É fogo | Adriano B. Espíndola Santos

  por Adriano B. Espíndola Santos__



     

Mesmo com esforço descomunal, patinando em parâmetros de outras vidas, Madalena não conseguia intuir o ponto em que se perdera. Muitas vozes decretavam ser dívidas passadas; carma, crenças irresolutas ou arraigadas em raízes celulares. Era tudo uma salada, misturada e complexa, da qual não se vislumbrava sequer o fio da meada.


Apesar de morar tranquilamente com a mãe, a melindrosa senhora Elza, ter uma profissão digna, por meio da qual podia se considerar independente – e, inclusive, de certo ponto, feliz –, faltava-lhe o grande e decisivo amor. Declarava, aos quatro cantos, repetindo os dizeres da mãe e da avó, que “tinha o dedo podre para homem; que tudo era igual; que antes só que mal acompanhada”; e outras coisinhas mais. Contudo, no fundo, vivia à espreita de uma bênção, de um anjo que caísse do céu.


E, de tanto amor guardado, pegava um bocado bom de cada ex-namorado – dois –, projetando a imagem do cidadão ideal, de bem, homem de princípios; seguindo, por último, depois de minuciosa anamnese, “os prognósticos infalíveis” do pastor do amor.


Sonhava noites e noites, a ponto de não querer acordar. Já distinguiria, nitidamente, talvez no meio de uma multidão, o rosto do homem certo, que completaria a sua vida. E, por insistência da amiga Jéssica – também dedicada ao crucial assunto –, entrou para o grupo da igreja, “felizes para a eternidade”.


Nisso estavam incluídas jornadas seguidas de retiros campais, longe da cidade. A mãe notara e sentia a sua ausência; mas, pensava, “fazer o quê, se a menina está no caminho certo. Não posso desviá-la dos poderes de Deus”.


Existiam possíveis e almejados distintos rapazes na igreja do fogo pentecostal. Pelo nome da instituição, pode-se perceber a entrega, a vontade ardente de provocar severas mudanças. Estimulada pelos novos ares, Madalena passou a usar roupas fechadas, que lhe cobriam até os pés – nem mesmo os braços estavam salvos do bloqueio solar.


Na vida secular, como chamava, começou a ter atritos com o chefe, homem de poucos amigos; direto e, por vezes, agressivo. Ajuizava que ganharia a batalha terrena, com disposição a encarar os ataques, que, confirmado pelo pastor, dali em diante seriam naturais, “porque as pessoas não aceitam a felicidade alheia; que se abstivesse dos atritos; e que, em último caso, orasse, em voz alta, para dispersar os demônios”. Assim o fez, logo no primeiro mês de conversão; pelo que, em seguida, para evitar os murmúrios e os tumultos, foi posta para fora, porque “aqui não é palco para showzinho; para contaminar os clientes com desordens”.


Então, saiu o decreto: demitida por justa causa. Madalena anuiu dócil, acatando os desígnios celestiais. Devia se despregar, aos poucos, das pessoas e das coisas que lhe tragassem para o mal.


Levemente aflita com os dias vindouros, com as contas que logo bateriam à porta, se apegou às palavras da amiga Jéssica: “Amiga, fica tranquila e confia. Mais vale ter paz no coração e um grande amor. Você vai conseguir. Se precisar de uma graninha, eu te empresto”. Assim sendo, refletia que, com o apoio da mãe, da avó e da amiga, teria condições de se manter, até alcançar um emprego abençoado; e, para isso, contariam, principalmente, com a mirrada aposentadoria da avó. A mãe, boleira de profissão, às vezes superava as expectativas, e dobrava a renda; mas só às vezes, por conta das complicações da síndrome do túnel do carpo.


Até que, num belo dia, se fez luz. Certa feita, apareceu, na porta da casa de Madalena, um rapaz bem-apessoado, declarando à senhora Elza que queria, “por gentileza”, dizer umas palavras à irmã Madalena. Só por isso, Elza desfranziu o cenho e arregalou os olhos: “pronto, o bom partido para minha filhinha”. E correu para dentro de casa, na ponta dos pés, para não chamar atenção; e comunicou a filha, que, atordoada, preparou um coque no cabelo, ainda curto, para dar a impressão de ser longo e de que estava há muito tempo na graça; despejou em si um vestidão da mãe e saiu. Era, como supunha nos sonhos, o irmão Aldair, um rapaz calado, circunspecto; gentil e de sólida formação religiosa.


A prosa, nesse dia, se estendeu por duas horas. Ele alegava estar cansado, vindo direto do trabalho para vê-la; e que, de uma próxima, conversariam sobre muitos assuntos, “para estreitar os laços”.


Sendo ordenado pelo pastor do amor, que certificava ter encontrado a sua alma gêmea, Aldair não estava tão convicto assim – além de não ser atraído pela beleza exótica de Madalena, esguia demais e pequena. Na verdade, olhava mais – e travava sérios conflitos de consciência, com outras intenções – para o corpo enxuto de Jéssica, a quem admirava há tempos, mas que, para não atrair indisposições com o seu guia, pois que a moça estava “prometida”, resolveu recalcular a rota e seguir; continuaria a incansável busca; ao menos, se dispôs a abrir o coração, como o pastor insistia.


