referências artísticas e intelectuais, experimentação linguística, mitopoética, registro de resistência e posicionamento sócio-ético-político. Já de entrada o poeta alerta (este é o primeiro poema que nos recebe) que não fala português: fala pretoguês. Após essa significativa entrada, que conta com a visualidade da arte da fotografia em amálgama, a antologia se complementa em seis partes.
Em Desde e para sempre há um destaque maior para as questões de origem, nascimento e morte. Poemas cujos personagens são principalmente a família, pai, mãe, irmã. A leitura e a escrita aparecem como constituintes dessa origem, dois atos intrinsecamente ligados à identidade que se construiu. Não à toa, o primeiro orixá que aparece nessa sequência é Exu, o comunicador. Nessa primeira parte, o leitor toma contato com poemas de assuntos fundadores para uma obra que é sobretudo orgânica, nada nela é estanque, e se considerarmos que essa antologia não possui ordem cronológica, fica ainda mais interessante notar que ela cresce tanto do início para o fim, quanto do fim para o começo. O que se depreende disso é que em qualquer fase da poesia de Ricardo Aleixo há uma essência e um acréscimo, seja ele de tema e/ou de forma. Também importantíssima a posição de denúncia contra o racismo e o genocídio da juventude negra no país, já demarcada no poema Na noite calunga do bairro Cabula, cujo ponto de partida foi a chacina ocorrida no bairro Cabula em Salvador, em que a Polícia Militar assassinou 12 jovens entre 15 e 28 anos e deixou outros 6 gravemente feridos. As Polícias Militares seguem matando a juventude negra por todo o país nessa noite interminável. O poema além de emocionante é uma perfeição técnica de ritmo, sonoridade e uso das palavras.
Na segunda parte, intitulada “Outros, o mesmo”, a abertura se dá com um poema sobre ganância e corrupção, escrito em dísticos (uma forma cara ao poeta); destacam-se também os temas existenciais, filosóficos, a reflexão sobre o espaço-tempo, um olhar atento ao sentimento de se localizar no mundo e entre as coisas. Nessa seção, comparecem os poemas visuais e o O poemanto: ensaio para escrever (com) o corpo. Esse poema é especialmente importante pois, escrito, ele é somente parte do próprio poema, sua análise. Nele estão contidas ideias e conceitos que atravessam o trabalho do poeta. Na forma escrita: a liberdade de transitar os gêneros; é poema e é ensaio sobre o poema, é poema e é a análise sobre a apresentação do poema. O poemanto é também um objeto. O corpo do artista precisa vestir O poemanto, como Arthur Bispo do Rosário precisava do manto para falar com Deus. O manto é pintado com substantivos retirados de versos do livro Trívio (2001). O poemanto, lido e/ou apresentado, só se completa com a co-criação do público, enquanto o lê/vê. Eis aqui o caráter coletivo que a obra do poeta encontra. Lembra a palavra vanguarda, mas não no sentido antiquado que o termo assumiu, hoje mais parecendo querer dizer retaguarda. O poemanto tem uma proposta de avante porque, na sua inquietude, o poeta busca aliar ao antigo (sobretudo à tradição dos griôs) novas maneiras de comunicar a poesia ao vivo, exercitando a sua capacidade tão urgente neste mundo: desautomatizar a palavra gasta e vazia e dar a ela novos sentidos. Sentidos que se emitem e retornam, do artista para o público, do público para o artista, linguagem fluente, sem arestas e de abertura dos sentidos: as faculdades humanas vão muito além do cognoscível. Quem já assistiu a uma apresentação de Ricardo Aleixo percebe que ele não experimenta só a si e aos seus limites nas suas criações, mas experimenta o público, em uma experimentação de mão-dupla.
