por Adriane Garcia__
"HidroaviĆ£o”, este excelente livro de Alberto Bresciani, divide-se em trĆŖs partes: Ćgua, Terra e Ar. Um hidroaviĆ£o, alĆ©m de voar, faz o trabalho de pousar tanto em terra quanto em meio aquĆ”tico. Esses detalhes sĆ£o interessantes quando vamos falar de um livro que efetua metamorfoses.
Em “Incompleto movimento”, o poeta centrou-se mais na subjetivação lĆrica. Em “Sem passagem para Barcelona”, deu destaque a um cenĆ”rio cinza de incomunicabilidade – tema recorrente na poesia de Alberto Bresciani – e em "Fundamentos de ventilação e apneia", expĆ“s o homem como seu próprio predador. Neste “HidroaviĆ£o”, ele nos traz as questƵes do incĆ“modo e do cansaƧo.
Exausto da luta diĆ”ria de subir e descer a montanha, levando novamente a pedra, o poeta possui uma nave (poesia) incomum, com uma espĆ©cie de flutuador no casco. Do alto, a visĆ£o panorĆ¢mica permite que observe e registre os passos daqueles que o cercam – ou melhor – que partilham da mesma maldição: existir. Na Ć”gua, pode ouvir o silĆŖncio dos peixes, estar nos lugares perdidos onde foge das multidƵes e das autorizaƧƵes de voo.
Na terra, transmutado anfĆbio (a aterrissagem Ć© sempre mais difĆcil), cumpre a sua sina com outros sete bilhƵes de prisioneiros, onde vive a desilusĆ£o dos dias, as perdas evitĆ”veis e as inevitĆ”veis, enquanto sonha com o cĆ©u: um lugar em que, fatalmente descobre, hĆ” anjos invisĆveis que prometem e nĆ£o cumprem. O cĆ©u permite apenas cartografar.
Dito assim, parece que a poesia de Alberto Bresciani serĆ” de tal peso, que nĆ£o hĆ” maneira de seu hidroaviĆ£o decolar. Ledo engano. Sua poesia Ć© plena de beleza e profundidade, sensibilidade e exatidĆ£o. Ć na carpintaria perfeita do poema que ele cria a sua aerodinĆ¢mica. O anfĆbio de Alberto Bresciani faz exatamente o que ele quer e leva o leitor na sua viagem, que se torna, por identificação, a viagem do leitor; afinal, Alberto Bresciani fala de temas universais e de angĆŗstias a todos comuns.
Ler “HidroaviĆ£o” Ć© tomar contato com uma poesia nada conformada:
“Fujo dele algumas vezes,
como agora,
aqui no telhado,
atirando pedras
para cima.”
O poeta desenvolve um eu-lĆrico cuja consistĆŖncia Ć© a de um personagem muito bem caracterizado. Ć possĆvel reconhecĆŖ-lo do inĆcio ao fim do livro. Um personagem que pede socorro contra a apatia e os nĆŗmeros de identidade nos quais nos tornamos, em um mundo que muda apenas superficialmente. Um personagem que precisa da fantasia – transformar folhas em peixes – para dissimular desejos, jĆ” que nĆ£o serĆ£o realizados. HĆ” mesmo uma sensação de que Ć© impossĆvel estar em paz, quando tudo o que se quer Ć© muito simples.
“HidroaviĆ£o” Ć© um livro cuja leitura se assemelha Ć leitura de uma narrativa longa. Nele, um poema reforƧa o outro. Do mundo interior, subjetivo, o menino que ainda nĆ£o encontrou sua segunda asa e por isso o voo ainda Ć© uma impossibilidade, chega Ć guerra maior, que se mistura Ć guerra privada, das perdas pessoais. A solidĆ£o Ć© irremediĆ”vel, ainda que haja o encontro:
“ A sua mĆ£o
sobre a pele
nĆ£o evita as cicatrizes”
HĆ” uma dureza inequĆvoca e momentos em que o lirismo alcanƧa um ponto alto, como no poema “Caligrafia”. Mais adiante, quando o personagem se transmuta em Franz, o leitor encara a pureza, a ingenuidade de alguĆ©m que nĆ£o cabe no mundo. Ćs vezes, como no poema “Melhor”, acontece de haver o novo, uma redenção, mas isso só ocorre após a destruição, como se dela nĆ£o fosse possĆvel escapar.