Madalena passara longos dias em êxtase, esperando a nova oportunidade de o encontrar; essa era a meta, e desafazer os malfeitos do último encontro; porque estava despreparada, desarrumada e ansiosa demais, engolindo as palavras. Preocupava-se de ter assustado o rapaz; entretanto, Aldair acatou um novo encontro, combinando hora e lugar, no fim do culto de domingo, na pracinha em frente à igreja, para não ficarem longe das vistas dos bons alcoviteiros.


O encontro gerou um burburinho. Muitos estavam felizes com o feito – ainda que não concretizado o namoro, porque Aldair tinha a fama de ser demorado e indeciso. Madalena estava disposta a fortalecer o prognóstico; a ser a mulher que Aldair sonhou ter, quieta, obediente, pronta para servir; que ele, de pronto, notaria a distinta mulher completa para ser a mãe de seus filhos.


Voltando para casa, sem se ater ao olhar curioso de Aldair, e sem questionar a sua repentina saída, à francesa, para cuidar da mãe, resolveu montar, em sua mente, os melhores pensamentos; que teria mesmo de ser devagar; que avançar causaria o término precipitado; e que, assim, teria tempo para orar e se dedicar ao seu objetivo.


Logo depois, com certa angústia, mas sem levantar especulações, pois que não era mais disso, cismou somente com a falta de contato do moço. Há três dias não ligava ou mandava mensagem – exceção feita para dizer que estava muito cansado e ocupado com o trabalho. De fato, dedicava-se à tarefa de empreendedor, tendo montado o próprio comércio, de venda de produtos para celulares; após a retomada dos negócios no período pós-pandemia, como avaliava, isso o teria consumido ao extremo.


Dias e noites passaram, e Madalena perdera o contato com a amiga mais próxima, que declarava, seca, estar exausta, com o retorno ao trabalho frenético no centro da cidade, numa loja de variedades. Sentiu-se preterida e abandonada e, concomitantemente, ajuizava ser uma peça do tinhoso; não deveria esmorecer. Dona Elza ocupava-se em fazer os quereres da mãe, bastante idosa, e da filha, amofinada. Preparava comidas fortes, para “despertar o corpo e não ser avariada pelo maldito vírus; com os poderes de Deus!”.


Um dia foi agravada por um arrebatamento violento, que atarantava o seu juízo, e resolveu, de fininho, ir à loja do pretenso futuro marido – tinha-o como tal. Não consultou ninguém, nem mesmo o pastor, que, certamente, botaria panos quentes em sua vontade visceral; esta, de roer os ossos.


Depois de atravessar a cidade, teve o pressentimento de não ir direto à loja, mas tomar um suco de maracujá com uma coxinha, no horário de almoço, numa rua à frente. Viu o futuro marido passar apressado, desconfiado, por entre as barracas. Largou os restos da comida, deixou o dinheiro no balcão, e seguiu-o. Com a marcha intrépida e alvoroçada, conseguiu arrancar todos os fôlegos de Madalena, que, ainda assim, não desistiria da perseguição. Calhou de ver o que não queria. Acomodaram-se e almoçavam, juntinhos, Aldair e Jéssica, numa dessas conhecidas marcas de fast food.


Não se conteve quando Aldair pegou as mãos de Jéssica, beijou-as e, em seguida, deu um longo mergulho em sua boca, com a língua e as seivas todas, o que não era permitido pelas ordens da igreja.


Antes de partir para o ataque, com o celular na mão, gravou tudo, para não ser desmentida pelo descaramento humano; e enviou o vídeo para o próprio e-mail, para não correr o risco de apagarem. Afogueada pela cólera, como nunca estivera, seguiu trôpega, atravessou a rua e irrompeu o estabelecimento, atacando primeiro os cabelos da fingida; lascou as pontas das unhas no pescoço e no rosto da nova inimiga; enfiou um tapa graúdo na cara do ex-futuro marido; e, antes de se debandar, revolveu a mesa e as cadeiras, em solavancos, jogando o que via pela frente para o alto.


Por quatro horas perambulou pela cidade, arrasada; sem dar conta das inúmeras ligações desesperadas que faziam o celular vibrar ininterruptamente, decidiu regressar ao seu lar. Dona Elza já havia ligado até para o IML, atrás da filha, estando ela mesma prestes a ir para lá, atacada de pressão alta e do coração.


Madalena entrou, fez um carinho na mãe e se dirigiu direto ao quintal com uma pilha de cadernos e adereços, com os projetos de casamento. Nesse lugar, obstinada, tacou fogo em tudo, e se alegrava, enchia o coração de um prazer encarniçado, com a proporção que tomava o fogo, em tempo de comprometer a casa.


Ali, deitou-se no chão e esperou, também, ser consumida, porque, convicta, sabia que o fogo limparia sua existência ludibriada pelo último macho escroto com que topara em sua vida.


Não esquecia a voz do pastor do amor: “É fogo! É fogo, para arder, para limpar… É fogo!”.



Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance Flor no caos, pela Desconcertos Editora; e em 2020 o livro de contos, Contículos de dores refratárias, pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em diversas revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir - sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.