Em “O coração, meu limite”, Ricardo Aleixo canta o amor universal e o amor romântico, a dança a dois, o sexo e a conversa entre os corpos, a mulher e os relacionamentos. Nota-se, como no poema Algo pesado, um eu-lírico que declara o amor como um lugar onde a linguagem falha; não a do poema, mas a dos amantes na sua interação: “Coração seco, palavra oca”.
Na seção “Multidão nenhuma”, os poemas refletem em torno da questão da coletividade/solidão/espaço; o homem coletivo é também um homem solitário e vice-versa. Aqui podemos notar a força que a cidade natal do poeta, Belo Horizonte, tem em sua poesia, ainda que em uma relação conflitante (como no poema Antiode: Belorizonte), é ela que marca os seus passos, é nela que estão os cães da rua com os quais o eu-lírico se identifica, os bons afetos, a casa, os perigos pelas esquinas. Em Multidão nenhuma salienta-se o quanto a poesia de Ricardo Aleixo está comprometida com os trabalhadores, os desvalidos, os menos favorecidos, as pessoas de pele negra. A relação dessa poesia com o espaço, em qualquer cidade que ela se desenhe, seja no Brasil ou em país estrangeiro, traz sempre a denúncia de um olhar sobre a injustiça social, traz a marca de um poeta que mora em um bairro periférico da sua urbe.
A última parte é intitulada de forma homônima ao poema “Queridos dias difíceis”. Nesta parte, os poemas destacam versos de crítica e ironia. Já no primeiro poema, “Eu, militante, me confesso”, uma crítica ao militantismo que se recusa a aprender, a ler, e que fica preso à empáfia daquilo que, paralisado no tempo, arroga-se entender e ensinar sobre a realidade. Também as relações pessoais precisam de sua dose cotidiana de mentira, o que fica bem refletido em “Dor”, um poema sobre como a independência de uma pessoa incomoda as outras, descrevendo a relação em que é preciso fingir que não se sabe cuidar de si próprio para agradar um suposto cuidador. Nesta seção também estão presentes o tempo, a efemeridade da vida e a irreversibilidade dos acontecimentos, o sentido da experiência humana, quando se carrega a pedra de Sísifo, a poesia como resistência pessoal e diária do próprio poeta, que nunca se considera pronto. O “Antiboi”, poema e manifesto de uma postura da dúvida é também um aviso: não ser parte de manada, não crer no que está posto, nada é caprichoso ou garantido, ainda que o afirmem. Por fim, os poemas Brancos, Um ano entre os humanos e Meu negro fecham esse livro com uma contundência exemplar e colocam questões que nos perguntam diretamente sobre as consequências da diáspora africana, sobre a nossa humanidade e o nosso racismo de todo dia.
Pesado demais para a ventania é, para além dos temas, uma aula de poesia contemporânea no que diz respeito à forma. Uma coleção que reúne trabalhos de um poeta que passa pela poesia do sentido, dando ênfase aos aspectos semânticos e ideológicos da palavra; pela poesia da poesia, metadiscurso, quando o eu-lírico cede lugar ao eu das palavras e é o eu do próprio texto que nos convoca; e pela poesia da visão, quando os sinais não verbais são também construtores do sentido. Ricardo Aleixo nos mostra a linguagem no apuro da técnica, do estudo, mas que consegue se manter fresca porque traz em si o aspecto lúdico que se verifica nas crianças e que acompanha alguns poetas. Essa vontade de experimentação, de brincar com as matérias-primas, de produzir objetos; essa festa dos sentidos e inquietação é típica da infância. A improvisação é parte crucial, mas há um conhecimento (estudo) profundo sobre aquilo que se está improvisando (intuição). E quem lê/ouve/vê/sente a poesia de Ricardo Aleixo pode concluir que ela não é, exatamente, uma “poesia expandida”, mas uma “poesia expandindo”, pois ela vive com a vida, enquanto se vive, autor ou leitora/leitor, se transformando com ela. Ao ler essa poesia escrita em pretoguês não temos dúvida de que esse é o idioma com o qual o Brasil deveria ter sido alfabetizado:


