Três poemas de Murilo Mendes

 por Taciana Oliveira__


Foto: Levi Meir Clancy



CANTIGA DE MALAZARTE

 

Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo,

ando debaixo da pele e sacudo os sonhos.

Não desprezo nada que tenha visto,

todas as coisas se gravam pra sempre na minha cachola.

Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos,

destelho as casas penduradas na terra,

tiro os cheiros dos corpos das meninas sonhando.

Desloco as consciências,

a rua estala com os meus passos,

e ando nos quatro cantos da vida.

Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado vencido,

não posso amar ninguém porque sou o amor,

tenho me surpreendido a cumprimentar os gatos

e a pedir desculpas ao mendigo.

Sou o espírito que assiste à Criação

e que bole em todas as almas que encontra.

Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo.

Nada me fixa nos caminhos do mundo.

 

 

REFLEXÃO N°.1

 

Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho

Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio

Nem ama duas vezes a mesma mulher.

Deus de onde tudo deriva

E a circulação e o movimento infinito.

Ainda não estamos habituados com o mundo

Nascer é muito comprido.

 

MAPA

 

Me colaram no tempo, me puseram

uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou

limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,

a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação.

Me vejo numa nebulosa, rodando, sou um fluído,

depois, chego à consciência da terra, ando como os outros,

me pregam numa cruz, numa única vida.

Colégio. Indignado, me chamam pelo número, detesto a hierarquia.

Me puseram o rótulo de homem, vou rindo, vou andando, aos solavancos.

Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado,

gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar,

alguém da terra me faz sinais, não sei bem o que é o bem

nem o mal.

Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso, angustiado, no éter,

tonto de vidas, de cheiros, de movimentos, de pensamentos,

não acredito em nenhuma técnica.

Estou com os meus antepassados, me balanço em arenas espanholas,

é por isso que saio às vezes pra rua combatendo personagens imaginários,

depois estou com os meus tios doidos, às gargalhadas,

na fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim.

Estou no outro lado do mundo, daqui a cem anos, levantando populações...

Onde esconder a minha cara? O mundo samba na minha cabeça.

Triângulos, estrelas, noite, mulheres andando,

presságios brotando no ar, diversos pesos e movimentos me chamam a atenção,

o mundo vai mudar a cara,

a morte revelará o sentido verdadeiro das coisas.

 

Andarei no ar.

Estarei em todos os nascimentos e em todas as agonias,

me aninharei nos recantos do corpo da noiva,

na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários.

Tudo transparecerá:

vulcões de ódio, explosões de amor, outras caras aparecerão na terra,

o vento que vem da eternidade suspenderá os passos,

dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete mulheres,

vibrarei nos cangerês do mar, abraçarei as almas no ar,

me insinuarei nos quatro cantos do mundo.

 

Almas desesperadas eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes,

Detesto os que se tapeiam,

os que brincam de cabra-cega com a vida, os homens "práticos"...

Viva São Francisco e vários suicidas e amantes suicidas,

os soldados que perderam a batalha, as mães bem mães,

as fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.

Vivam os transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque jejuavam muito...

viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcedente.

Sou a presa do homem que fui há vinte anos passados,

dos amores raros que tive,

vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor,

tudo é ritmo do cérebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria,

estou no ar,

na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,

no meu quarto modesto da praia de Botafogo,

no pensamento dos homens que movem o mundo,

nem triste nem alegre, chama com dois olhos andando,

sempre em transformação.






Murilo Mendes -  Nasceu em Juiz de Fora, em Minas Gerais, em 1901. Sua estreia na literatura se deu com Poemas, em 1930, festejado por Mário de Andrade como “historicamente o mais importante dos livros do ano”. É autor de Poesia liberdade, As metamorfoses e A idade do serrote, entre outros. Morreu em Lisboa, em 1975. Fonte: Companhia das Letras