Preguiça | Germana Accioly

 por Germana Accioly__


Photo by Simon Berger on Unsplash


Eu nem sei por onde começar a escrever.


Tenho sentido preguiça, muita! A palavra preguiça, escrita assim, às 6h da manhã de uma segunda-feira me soa pertinente, mas também é um leve pecado, uma contravenção íntima. O final de semana não foi capaz de restaurar as cicatrizes que se abriram na semana passada. E então, às 4h30 da manhã sou acordada pela minha própria mente. Abro os olhos, tudo escuro. Penso que ainda tenho duas horinhas de sono. Não alvoreci.


Na cabeça a mil, os pensamentos despertam. Penso nos meus filhos quando eram pequenos, que por vezes acordavam antes de mim e ficavam me olhando dormir, com os rostinhos ansiosos a um palmo de distância dos meus olhos. Eu ficava ali sentindo a respiração, aquele hálito doce, protelando me mexer. Até que a renite alérgica que me levanta todos os dias menos discretamente que eles, começava a fazer cócegas no meu nariz. Na primeira fungada, um deles já chamava o meu nome. As carinhas ansiosas por movimento, eu “arrastando o lençol” pela casa, num resmungado mudo.


Sinto parecido com estas ideias que habitam na minha mente. Tenho até sacado boas ideias, mas a preguiça tem sido mais forte, mais presente, mais cômoda. Esta coisa de escrever expõe demais. Tenho sentido a vontade crescente de ser menos vista. Invisível seria a expressão correta. Almejo uma daquelas capas mágicas dos filmes de feitiçaria. Escrever é abrir passagens secretas, copiar a chave de casa para toda uma vila, decifrar a caixa preta.


Seria preguiça, o pecado capital que me persegue?


Talvez seja a soberba, que me traz a falsa superioridade. Ser do jeito que quero, não do jeito que sou. Crença demasiada na força que não tenho. Quem dera eu fosse dos números, das “exatas”. Sou das “subjetivas”. Minha soberba deseja ser menos simbólica. Não há quem perdoe.


Contraditoriamente, o apetite por uma vida nova me soa como gula. Desejo visceral de provar outros sabores a se respirar. Sentir na ponta da língua, a língua mãe. Outras combinações para sentimentos reles, corriqueiros, ínfimos, plebeus. Saciar esta infinita apatia, uma negação da capacidade de sentir. Mas, confesso, tenho estado pouco criativa. Criar requer dedicação, tempo, marinar as ideias, escolher palavras como temperos, experimentar. É a preguiça... Ando sem sentidos.


Gosto quando a boca arde de tanta pimenta. Luxúria. É como se, naquela dormência, no desconforto, eu recebesse uma dose a mais de vida. Deve ser por isso que me apraz tanto experimentar ardores, amargores, dulçores. Camadas de lembranças que entram pelo paladar. Aguçar os sentidos, sentir os travos e a boca molhada, aguando. O ranço que, porventura, desce pela garganta, rastro do sabor. Notas de azedo que travam e harmonizam. Gotas, pitadas, pequenas alegrias. Gosto quando a vida vem quente. Troco as palavras como quem brinca. Jogo com as expressões como quem goza.


Agora são sete horas. O sol já invade minha cama, esquenta, insinua vida. A cidade faz barulho nesta manhã de julho. Sigo na minha incapacidade de traduzir. Há uma certa avareza em desistir de escrever. É o fio da navalha, a batalha que travo dentro da alma. Gostaria imensamente de não ver nos frascos vencidos de hidratante a poesia do abandono. Ser inútil também é existir. Seria o avesso a minha melhor versão? Aversão.


Minha ira, pratico regularmente. É com ela que dialogo agora, não com você que me lê. É a raiva que abre o computador e me desafia para o duelo. Dueto lento para quem vive neste tempo-espaço denso. A vida me veste de luto e eu abraço a oportunidade. Quero inexistir, diminuir, emudecer e calar.


Paraliso. A preguiça é uma roupa que me cai bem.

 


 


Germana Accioly é escritora e jornalista. Escreve no blog Perder de Vista