Minha linha

Que o dono da fala
nunca
permita que eu saia
da linha
a linha que
quanto mais torta
mais posso dizer
que é a minha

Sempre fui
meu próprio mestre
e é sem tristeza
que conto
que ainda não aprendi
nada
não me considero
pronto

Em matéria
tão complexa
quanto a arte
de entortar
a linha
que nem a morte
há de um dia
endireitar

Na noite calunga do bairro Cabula

Morri quantas vezes
na noite mais longa?

Na noite imóvel, a
mais longa e espessa,

morri quantas vezes
na noite calunga?

A noite não passa
e eu dentro dela

morrendo de novo
sem nome e de novo

morrendo a cada
outro rombo aberto

na musculatura
do que um dia eu fui.

Morri quantas vezes
na noite mais rubra?

Na noite calunga,
tão espessa e longa,

morri quantas vezes
na noite terrível?

A noite mais morte
e eu dentro dela

morrendo de novo
sem voz e outra vez

morria a cada
outra bala alojada

no fundo mais fundo
do que eu ainda sou

(a cada silêncio
de pedra e de cal

que despeja o branco
de sua indiferença

por cima da sombra
do que eu já não sou

nem serei nunca mais).
Morri quantas vezes

na noite calunga?
Na noite trevosa,

noite que não finda,
a noite oceano, pleno

vão de sangue,
morri quantas vezes

na noite terrível,
na noite calunga

do bairro Cabula?
Morri tantas vezes

mas nunca me matam
de uma vez por todas.

Meu sangue é semente
que o vento enraíza

no ventre da terra
e eu nasço de novo

e de novo e meu nome
é aquele que não morre

sem fazer da noite
não mais a silente

parceira da morte
mas a mãe que pare

filhos cor da noite
e zela por eles,

tal qual uma pantera
que mostra, na chispa

do olhar e no gume
das presas, o quanto

será capaz de fazer
se a mão da maldade

ao menos pensar
em perturbar o sono

da sua ninhada.
Morri tantas vezes

mas sempre renasço
ainda mais forte

corajoso e belo
só o que sei é ser.

Sou muitos, me espalho
pelo mundo afora

e pelo tempo adentro
de mim e sou tantos

que um dia eu faço
a vida viver.


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Pesado demais para a ventania
Antologia poética
Ricardo Aleixo
Ed. Todavia
2018




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Ricardo Aleixo - Belo-horizontino de 1960, Ricardo Aleixo é poeta, artista visual e sonoro, performador, pesquisador das poéticas da voz e do corpo, cantor, compositor, ensaísta e editor. Publicou, entre outros, os livros Pesado demais para a ventania (Todavia, 2018), Antiboi (LIRA/Crisálida, 2017 – finalista do Prêmio Oceanos 2018) e Modelos vivos (Ed. Crisálida, 2010 – finalista dos prêmios Portugal Telecom e Jabuti 2011). Já fez performances na Alemanha, na Argentina, em Portugal, na França, no México, na Espanha, nos EUA e na Suíça. Integra antologias, coletâneas e edições especiais de revistas e jornais dedicados à difusão da poesia brasileira nos EUA, na Argentina, em Portugal, na França, de País de Gales, em Angola e no México. Tem participado de exposições coletivas, como Poiesis < Poema entre pixel e programa > (RJ, 2007), Radiovisual – Em torno de 4’33” (Bienal do Mercosul, Porto Alegre, 2009) e Poética Expositiva (RJ, 2011). É curador do festival ZIP/Zona de Invenção Poesia&. Edita a revista Roda – Arte e Cultura do Atlântico Negro e a Coleção Elixir, de plaquetes tipográficas. Fotografia: Timo Berger
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Adriane Garcia nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais. Em 2006, no curso de pós-graduação em Arte-Educação, na UEMG, interessou-se por estudar sobre a desconstrução do Arraial do Curral del Rei e a construção da primeira cidade planejada da República, com destaque para as questões de esquecimento e memória. Tendo vivido sempre na periferia (norte) da capital mineira, o olhar voltado para as origens e a exclusão social acompanha sua poesia. Publicou os livros Fábulas para adulto perder o sono (vencedor do Prêmio Paraná de Literatura, 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (Ed. Confraria do Vento, 2015), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018.)