Aos olhos do Mundo | Adriano B. Espíndola Santos

 

por Adriano B. Espíndola Santos__


JR Korpa

Com o passar dos anos fui me tornando um ser, diria, impregnado e paralisado pelos acontecimentos confusos da vida familiar. Lidiana me cobrava energia, “proatividade”, como se estivesse chefiando sua empresa. Ela tem esse ímpeto por mandar, não por liderar, com a rédea curta para os subordinados. Falo em rédea curta porque, isso eu sinto, os e as coitadas de seus funcionários não podem olhar além do limite da rígida mentalidade da mandante; são como animais ou peças de uma engrenagem do mundo moderno, como Chaplin representou num filme ultrapassado. Bem, melhor não continuar nessa linha de pensamento, pois isso me constrange, me liquida como ser humano. Já tratei sobre esse assunto com Lidiana, que deveria estar aberta às novas tendências, possibilidades; que teria de acreditar nas pessoas, tratá-las como tal; e ela me cortou como se extirpasse uma ferida, como se eu fosse a chaga de sua suma existência. Noto até um certo prazer mórbido em me largar de banda, como se aplicasse um castigo para eu aprender (aprender o quê?); me tomar como um lunático ou mesmo demente, abilolado. Lógico, sendo minha única irmã, amargo o peso do abandono. Nonato e Anísio me chamam de besta, fresco, e o escambau. Mas eles não nasceram colados à menininha mais linda, a caçulinha, que sempre foi o sol do meu viver. Quando mãe deu à luz a Lidiana, na qualidade de irmão imediato, com a diferença mínima de dois anos, era, para mim, um bibelô, um mimo, um amor sem fim. Nonato e Anísio são bem mais velhos que nós – respectivamente, dez e oito anos à frente. Ademais, somos filhos do segundo casamento da mulher que desbravou o tempo; que deu o start do divórcio no Brasil, sem medo, enfrentando o preconceito – talvez tenha sido uma das primeiras, presumo, em 1979. Pelo que sei, o pai de meus irmãos era um cabra ruim, batia e jogava minha mãe na sarjeta, literalmente; não só ela, mas os filhos também. Minha mãe, até o fim dos seus dias, não tocava no assunto do ex. Ou seja, tudo que lhe contrariava ou lhe causava dor era sumariamente deletado – pena não ter herdado esse dom. Descobrimos esses graves dilemas pela boca de minha tia Lindalva, que não tem freio na língua; não guarda um segredo, “para não morrer seca, carcomida pelas coisas ruins”, como ela mesma diz. Pôr tudo para fora, esse era o seu lema. Mãe, minha divina mãe, falava que seu grande amor foi o meu pai, Aloísio, o maturo e correto Nizo – e não me pergunte o significado da alcunha; pelo que consta, das pesquisas que fiz, por pura curiosidade, teria relação com a má pronúncia de seu irmão mais novo; talvez por isso o nome do filho Anísio. Estendi-me muito e me distanciei do essencial: Lidiana. Mãe disse que filho tinha de ser mimado mesmo; que amor nunca é demais. Mas acho que com Lidiana mãe perdeu a mão. Claro, a única menininha, a princesinha; a única neta; a única sobrinha, e por aí vai. Lidiana cresceu com um senso de poder sem igual. Nunca houve empecilho para coisa alguma. O mal, aí é uma constatação minha, é que, nesse processo, descurou da humanidade… Para os negócios, como diz Anísio, “é o cão”. Não à toa conseguiu montar uma senhora empresa de contabilidade, que presta serviços para os setores privado e público. Tem os seus méritos, não posso negar; é estudiosa e trabalhadora. É reconhecida e recebe todos os prêmios de líder do ano, do século etc. e tal, e isso lhe confere ainda mais força. Portanto, cara leitora, minha irmã se tornou uma esfinge, algo intocável, irreprochável aos olhos do mundo. Da porta para dentro, não se sabe uma nesga de sentimento: é uma parede bruta, concretada, e só. Numa tentativa de me reconciliar, para lhe estender o meu peito consolador, Lidiana veio com essa: “Olha, Cláudio, se o seu mal é trabalho, vá tirando o cavalinho da chuva; minha empresa já está entupida de gente, e, inclusive, farei uma repaginada e mandarei para as cucuias uma dúzia de ineptos”. O horror: ela cogitou que estava mendigando emprego, quando já tenho minha ocupação, e nunca precisei, graças a Deus, lhe pedir nada. Lidiana, me olhando de cima de um pedestal que construíra, não me deixou molhar o bico, para dizer que estaria disposto a lhe ajudar no que precisasse, e isso não tinha a ver com trabalho, absolutamente; tinha a ver com amor, irmandade. Fiquei “p” da vida e saí do restaurante cinco estrelas que ela havia fechado para nós dois. Permiti que ela encorpasse e se lambuzasse na soberba, e, depois de tantas tentativas, larguei de mão. Lidiana deve estar lá, muito ocupada e segura de si. Eu estou aqui, trabalhando com as “miudezas” que me dão prazer, com a delicadeza de ser professor e de cuidar de crianças carentes. Tia Lindalva me ligou, outro dia, para declarar que a sobrinha é um passado do qual ela não quer se lembrar. Amargurada, igualmente, pelas patadas desferidas, descomunais. Meus irmãos declaram, em uníssono, que têm muito com o que se ocupar; que ela é “carta fora do baralho”. Deram-me o conselho para esquecê-la, mas eu não sou capaz. Se a bendita me procurar, que cara teria de simplesmente despachá-la, mandar para as cucuias, como faz com os seus empregados? Não sou assim; não serei assim para descontar a raiva; o mal não se paga com o mal. Enfim, essas palavras são, na verdade, meios para dispersar a dor do coração, por ter uma família esfacelada; por vislumbrar que não há mais volta, já que mãezinha se foi, a alma singular apropriada para reconectar os trilhos e abominar, como tinha de ser, as flagrantes desordens impingidas por minha irmã. Sou eu o derradeiro e, quem sabe, o bobo a apaziguar os ânimos e a acreditar no milagre da comunhão.




Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance Flor no caos, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, Contículos de dores refratárias e O ano em que tudo começou, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em diversas revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir - sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.