Confissões de uma sobrevivente | Rosa Morena

 

por Rosa Morena__


JR. Korpa


Trouxeram-me um chá e, com os nervos aflorados, quase queimei a língua no primeiro gole.

Tinha um olhar manso, eu estava sentada à sua frente, trêmula, quase sem voz. Olhava-o atentamente, mas não o alcancei em seus propósitos. Deixei o chá de lado. Parei para ouvi-lo. Falava devagar, tentando disfarçar a gravidade da situação: "Já li todos os seus exames!" Resolvi tomar outro gole. Ele parou a conversa. Aguardou. Mais um gole. Dessa vez não esperou: "Seus pulmões foram atingidos." Hiato. "Menos de 25%.”
O chá queimava menos. Tudo mudou depois disso.
Passei a existir de porta fechada. Um medo, feito pio de coruja, sobrevoava. A TV sempre ligada, as luzes do banheiro em trabalho de 24 horas, o medo do escuro, a mesa coberta de antibióticos e vitaminas, as vozes do outro lado da porta com sinalizações e modos de agir.
No quarto ao lado, a batida do martelo, para impedir a ventilação. Contatos interrompidos. Estava infectada, era o próprio vírus em forma de corpo. Na minha identidade o carimbo COVID-19. Comecei a fazer parte da estatística e do “mantenha distância”.

Mergulhei no isolamento, não sem dor, tive um tempo de inverno e frio. Depois do pavor inicial, os medicamentos invadiram o organismo e o aerossol me salvava do cansaço. Entre uma falta de ar e outra, a comida que recebia na porta do quarto me salvava, viva prova de afeto. Noites em sobressaltos, oxímetro oscilante, fraqueza, pesadelos e o medo de morrer. Barco à deriva.

Pouco a pouco os amigos bateram em minha porta. Vieram com áudios, vídeos e ligações. Podia abrir sem infectá-los. O isolamento começou a perder a força, as dores também.

Passados 21 dias a permissão para abrir a porta. Retina encontrando outras retinas, Sorrisos alargados. O movimento da casa, os pulmões se expandindo, o meu cão se aproximando devagar.

Sim, Manuel Bandeira, não precisei de pneumotórax e nem de um tango argentino. Sobrevivi!





Rosa Morena nasceu em Itapipoca (CE). Cursou Pedagogia. Em 2014, foi premiada com o livro Jaci, a filha da Lua no Edital Paic, Prosa e Poesia. Em 2015, lançou Movimentos Intransitivo. Recebeu Menção Honrosa em dois certames: no XVIII Prêmio Estadual Ideal Clube (2015) e no Prêmio Carlos Drummond de Andrade, Brasília(2017). Em 2018, lançou o livro Micropoemas e teve o livro Pedro, o menino do mar, selecionado no Edital Mais Paic. Em 2019 recebeu o 1º lugar no XXI Prêmio Ideal Clube de Literatura - Prêmio José Telles e lançou o livro infantil A menina e a garça.