por Germana Accioly__
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Eu nem sei por onde começar a escrever.
Tenho sentido
preguiça, muita! A palavra preguiça, escrita assim, às 6h da manhã de uma
segunda-feira me soa pertinente, mas também é um leve pecado, uma contravenção
íntima. O final de semana não foi capaz de restaurar as cicatrizes que se
abriram na semana passada. E então, às 4h30 da manhã sou acordada pela minha
própria mente. Abro os olhos, tudo escuro. Penso que ainda tenho duas horinhas
de sono. Não alvoreci.
Na cabeça a mil, os
pensamentos despertam. Penso nos meus filhos quando eram pequenos, que por
vezes acordavam antes de mim e ficavam me olhando dormir, com os rostinhos
ansiosos a um palmo de distância dos meus olhos. Eu ficava ali sentindo a
respiração, aquele hálito doce, protelando me mexer. Até que a renite alérgica
que me levanta todos os dias menos discretamente que eles, começava a fazer
cócegas no meu nariz. Na primeira fungada, um deles já chamava o meu nome. As
carinhas ansiosas por movimento, eu “arrastando o lençol” pela casa, num
resmungado mudo.
Sinto parecido com
estas ideias que habitam na minha mente. Tenho até sacado boas ideias, mas a
preguiça tem sido mais forte, mais presente, mais cômoda. Esta coisa de
escrever expõe demais. Tenho sentido a vontade crescente de ser menos vista.
Invisível seria a expressão correta. Almejo uma daquelas capas mágicas dos
filmes de feitiçaria. Escrever é abrir passagens secretas, copiar a chave de
casa para toda uma vila, decifrar a caixa preta.
Seria preguiça, o pecado
capital que me persegue?
Talvez seja a
soberba, que me traz a falsa superioridade. Ser do jeito que quero, não do
jeito que sou. Crença demasiada na força que não tenho. Quem dera eu fosse dos
números, das “exatas”. Sou das “subjetivas”. Minha soberba deseja ser menos
simbólica. Não há quem perdoe.
Contraditoriamente,
o apetite por uma vida nova me soa como gula. Desejo visceral de provar outros
sabores a se respirar. Sentir na ponta da língua, a língua mãe. Outras
combinações para sentimentos reles, corriqueiros, ínfimos, plebeus. Saciar esta
infinita apatia, uma negação da capacidade de sentir. Mas, confesso, tenho
estado pouco criativa. Criar requer dedicação, tempo, marinar as ideias,
escolher palavras como temperos, experimentar. É a preguiça... Ando sem
sentidos.
Gosto quando a boca
arde de tanta pimenta. Luxúria. É como se, naquela dormência, no desconforto,
eu recebesse uma dose a mais de vida. Deve ser por isso que me apraz tanto
experimentar ardores, amargores, dulçores. Camadas de lembranças que entram
pelo paladar. Aguçar os sentidos, sentir os travos e a boca molhada, aguando. O
ranço que, porventura, desce pela garganta, rastro do sabor. Notas de azedo que
travam e harmonizam. Gotas, pitadas, pequenas alegrias. Gosto quando a vida vem
quente. Troco as palavras como quem brinca. Jogo com as expressões como quem
goza.
Agora são sete
horas. O sol já invade minha cama, esquenta, insinua vida. A cidade faz barulho
nesta manhã de julho. Sigo na minha incapacidade de traduzir. Há uma certa
avareza em desistir de escrever. É o fio da navalha, a batalha que travo dentro
da alma. Gostaria imensamente de não ver nos frascos vencidos de hidratante a
poesia do abandono. Ser inútil também é existir. Seria o avesso a minha melhor
versão? Aversão.
Minha ira, pratico
regularmente. É com ela que dialogo agora, não com você que me lê. É a raiva
que abre o computador e me desafia para o duelo. Dueto lento para quem vive
neste tempo-espaço denso. A vida me veste de luto e eu abraço a oportunidade.
Quero inexistir, diminuir, emudecer e calar.
Paraliso. A
preguiça é uma roupa que me cai bem.
Germana Accioly é escritora e jornalista. Escreve no blog Perder de Vista