por Maria
Eugênia Moreira__
Victor Heringer
(1988-2018). Esse nome deverá ser dito exaustivamente. Heringer rompeu na
literatura de maneira espantosa e logo teve o seu reconhecimento e sucesso
precoce — aos vinte e cinco anos, Victor já guardava um Jabuti pelo seu romance
de estreia, Glória (2013). O escritor carioca testou os limites da palavra indo
do poema ao conto, do conto às crônicas, das crônicas ao romance e do romance
aos audiopoemas visuais publicados em seu canal do YouTube, Automatógrafo.
Victor era um estudioso, um carioca com pinta chilena e experiência paulistana.
Era um poeta, embora dissesse que “[…] sem mulher, sem filhos, mas com emprego
estável/ é preciso admitir que não sou poeta./ Embora o meu amor esteja solto
no mundo/ violento, semicego e ferido no ombro/ não sou poeta.” (“Não sou
poeta” (Poema publicado em Escamandro, 2015). Victor era um escritor completo,
ainda que a linguagem surja sempre de uma falta.
Há um ano e
meio, tive o prazer de começar uma análise do seu segundo e último romance, O
Amor dos Homens Avulsos (2016), através das lentes da psicanálise freudiana —
análise que tornou-se objeto do meu trabalho de conclusão de curso (TCC) de
Psicologia na PUC-SP e também de paixão. O amor dos homens avulsos acontece em
uma Rio de Janeiro fictícia descrita sob o sol realíssimo da capital carioca.
Logo no início do romance somos apresentados ao narrador e também protagonista,
Camilo. Camilo, um garoto miúdo, preso a um cajado de pau de goiabeira devido a
uma monoparesia do membro inferior que causava fraqueza na perna, único filho
homem de uma família pequena e típica da elite brasileira: pai, mãe e irmã. O
livro, porém, é menos sobre o garoto do que sobre a sua desgraça, o seu amor e
a sua perda.
Camilo é
surpreendido, logo nas primeiras páginas do livro, com a chegada de um menino
trazido para casa pelo seu pai: Cosmim. Cosmim era a personificação de tudo
aquilo o que faltava em Camilo: um corpo sadio, esbelto e sedutor. Um menino
com carisma. Nasce entre eles uma relação de afeto que não se reduz aos limites
morais e funcionais dos papéis familiares: uma relação de namorados, não só de
irmãos. Aqui, Victor nos apresenta a sua genialidade (já conhecida e celebrada)
seguindo na história as leis que regem a teoria psicanalítica, de forma
proposital e estudada, ou não: o Édipo precisa morrer, assim como o incesto
precisa ser interditado pela cultura totêmica. No livro essa interdição
acontece por tragédia, sendo a melancolia do desastre característica típica do
texto heringeriano.
Victor defendeu
na história, mesmo que acidentalmente, a base teórica da análise straussiana
sobre o incesto: a nomeação da relação é o que delimita a pujança da
interdição, sendo parentesco e consanguinidade coisas distintas. Na obra, a
questão sobre como os meninos eram vistos e sobre como se viam — irmãos,
colegas de casa, amigos ou só amores — aparece de forma turva. Ora os termos se
apresentam claros, ora acontece a contradição. São eles: 1. amigo; 2. irmãos; 3. irmãozinhos; e 4. meu
— O meu Cosmim. Os meninos, namorados e possivelmente irmãos, constroem uma
relação de primeiras vezes (afinal, é um livro que trata, sobretudo, de um
primeiro amor) e é quando essa relação toma um desfecho brutal que o sentimento
de avulsão, presente durante toda a vida do personagem e que dá nome ao livro,
transforma-se naquela melancolia que carimba toda a história do nosso narrador.
Na psicanálise, a melancolia é sempre um estado decorrente da perda de um
objeto, diferenciando-se do estado de luto devido à presença de uma perturbação
da autoestima. Victor nos presenteia com um melancólico perfeito, um
narrador-protagonista taciturno pós-Cosmim.
As relações
incestuosas não são raras nas narrativas literárias, aparecendo em obras como
as de Vladimir Nabokov, Raduan Nassar e até nas de Eça de Queirós. O Amor dos
Homens Avulsos, porém, diferente das outras criações, não tem o seu drama
percorrendo a questão de forma aberta e clara e nem o acordo social cósmico
questionado, sequer sendo evidenciado o tipo de relação dos personagens para
além da relação de apaixonamento, de descoberta da homossexualidade, do ciúme e
também da perda. Ao contrário, o drama que rege a história e que se
responsabiliza pelo desenredo parece se limitar à homossexualidade dos
protagonistas, ao menos na superficialidade da história. Conhecendo outras
obras de Heringer, posso dizer que essa superficialidade, mesmo que impecável,
trata-se apenas de uma pequena lasca do magnânimo material narrativo. Victor
brinca com objetos de dedicação psicanalítica e torna, dessa maneira, tudo meio
irônico — colocar os livros de Victor no divã é sempre muito divertido, senão
pelos chistes, por sua cronografia engenhosa e substancial.
Victor faz e
continuará fazendo falta no campo literário, carioca e brasileiro, e a nós
caberá tratar essa lacuna na saudade, na análise, nas releituras do seu texto e
também no divã. Ainda que continuemos sendo presenteados por coletâneas, como
no caso de Vida Desinteressante, reunião póstuma de textos publicados por
Heringer na Revista Pessoa e publicada em 2021 pela Companhia das Letras,
continuará nos faltando a sua palavra sobre o cotidiano, atual e bruto. As
palavras de Victor sobre o revés dos nossos dias, a sua ironia pelo desastre, o
seu olhar, sempre maior e mais sensível do que os outros, faltará a nós, leitores
e ressentidos. Que se eternizem, as produções heringerianas! O susto não passa.
Maria Eugênia Moreira é escritora, autora de Urucum (Editora Penalux, 2020) e Três Palmos (Editora Penalux, 2021), e atualmente é graduanda em Psicologia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). A autora começou, ainda na graduação, uma pesquisa sobre a escrita heringeriana e a sua relação com a psicanálise, sendo esse o tema do seu trabalho de conclusão de curso, ainda em andamento.