Luteria, rabecas e reciclagem

por Jorge Ventura__


Introdução

       Airon Galindo, de Caruaru-PE, é protético. Também é construtor de rabecas.

      A destreza no trato dos materiais na sua atividade profissional como protético – exercida há vários anos – certamente influencia seu trato das madeiras quando da construção de rabecas.

      Galindo, dado o contexto cultural e musical de Caruaru, cedo se interessou por música. Disto resultou, por curiosidade, o desejo de aprender a tocar um instrumento: apaixonou-se por um violino de um seu conhecido. Experimentou-o sem saber tocá-lo. Daí, foi um “salto” para o interesse pela rabeca.

     Em sua cidade natal, Galindo teve dificuldades de encontrar rabecas. Decidiu construir uma. Tendo visto um programa na TV sobre a construção deste instrumento, desenhou um modelo, a partir de sua própria intuição, em termos de medidas, pelo método de tentativa e erro. Seu primeiro instrumento foi feito com madeiras de um velho e imprestável guarda-roupas. Esta primeira rabeca não produziu som, mas a característica de aproveitamento de materiais recicláveis tem acompanhado a trajetória de Airon na construção deste instrumento tão icônico da nossa cultura popular.

      Galindo tem uma preocupação clara: produzir instrumentos baratos e acessíveis aos que se interessam pela rabeca. Assim sendo, tem realizado um interessante trabalho de aproveitamento de madeiras descartadas que tornam seus instrumentos relativamente baratos se comparados aos de outros luthiers.


Materiais Recicláveis

     Como bem se sabe, muitos eletrodomésticos são transportados das fábricas para os pontos de venda embalados em caixas de madeiras. A madeira usada nestas caixas é de uma espécie de pinho. Quando esses produtos são desembalados, toda essa madeira tem o lixo como destino.

      Porém, boa parte desse material descartado encontra outro destino: a fabricação de rabecas, pois é aí que Airon Galindo recolhe a matéria-prima para a construção de seus instrumentos.

   Há várias espécies de pinho. Os mais nobres – abeto, por exemplo – são utilizados na construção de instrumentos de alta performance: violões de concerto, violas, violinos, cellos e até mesmo rabecas de luthiers famosos.

   No entanto, na produção popular, como a de Galindo, utiliza-se o pinho mais simples e comum, o mais barato, que pode ser adquirido, sem tratamento, em qualquer madeireira. A diferença deste construtor com relação a outros é que ele não compra as madeiras que utiliza, mas as recolhe do descarte.

    Na construção de rabecas, utilizam-se diferentes madeiras para as suas diferentes partes: pinho para o tampo e fundo, praíba para o braço, jenipapo para as cravelhas etc. Galindo, por sua vez, utiliza “o que achar no lixo”, conforme declarou em entrevista.

  Além do uso de madeiras descartadas, este luthier também utiliza material reciclável para outras partes da rabeca a exemplo do aço galvanizado para a feitura do estandarte ou lacraia, conforme figura 1, abaixo. Antes, ele já havia utilizado casca de coco endurecida, que também encontrava em descartes. Porém terminou optando pelo uso do de metal pelo “som sujo”, segundo ele, que tal material permite.

    Esta é a primeira vez em que testemunhei um estandarte feito de metal, pois o padrão absoluto é o uso de jenipapo, como no caso do luthier Zé de Nininha, de Ferreiros-PE, tratado em artigo anterior.




O uso de madeiras recicláveis implica em certos problemas particulares no processo de construção das rabecas de Galindo, pois, ao contrário de madeiras adquiridas de madeireiras, o pinho simples das caixas de transportes de fogões, de máquinas de lavar etc já foi tratado anteriormente. São camadas sobrepostas umas às outras com cola industrial. Isto limita ações como a de escavar a madeira com alguma ferramenta para se chegar à espessura ideal. Neste caso, Galindo tem de descolar as camadas com uso de água quente para chegar ao tamanho desejado.

Os diferentes cortes também implicam em uma grande variedade no formato e tamanho de suas rabecas. E aqui deve-se dizer, diferentemente do violão e do violino, há muito padronizados, a rabeca é ainda um instrumento com grande variedade no seu processo produtivo e em termos de medidas. E mesmo considerando este aspecto, pode-se dizer que, dentro da produção de Galindo, a variedade é grande, pois depende dos materiais recolhidos.

Um exemplo disto é o braço do instrumento, normalmente construído de praíba. As duas figuras abaixo, 2 e 3, ilustram isto claramente. Pode-se ver as diferentes medidas e curvaturas de duas diferentes rabecas por ele construídas.




Todos estes elementos implicam em uma continua busca por soluções para os problemas decorrentes de materiais não padronizados. De fato, ao optar, tendo em vista o barateamento ao máximo de suas rabecas, pela utilização de madeiras e outros materiais descartados, Airon utiliza o que acha no lixo. Neste sentido, ele se expõe às contingências da vida. O que, obviamente, tem um rebatimento no seu fazer e também na variedade de sua produção. Daí é que podemos encontrar rabecas de sua lavra em variados tamanhos e formatos.

Um último ponto a ser observado é que as madeiras – e demais materiais, como o metal – afetam a sonoridade do instrumento. Neste caso, embora defina o som de suas rabecas como sendo um “som sujo”, como já referido, é possível também afirmar que as rabecas de Airon sofrem o impacto da variedade de materiais nas suas sonoridades.


Jorge Ventura de Morais é professor do Programa de Pós-Graduação em Música da UFPE. Suas pesquisas, com financiamento do CNPq, focam nos conhecimentos práticos e tácitos dos construtores de instrumentos musicais (luthiers) quando da confecção artesanal desses objetos em contraposição à fabricação industrial e em massa.