Três mares, crônica de Anthony Almeida

 


por Anthony Almeida__



Foto:Taciana Oliveira



Tomar um banho de chuveiro no fim da noite, um banho quente, e, depois de secar o corpo quase inteiro, cair na cama diante do ventilador. O vento giratório que vem dele completa a tarefa da toalha e, em especial, seca os pés, ainda molhados; a toalha me secou só até a canela. A ventania nos meus pés é um prazer que faz suspiros, fecha olhos, imagino o mar.


Do outro lado da cama, a janela. Além dela, os ventos do Recife, mais além, o mar do Recife. Tenho este Recife desde agosto. Mas, deste dezembro em que o ventilador me sopra os pés, sei que os ventos do mar recifense ainda não me sopraram... E já são mais de três meses com ele na vizinhança... Ainda não fui ver o mar, suas águas ainda não chegaram em meus pés. E, enquanto estive distante, anos distante deste Recife, eu quis demais, demais o Recife e demais o seu mar.


Aqui eu já cantei, já andei, já gritei, já sonhei. Vivi. Mas ainda não fui ao mar. 


Mesmo assim, o sopro do ventilador me fala, me relembra de três mares que me molham em sensação e me sopram em afeto; e eles só me existem por causa deste Recife. Tenho ventos e águas de um mar valente, de um mar pavio e de um mar arrudeio. Mares pessoais, mares com vivas águas. Mares poéticos.


O mar valente me pasma faz é tempo. Saiu, valente, do Recife para me achar muito distante daqui. Levou-me, faz cinco anos, suas águas e o sotaque de suas águas. A surpresa da sua voz me lembrou que meu sotaque também é o mesmo que o seu. O sotaque desse mar me acolheu quando o Recife me era muita distância. O sotaque desse mar me reencontrou agorinha, neste setembro, e, mais uma vez, com sua valentia e seu fôlego, me surpreendeu, me chamou, me mostrou, outra vez, que sua voz e a minha voz têm o mesmo sotaque e podem ter semelhantes percursos. 


O mar pavio tem água, mas tem mais. É um mar com fogo e com pedras no chão. Sob as ondas, é surpreendente que haja lume. Sobre as rochas, o pavio que se queima e incendeia o mar é uma faísca de serendipidade. Este mar me achou ainda mais distante de Recife e foi por causa de Recife que este mar me encontrou. É mar de serendipidade. Acontece, mistura fogo, água e pedra no mesmo pavio que se inflama. É um mar quase paradoxal, um mar de chamas que se consumiram num breve momento, mas que pode e se reacende pelo poder da palavra. E é a palavra que permite que se misture chama de pavio com água de mar e rocha e céu.


O mar arrudeio me veio aqui no Recife mesmo. Veio com a rosa-dos-ventos banhada por suas águas, veio com aurora, veio com encruzilhadas. É um mar que gira e me gira, me roda, me bota no chão e me leva por léguas. Ondeia, arrudeia e vai. Mostra que a rosa-dos-ventos pode ser uma roda de ventos. Eu fico. Fico, mas sei que posso girar por norte, sul, nordeste, sudeste. O mar segue a rodar, arrudeia, gira com o vento. Me mostra como a vida pode ser espilicute, cheia de ondas e voltas e reviravoltas, com arrudeios diante da aurora, com arrudeios diante da encruzilhada. É um mar de energia. É um mar que me faz querer rodar e arrudiar com as águas do oceano, que me revela que girar e girar vai me mostrar os infindáveis mares que o oceano tem.


O vento do ventilador vai me acompanhar por hoje, pelo resto desta noite. Seus sopros me aconchegam com a lembrança e a poesia destes mares. Mas, está decidido, amanhã de manhã vou rever o mar de Recife. Vou contar, de dentro dele, meus segredos de mares para o grande oceano.


Recife. Dezembro, 2022.







Anthony Almeida é geógrafo, professor e cronista. Nasceu em Caruaru/PE e mora em Recife/PE. Pesquisa a Geografia Literária, escreve e estuda a crônica brasileira. É cronista da Revista Mirada, doutorando em Geografia, pela UFPE, e editor adjunto da RUBEM – Revista da Crônica. Contato: anthonypaalmeida@gmail.com