O cheiro | Luiz Henrique Gurgel

 

por Luiz Henrique Gurgel__


Intervenção na foto de Amine rock hoovr


O cheiro - (ou quando me encontrar, me aperte mais do que a saudade)


Ficou um ano distante de um ser que ama, pedaço dele. Ser que pegou um trem e partiu para ver outras paisagens. Por um tempo o coração ficou parado naquela estação. Tirando a rápida visita que fez pouco depois da partida, não mais se encontraram fisicamente.


Nesse tempo, o que ouviu foi algo parecido com a voz daquele ser em mensagens metálicas no celular; viu - poucas vezes - rosto e sorriso, verossimilhantes, na tela do computador via Skype, Zoom ou outra traquitana dessas, em conversas frente a frente, se é que se pode dizer assim. Também viu o que os olhos do ser amado viam por fotos no Instagram e Facebook; ainda viu pessoas que riam ou conversavam com ele, muitas selfies, pequenas cenas, imagens de divertimentos. Um ano de contemplação à distância. Algumas vezes sabia, naquele mesmo instante, onde o ser estava e o que fazia, apesar dos milhares de quilômetros de distância. Talvez por isso ficassem, tantas vezes, dias ou semanas sem o menor contato. Era preciso sentirem-se distantes, ausência não é falta.


Não houve carta manuscrita, cartão postal ou telegrama, meios fora de moda. Por isso admirou-se consigo mesmo - apesar dos poucos dias que restavam para a volta - não sentir nenhum frio na barriga ou ansiedade. Às vésperas da chegada lhe perguntavam: e aí? ansioso? A pergunta constrangia, ficava sem graça em dizer que nem tanto. Punha-se a pensamentar, esquisito como a palavra, estranhando a própria reação. Pensava no óbvio, estavam distantes, mas presentificados por toda aquela parafernália de comunicação, a mais avançada tecnologia que promete - quase cumpre - deter a saudade.


Apesar da sensação, havia algo meio impreciso, que ainda não tinha estragado tudo e que mantinha certa inquietação. Foi a esse fio não muito nítido de esperança que ia se agarrando para recuperar em si o deleite de matar saudade à moda antiga. Desejo, via memória, que o salvou. Se enviesadamente ouvira a voz, vislumbrara o rosto e o sorriso e tivera notícias instantâneas, jamais, naquele ano todo, teve nada como o cheiro do cabelo, a textura da pele do rosto, o contato das mãos e do beijo que recebia na bochecha barbada. Mas era o cheiro, sim, o cheiro, expressão nordestina, invisível, imanente, próximo do espírito, do sopro, parte de si que se esvai naturalmente e se entrega ao mundo. E alguém que já o havia recolhido – principalmente ele, que o experimentara desde a primeira hora, responsável por aquela existência – sentia que este era o elo imponderável. Foi o que bastou para que ficasse nervoso, cada vez mais ansioso pela chegada. Sentia-se a salvo e vivo, feliz por ter sua extensão no mundo de volta. Ao menos até a próxima partida.




Luiz Henrique Gurgel é paulista de Santo André, professor que se debandou para o jornalismo há mais de 20 anos. Trabalhou com projetos editoriais do Estúdio Elifas Andreato, em São Paulo, onde fez parte da equipe de criação e foi um dos editores da revista Almanaque Brasil, extinta publicação de bordo da TAM Linhas Aéreas; ainda com Elifas foi pesquisador e redator da série em fascículos “História do Samba”, lançada pela editora Globo. Também participou da equipe de programação da Galeria Olido, centro cultural da Prefeitura de S. Paulo, logo após sua inauguração em 2004, responsável pelas atividades com literatura. Como free-lancer, teve reportagens publicadas por Caros Amigos, Revista Brasileiros, Diário do Grande ABC entre outros. Atualmente trabalha com projetos educacionais e está concluindo uma pesquisa de mestrado sobre Carlos Drummond de Andrade na Universidade de São Paulo. Como free-lancer, teve reportagens publicadas por Caros Amigos, Revista Brasileiros, Diário do Grande ABC entre outros.