por Yvonne Miller__
Acordo
no meio da noite com um barulho no corredor. Rodas de mala sobre ladrilhos. Demoro
uns instantes para me localizar em tempo e espaço: férias, Maracaípe, pousada. Nem
um pingo de luz passa pelas frestas da janela. Olho o celular: quatro da madrugada.
—
Qual o quarto? — Voz de mulher com sotaque paulistano.
—
Doze. Aqui — responde um homem no mesmo instante que escuto a chave na
fechadura ao lado. As vozes são tão nítidas como se os dois estivessem do lado
da minha cama.
—
Olha que bonitinho, amor! — Ela de novo. — Vou ligar pro Rafa.
Só
o que me faltava.
—
Oi, Rafa, tá me ouvindo? Oi! Sim, já estamos no hotel.... Maracaípe, do ladinho
de Porto de Galinhas.... Não, lá não tinha mais hospedagem...
—
Deixa eu falar com ele — intervém o marido. — Meu, a TV aqui no quarto é melhor
que a sua, hahaha!... O quê? Fortaleza? Não, cara, estamos em Pernambuco, não na
Paraíba!
Minha
cabeça começa a latejar, não sei se pela falta de noção geográfica ou pela
falta de noção em geral. Nunca entendi esse costume do povo falar gritando. Não
dá pra conversar num tom normal? Ou em tom nenhum, visto que são quatro da
madrugada?
—
Claro que tem água encanada, estamos num hotel! — está reforçando o homem do
outro lado da parede nesse momento. — Tem até ar-condicionado. Espera, vou
ligar a câmera pra você ver. Tá vendo? Ar-condicionado, frigobar, TV... Se não
soubesse melhor, pensaria que estamos em Ubatuba.
Minha
dor de cabeça mistura-se com vergonha alheia e o impulso instintivo de defender
Pernambuco. Pernambuco, do carnaval de rua mais conhecido do país! Pernambuco,
da maior estrada em linha reta da América Latina! Pernambuco, berço do forró! Não,
da cultura em geral! Onde nasce, do encontro entre o rio Capibaribe e o rio
Beberibe, nada menos do que o Oceano Atlântico! E mais: o próprio Brasil! Não
foi em São Paulo, não foi no Rio de Janeiro, não foi em Brasília; foi em
Jaboatão dos Guararapes que nasceu a pátria! Tudo bem, provavelmente fez só mesmo
foi nascer lá e logo mais deu as costas em busca de um canto mais bonito, pois
pense num lugar desolado... Mas nascer nasceu lá, a póbi, pelo menos se
acreditamos na placa de boas-vindas em cima da BR. Ah, se esses turistas
soubessem que se encontram nem mais nem menos do que na matriz da nação, no
estado-mãe da pátria amada, no umbigo do umbigo do mundo!
No
quarto ao lado, o homem está provando ao Rafa que a televisão funciona mesmo. Enquanto
os primeiros raios de luz se filtram pelas frestas da janela, o bebê do quarto
de cima começa a chorar. E quanto a mim, só me resta enfiar a cabeça embaixo dos
travesseiros e esperar. Esperar que, em prol da nação, essa próxima geração já venha
com um update de noção.