Toda a razão | Adriano B. Espíndola Santos

 

por Adriano B. Espíndola Santos __





 

Elisa, por mais que disfarçasse, tinha um quê de moça arredia e atrevida. Esta era a questão. Ela deixava entranhar em mim o mistério; o grande mistério a ser desvendado; uma sensação que sufocava as minhas veias. Não faz muito tempo que a encontrei de novo, no lugar de sempre, na nossa querida Mauriti, no interior do Ceará. Fato é que, para mim, não havia mais resquícios de memórias de minha infância. Falo de ter esquecido boa parte das minhas intrínsecas paixões. A luta diária, o apartamento forçado, não me permitiam sonhar com melhores dias. O que via, na cidade, não ultrapassava o concreto. Voltei à minha gente por uma razão especial: tinha de me despedir de tia Maninha, a grande estrela da minha existência. Oito meses acamada, já rareando a consciência, fizeram com que João Carlos, o meu primo mais velho, me ligasse numa tarde quente de sábado, no mês de janeiro. Eu me aperreei com a demanda urgente; pedido de tia Maninha. Ela confidenciou ao filho que precisava me ver para descansar em paz. E eu tive de me rebolar para comprar a passagem; para me aventurar, depois de seis anos, à minha terra natal. Lembro-me que, ainda menino, com o pensamento pelas nuvens, tia Maninha me aterrissava, acariciando minhas mãos, para me dizer que “esse negócio de ir ao Rio, meu filho, pode não ser boa coisa. Aqui você tem fartura, tem amor. Estude, pelo menos, para garantir a sabedoria; isso ninguém lhe toma!” Parecia uma reza dobrada, e eu me chateava, achando que ela não podia se meter no meu destino. E, para me açular os nervos, Mãe ansiava mesmo que eu me mandasse, para aliviar as suas obrigações. Já haviam ido três dos seis, eu seria o quarto. Cumpri a jura de mudar de vida, mas a vida não foi tão generosa comigo. No fim, percebi que tia Maninha, a que me amava como filho, tinha toda a razão. No entanto, com doze anos afastado, pensei que não teria meios de me adaptar à antiga morada. Não travaria mais uma luta em vão. A verdade é que voltava, sempre, por necessidade ou por disposição das circunstâncias. Esta que ora relato, a maior de todas. Desembarquei em Fortaleza e, no mesmo instante, peguei o expresso, com o coração na boca – à flor da emoção. Lá, fui direto à igrejinha e quedei rezando por uma hora. O padre Salustiano, um homem bom, me reconheceu e benzeu o meu corpo. Disse que Maninha carecia muito de mim; que confiava à Maria Santíssima a sua recuperação. Segui um pouco mais animado. Mas, quando a vi, magra dos ossos se confundirem com as carnes, logo comecei a chorar, sendo acalentado pelas mãos franzinas, miúdas, que tantas vezes me serenaram. Tia Maninha arrebentou, com o último fôlego, um potente: “Graças a Deus, o meu menino regressou!”. Emendou no que seriam abraços, com o corpo mole, caindo por cima de mim. Eu a beijei quinhentas vezes, enquanto nos banhávamos de água e sal. Ela falava o principal, para me declarar o seu amor; que sonhava em me ver feliz e, definitivamente, na terrinha. Eu lhe prometi que faria o possível – com a cabeça atolada nos problemas da firma, que liquidavam as minhas vontades. Ela, antes de dormir, me falou que teria uma casinha para eu ficar, a duas quadras da sua. Não intuí que tia Maninha teria posses. João Carlos informou-me das economias de tia Maninha; que, depois da morte do pai, tio Capistrano, com a pensão de militar reformado, contando as gratificações, e com a vida simplória que levavam, arranjaram de comprar um sítio e duas casas; que o sítio rendia um bom dinheiro, com o leite de cabra, queijos e doces produzidos ali. João Carlos cuidava de tudo e, por isso, sobrava pouco tempo para estar ao lado da mãe. Pediu também que eu ficasse, pelo menos, alguns meses. Eu me penitenciei, com a demanda imperiosa. Liguei para o meu patrão, após dois dias instalado na bonita casa, e relatei a gravidade dos fatos; ele fez que entendeu e proferiu que necessitava de mim, no máximo, em dois meses; que, do contrário, poderia me considerar demitido. Foi o choque, porque o doutor Fernando Brandão era um sujeito calmo, compreensivo; não sabia que me castigaria assim. Quis não pensar em nada. Rondei pela cidade, pacata; pacato. Logo a bruma de Elisa pairou sobre mim. Linda, da cabeça aos pés, do mesmo modelo que a vi da última vez. Tão pudica, que não revelava sequer o olhar. Deu-me um sorriso rasteiro, escondido, alegre na feição. Aproximei-me para saber como estava. Ela respondeu que muito bem, especialmente por me ver. Passamos horas conversando na pracinha, embaixo de uma mangueira; aquela em que subíamos para colher os frutos, para brincar e para nos beijarmos, ocultos. E, de uma maneira surpreendente, me levou à sua casa, ofereceu-me um café coado e um bolo de macaxeira; uma sublime composição. As prosas poderiam se estender por horas ou dias, mas tinha de voltar ao meu regaço. Deitei-me com tia Maninha e contamos os nossos causos; rimos por toda a noite. Ela dormiu nos meus braços e não pude me desfazer do amor prostrado. Acordei com a alma leve. O seu corpo era frágil passarinho, com olhos ainda brilhantes, loucos para voar. Comecei a me demorar e, em mim, reacendeu a essência. Elisa provara ser mais do que uma amiga. Passeávamos nos fins de tarde, aproveitando o sono de tia Maninha. Trocávamos olhares e intenções. Nossos corpos, enfim, se prenderam, irremediáveis. Tia Maninha nos retribuiu com a sua luz, porque queria um bem danado à “menina”. Foi o suficiente para me “deixar encaminhado”, como dizia. Partiu para a morada do Pai na semana seguinte. Compreendi o aviso e a promessa. Deveria me aderir à querência do lugar. Refiz a vida, com a ajuda de Elisa. Casamo-nos, três meses depois, na igrejinha da cidade, sob a orientação do padre Salustiano e o manto protetor de tantas mãos dadivosas. João Carlos me contratou como administrador do sítio. Ali mesmo, para fugir de quaisquer inconvenientes da cidade, construí a nossa casinha. Tia Maninha continua sendo a minha confidente, a minha amiga, a minha mãe; a confirmação de que o amor é uma energia perene no coração que crê. Para o fim, no meio de tudo, encontrei a minha redenção.

 

 




Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto. Instagram.com/adrianobespindolasantos/ | facebook.com/adrianobespindolasantos | adrianobespindolasantos@gmail.com