O oculto da experiência humana na escrita de Pedro Jucá, autor de Coisa, Amor

 por Divulgação__







Autor cearense, que reside em Curitiba (PR), estreou com livro de contos publicado pela Editora Urutau; escritor começou a ser agenciado pela Agência Riff em 2023


Pedro Jucá  (@pedrojuca_) nasceu em Fortaleza, Ceará, em 1989. Formado em Direito pela Universidade Federal do Ceará, atua como Procurador do Estado do Paraná, mas vive também entre a literatura — é pós-graduado em Escrita Criativa pela Universidade de Fortaleza (Unifor) e já foi contemplado por premiações como Prêmio de Literatura Unifor, Prêmio Ideal Clube de Literatura e Prêmio Off Flip de Literatura — e a psicanálise. 


Uma das maiores pré-vendas da história da editora Urutau, seu livro de estreia “Coisa Amor” (Urutau, 2022, 152 pág.) é composto por contos que abordam avessos e contradições das relações humanas a partir de situações cotidianas, relacionadas sobretudo com a maternidade, o amor, a sexualidade e o desejo, o inconsciente, a morte, a memória, a loucura e a solidão. A obra será lançada em São Paulo, capital, na Livraria Mandarina (R. Ferreira de Araújo, 373 - Pinheiros), no dia 10 de junho, a partir das 16h.


Ao longo dos quinze contos, Pedro Jucá explora o poder da narração para apresentar diferentes facetas de suas personagens complexas, tomando mão, para isso, de diferentes estilos de escrita. Dito e não dito transcorrem através do texto como complementares, enquanto o autor explora os limites de um enigma: onde começa e a que se conforma a experiência do que é propriamente humano? 


“São temas que, de alguma maneira, tocam aquilo que temos de mais radicalmente humano – nos dois sentidos: tanto de extremidade, de limite, quanto de início, de raiz. Dizem um pouco da minha maneira de ver o mundo, dizem um pouco daquilo que acredito ser universal a cada um de nós”, justifica o autor. “São questões recônditas, recalcadas, afastadas para uma zona de desconhecimento quase proposital, quase autopreservativa. Os temas não deixam de ser um cutucado forte nessa parte que, muitas vezes, ninguém quer perceber que traz em si”, elabora.

Atualmente o autor reside em Curitiba com seus três gatos: Willow, Hopper e Nimbus. É colunista do portal Curitiba Cult, onde escreve crônicas quinzenais.  Em 2023, o autor passou a ser agenciado pela Agência Riff. 



Confira a entrevista completa com Pedro Jucá:

1 - Quais foram os seus primeiros contatos com a escrita?

Desde muito criança, minha avó me estimulou a escrever histórias. Ainda que eu não tivesse exatamente o instrumental adequado para isso – estava ainda me alfabetizando –, foi minha primeira experiência com a fabulação, processo essencial para qualquer escritor. Saíam histórias com fadas, sereias, seres mágicos. Histórias precárias, mas um início. Eu sempre brinco: aprendi a escrever antes mesmo de aprender a ler.


2 -  Quando você começa a escrever?


Acho que comecei a responder com a pergunta anterior. Depois dessas primeiras experiências, posso citar as experiências do colégio: passei a me dedicar às redações na tentativa de, hoje eu sei, fazer daquilo literatura. Um dos contos do “Coisa Amor”, aliás, surgiu disso. Ainda hoje tenho o papel avulso. Acho que tire 100 (risos).

Meu primeiro conto “sério” eu escrevi ali pelos 15 anos. Um conto de uma paginazinha só, narrando a história de uma esposa que, em meio aos cuidados com o marido moribundo, deseja que ele morra. Hoje, pensando bem, é meio bizarro e até cabalístico que, mesmo antes dos contatos iniciais com Freud, o nome do meu primeiro conto oficial – “Um Desejo” – fizesse referência a um dos conceitos fundantes da psicanálise.


 3 - Como foi o seu processo de “formação” como escritor?

Um escritor está sempre se formando. Com leituras, com filmes, com o consumo de arte em geral, mas também com a observação da vida que se vive, das pessoas ao redor, das angústias muitas, das alegrias esparsas, de tudo. Em termos de formação técnica mais formal, fui professor voluntário de Literatura no Cursinho Pré-Vestibular Paulo Freire por um ano e coordenei o Núcleo Interdisciplinar em Direito e Literatura (Nidil) por quase 2 anos, ambos da Faculdade de Direito da UFC. Além disso, fora estudos avulsos, cursei a Pós-Graduação em Escrita Criativa da Universidade de Fortaleza (Unifor). 


4 - Qual a sua relação com a psicanálise?


