Escatologia | Anthony Almeida

 por Anthony Almeida___

 


Um papo:


– Tô peruando em São Paulo.


– Boa! Aproveita pra achar uma festa escatológica por aí!


– Hahaha!


– Sampa é o lugar pra isso. Tem festa escatológica pra todos os gostos.


– Ui!

 

Um panfleto:


American Bar Vintão: privê com as mais belas gatas de São Paulo.


Ambiente exclusivo para bar; espaço para shows e eventos com música ao vivo às sextas e sábados; copão de whisky c/ gelo de coco a partir de vinte reais; cerveja: três por dez às quartas e quintas-feiras.


Horário de funcionamento: das 11h00 da manhã às 02h00 da madrugada.


Av. São João, 345 – Calçadão.

 

Um relato:


– Mano, não é boate, não é puteiro, não é motel e nem é bar.


– E é o quê?


– É um Single Hotel. Vou te contar como é:


Já começa num lugar bem escondido. A entrada fica atrás de um jardim, pra dar privacidade às pessoas. É escuro, mas bem preservado. Sem muitas informações, não tem o nome bandeiroso na fachada, sabe? Aparece pequenininho num letreiro luminoso: Single Hotel 24h. Somente.


Quando você chega, o recepcionista-segurança te revista com um farolete. Ele olha dentro da sua mochila e, se você tiver com algum líquido, ele pede pra você despejar esse líquido. Ah, e tem que mostrar a carteirinha de vacinação contra a covid-19.


Você vai entrando mais e uma porta de ferro se abre depois que você aperta um botão, aí uma voz mecânica fala de dentro de uma caixinha:


– Boa tarde! Armário?


Aí você fala, sim, armário. Tem vários planos. De armário até quarto inteiro com banheira e tudo mais. Você escolhe o que vai querer. Eu sempre vou de armário, que é o mais barato. Mas tem valores que variam de sessenta reais até uns quinhentos. O preço depende do tipo de ambiente.


Você não vê o atendente em momento algum. Eles abrem uma gavetinha e você passa a sua documentação. Aí te entregam uma toalha e um crachá pra você entrar por uma outra porta. Então, lá dentro, você fica protegido por duas grandes portas de ferro. Quando ela é aberta, você dá de cara com uma televisão grande passando um filme pornô com sons e afins. Você ouve e você vê.


É tudo bem escuro, porém com iluminação suficiente pra você enxergar silhuetas e, em alguns ambientes, você enxerga bem como são as pessoas que também entraram pelas duas portas de ferro. Em outros, quase nada. A cor de luz que prevalece é um amarelado e, sobretudo, vermelho. Alguns lugares têm vermelho e têm azul, um azul elétrico.


São vários ambientes. Tem a parte dos armários, onde você começa o processo e as pessoas já estão por ali e já te veem. Esse lugar tem câmeras, mas isso não inibe muito as pessoas. Aliás, alguns lugares têm câmera, mas ninguém se inibe com nada disso. Cada ambiente tem essas luzes de azul elétrico e um vermelho que mostra as silhuetas. Tem cinema, tem sauna a vapor, sauna seca, tem piscina quente, piscina fria e, sobretudo, muitos corredores entre os ambientes e os andares. Nos corredores, as pessoas transitam com pouca ou nenhuma roupa.


Sabe a toalha que eles te entregam junto com o crachá? Essa é a única “roupa” permitida. Todo o resto você deixa guardado no armário. E a toalha é pequena, dá pra você dar uma volta na cintura e ela fica na altura das coxas. Aí você encontra pessoas, em silêncio, se olhando e se apalpando. Você ouve barulhos, barulhos tipo fapfapfapfap. Você ouve esses e outros barulhos, sente cheiros e, conforme você vai andando pelos espaços, mesmo que você não consiga enxergar muita coisa, dá pra sentir as mãos passando por você. Mãos, peito, ombro, tudo vai passando por você. Às vezes mais pro “sul”, às vezes mais pro “norte”, mas as mãos estão sempre presentes.


Você pode se deixar apalpar e pode apalpar também. Pode escolher alguém, ou mais pessoas, pra ir pra algum dos ambientes além dos corredores. Eu acho engraçado uma placa que tem na piscina: “É proibido fazer sexo dentro da piscina” – hahaha! Eu queria fotografar essa placa, mas não pode entrar com celular.


Uma coisa legal do espaço são as reflexões que você tira da experiência toda. É um ambiente sem janela nenhuma e não tem relógio. O tempo, ali dentro, ele para. É como se esse fosse o mundo que você tá vivendo e todo o restante tá fora dele. Aí você não pensa muito no mundo de fora. Você vive aquele momento, entendeu? Tanto é que, quando você sai desse espaço, você tem um choque. Todos os seus sentidos e sensações ficaram baseados no que você viveu lá dentro.


Cheiro de eucalipto, lá dentro tem muito cheiro de eucalipto, a luminosidade toda propícia, os espaços úmidos, pouca roupa... Quando você sai, você já dá de cara com toda a loucura do Largo do Arouche, com o trânsito, com a mendicância na rua, o chão muito sujo, com o elevado do Minhocão e o metrô ali na porta pra você entrar nele e ir pra o seu destino, enfim.


Então, essa questão de o tempo ficar meio que parado ali dentro é muito interessante. Quem entra, tem seis horas pra permanecer, então, quer dizer, é bastante tempo. Se a pessoa ficar mais que isso, paga mais uma outra estadia. Também rola uma sensação de que todo mundo é uma só massa, sabe? Uma só massa que vive separada, mas que um dia já foi uma coisa só, um só ser. Aí, lá dentro, você tem essa experiência de ser uma só massa.


E, tem mais, são só homens que entram. Mulher não é proibida, mas, tipo, os homens pagam sessenta reais e as mulheres pagam cinco mil. Então, assim, acho muito pouco provável que alguma mulher já tenha ido lá. Eu, pelo menos, não sei de nenhuma. Nunca vi nenhuma.


E aí, isso é uma festa escatológica?

 

                               São Paulo. Agosto, 2022.

 

 



Anthony Almeida é professor, cronista e cartofilista. Nasceu em Caruaru/PE e está vivendo uma temporada em São Paulo/SP, antes de pousar, outra vez, em Caruaru. Pesquisa a Geografia Literária, escreve e estuda a crônica brasileira. É cronista do Jornal Tribuna Livre, da Revista Mirada, doutorando em Geografia, pela UFPE, e editor adjunto da RUBEM – Revista da Crônica. Contato: anthonypaalmeida@gmail.com