Pousado na terra, o poeta nĆ£o escapa do seu tempo e das injustiƧas sociais. Neste “HidroaviĆ£o”, Alberto Bresciani traz um olhar para os despossuĆdos, os refugiados, os famintos, as crianƧas abandonadas, armadas, mortas; as guerras, os tsunamis, os terremotos, as deflagraƧƵes suicidas.
“O paĆs em que vivem
estÔ encharcado de certa radiação
que compromete seus nomes,
sua compreensĆ£o”
O piloto deste HidroaviĆ£o nĆ£o encontra seu lugar: na terra, a salvação poderia vir das Ć”guas; nas Ć”guas, Ć© preciso salvar-se de um afogamento. No ar, hĆ” um tempo limitado para a duração dos combustĆveis. O sonho de Ćcaro persiste, porque nĆ£o se realiza: enquanto plaina sobre a cidade, o piloto pode concluir que viver Ć© um exercĆcio de heroĆsmo silencioso e feito de repetiƧƵes. A poesia buscarĆ” os lugares onde hĆ” luz, pois Ć© dela o contraste: o breu. Alberto Bresciani sabe e voa para testar limites. Da experiĆŖncia, traz aquelas constataƧƵes que só quem chegou perto, a ponto de se queimar, nos conta:
“Contra o sol,
nĆ£o hĆ” luz”.
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Hidroavião
Alberto Bresciani
Poesia
Ed. PatuĆ”
2020
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Este texto foi escrito como prefÔcio de Hidroavião
* Você também pode ler esse texto aqui: Os livros que eu li
Alberto Bresciani nasceu no Rio de Janeiro. Vive em BrasĆlia. Ć autor de Incompleto movimento (JosĆ© Olympio Editora, 2011), Sem passagem para Barcelona (JosĆ© Olympio Editora, 2015, finalista do prĆŖmio APCA de Literatura - Poesia de 2015), Fundamentos de ventilação e apneia (Editora PatuĆ”, 2019) e HidroaviĆ£o (Editora PatuĆ”, 2020). Integra, entre outras, as antologias Outras ruminaƧƵes (Dobra editorial, 2014), HiperconexƵes (Editora PatuĆ”, 2014), PĆ”ssaro liberto (Scortecci Editora, 2015), Pessoa – LittĆ©rature brĆ©silienne contemporaine (Revista Pessoa, Ć©dition spĆ©ciale – Salon du Livre de Paris, 2015) e Escriptonita (Editora PatuĆ”, 2016). Tem poemas publicados em portais, blogs e sĆtios da internet e em revistas e jornais impressos.
Adriane Garcia nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais. Em 2006, no curso de pós-graduação em Arte-Educação, na UEMG, interessou-se por estudar sobre a desconstrução do Arraial do Curral del Rei e a construção da primeira cidade planejada da RepĆŗblica, com destaque para as questƵes de esquecimento e memória. Tendo vivido sempre na periferia (norte) da capital mineira, o olhar voltado para as origens e a exclusĆ£o social acompanha sua poesia. Publicou os livros FĆ”bulas para adulto perder o sono (vencedor do PrĆŖmio ParanĆ” de Literatura, 2013, ed. Biblioteca do ParanĆ”), O nome do mundo (ed. ArmazĆ©m da Cultura, 2014), Só, com peixes (Ed. Confraria do Vento, 2015), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018) e Arraial do Curral del Rei: a Desmemória dos Bois, coleção “BH: A Cidade de Cada Um” (2019).