por Luiz Henrique Gurgel |
A história é pessoal e faz pensar se hoje ainda se chora quando morre um. Lembra o velho samba de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito: “em Mangueira/ quando morre/ um poeta/ todos choram/ fico tranquilo em Mangueira porque/ sei que alguém há de chorar quando eu morrer”. Pense na morte de Maiakóvski, na comoção nacional que provocou na Rússia, 150 mil pessoas no velório. Agora pense na morte de Orides Fontela.
Não atrai mais multidões, mas ainda agita a alma de gente desacostumada desses nossos tempos. Como a história que ouvi de um sujeito franzino e solitário, 60 anos pra mais, professor aposentado. Fez um relato comedido sobre o que lhe aconteceu há exatos 38 anos, quando soube da morte de um poeta brasileiro que ocorreu na noite de 17 de agosto de 1987. Comoveu muita gente país afora, mas seu velório não arrastou multidão. Era mineiro, conhecido por sua discrição e recato.
O então rapaz, leitor e cultor desse poeta, só soube do acontecido na manhã fria do dia seguinte, quando às 7h30 desembarcava do metrô e seguia para a faculdade. Na estação de destino, sempre lotada, andando no passo da marcha dos outros pinguins, avistou perto dele, a dois ou três corpos colados de distância, alguém que trazia um jornal junto ao peito, aberto o suficiente para ver a manchete seca e dramática: “Drummond está morto!”.
Veio vontade repentina de chorar, sofria por poetas mortos, ainda mais aquele, seu poeta de cabeceira, íntimo. Empurrado pela massa, arrepiado e de pescoço torto mirando o jornal alheio, segurou o choro, mas sem conseguir evitar o marejar dos olhos. Perdeu o sujeito do jornal na multidão compactada da escada rolante, saiu da estação sem destino. À aula é que não ia mais.
O poeta mineiro marcava a vida dele desde a infância, quando a casa de um tio em Itabira passou a ser, duas vezes ao ano, o principal destino de férias de sua família. Garoto, sem saber bem que poeta era aquele, pressentia sua sombra pairar sobre a cidade mineira, citado em conversas, presente em placas, bustos. Entendeu melhor anos depois. Era mais que simples orgulho pelo filho ilustre. A residência do tio, ainda por cima, dava para os fundos da casa que fora da família do poeta, onde ele havia crescido.
De tanto ouvir os famosos versos de Confidência do itabirano, certo dia caminhando com o pai por aquela cidade, perguntou se as calçadas tinham mesmo 90% de ferro. Nas almas, desconfiava, a quantidade do mineral devia estar certa. Entre a adolescência e a juventude, a alma dele também começou a pesar. Rapazola, numa das últimas estadas em Itabira, juntou uns caraminguás e comprou a Poesia Completa de Carlos Drummond de Andrade achada num sebo.
Aqueles versos não saíram mais dele. Copiados à mão, recortados e ainda colados nas paredes do quartinho em que mora. Também os encontra avulsos no meio de livros, em velhos cadernos, em pastas de documentos ou álbum de fotografia. Apesar de ter todos os livros do poeta, nem pensa em jogar fora os papeizinhos que acha perdidos entre suas coisas.
Até hoje, comovido feito o Diabo, esse homem toma conhaque, anualmente, com ou sem lua cheia, nas noites de 17 de agosto.
Luiz Henrique Gurgel é jornalista, professor e pesquisador. Mestre em Literatura Brasileira pela USP, é autor do livro de contos “amores malfadados” (Ed. Primata, 2020) e “Porque era ele, porque era eu e outras quase histórias” (Caravana Editorial, 2023).
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