Paralelamente à profissão jurídica, tive um percurso pela psicanálise. Depois de alguns anos de análise pessoal, comecei a estudar Freud e Lacan por conta própria. Em seguida, me filiei ao Corpo Freudiano, Seção Fortaleza. Participei de congressos, grupos de estudos, apresentação de cartéis, análise de casos clínicos. Mas isso já tem anos. A psicanálise me encanta e sidera, mas não sou psicanalista. Hoje tomo a psicanálise como uma das forças motrizes da minha escrita. Aliás, foi no processo de contato com o Inconsciente, no divã, que surgiram dois desejos: o de ser analista e o de levar a sério minha carreira de escritor. O primeiro desses intuitos acabou perdendo espaço, enquanto o segundo tomou força.

5 - Quais são as suas principais influências literárias? 

De leituras iniciais, algumas ligadas ainda à escola, eu posso citar os gibis da Turma da Mônica – objeto de recente polêmica –, os contos da Clarice, do Machado e da Lygia, a poesia do Drummond e da Cecília Meireles. Algumas leituras da época do vestibular também me marcaram muito: O Vendedor de Judas, da Tércia Montenegro, O Mundo de Flora, da Ângela Gutierrez, e A Casa, da Natércia Campos.

Um pouco mais velho, li Dois Irmãos, do Milton Hatoum, por muito tempo meu livro favorito, e a Insustentável Leveza do Ser, que, hoje, chamo de livro predileto da vida. Depois teve A Elegância do Ouriço, da Muriel Barbery, teve Philip Roth, teve Ian McEwan. 

E, last but definitely not least, a Tetralogia Napolitana. Acho que a escrita da Elena Ferrante é, em algum nível, algo que considero como uma “escrita definitiva”, uma meta, um ideal: uma narrativa de fatos, fatos que se encadeiam numa prosa simples, sem muita firula, mas profundíssima, radical (radicular), cortante.


6 - Se você pudesse resumir os temas centrais do “Coisa Amor”, quais seriam? E por que escolher esses temas?


A memória, a infância, o sexo e o desejo, o amor, a solidão, as perdas, as relações familiares, notadamente aquelas entre pais e filhos, mães e filhos, a loucura, o Inconsciente, o corpo, a crueldade humana, sua fragilidade, sua baixeza e sua sublimidade, a arte etc. 

São temas que, de alguma maneira, tocam aquilo que temos de mais radicalmente humano – nos dois sentidos: tanto de extremidade, de limite, quanto de início, de raiz. Dizem um pouco da minha maneira de ver o mundo, dizem um pouco daquilo em que acredito ser universal a cada um de nós. Um universalismo individual, uma individualidade universal, algo assim. E, no mais das vezes, justamente por serem tão constitutivas, são questões recônditas, recalcadas, afastadas para uma zona de desconhecimento quase proposital, quase autopreservativa. Os temas não deixam de ser um cutucado forte nessa parte que, muitas vezes, ninguém quer perceber que traz em si.


7 - Em sua análise, quais as principais mensagens que podem ser transmitidas pelo livro?


Não sei se gosto de pensar que o livro traz mensagens, ao menos não no sentido de uma lição, de uma moral de fábula. Gosto de trabalhar no equívoco, na plurivocidade, naquilo que é errante – que erra e que vaga. Quero, a partir desse limbo, que o leitor seja capaz de projetar o próprio desejo no que lê. E o desejo, que é amoral, envolve satisfação, mas envolve muito desconforto também. Mexer com nossas neuroses pode doer, mas os resultados nunca são vãos. 

8 - Que livros influenciaram diretamente “Coisa Amor”?

Além dos já mencionados acima, que me influenciaram para a vida, existem alguns autores que reverberaram diretamente sobre alguns contos específicos: Joyce; Miguel Torga; Alice Munro, que me deliciou com seus contos longos, nada econômicos, e me ensinou que um conto também pode ganhar por pontos, não só por nocaute; Caio Fernando Abreu (o conto Years of Solitude faz referência à música que se indica ouvir em Pela Noite, novela do Triângulo das Águas); Natalia Ginzburg de Todos os Nossos Ontens, cujo estilo solto, quase infantil, influenciou sobretudo o conto Ela; Freud e o fabuloso de seus casos clínicos etc. 

9 - O que motivou a escrita do livro? Como foi o processo de escrita?

A motivação geral foi colocar no papel visões de mundo minhas, argumentos e sobretudo angústias diante de fatos da vida. Não se trata, em absoluto, do que hoje se chama de escrita catártica, mas, antes, de uma tentativa de elaborar esteticamente essas minhas questões – que, em larga escala, são questões humanas.

Quanto ao processo, foi, como quase em tudo para mim, bem metódico: primeiro terminei o que estava pendente; depois comecei e finalizei ideias que nunca tinham recebido um “a” no papel; depois revisei tudo; depois compilei e consolidei o material, para decidir o que entraria ou não; depois revisei tudo de novo; depois reescrevi do zero um ou outro conto; depois revisei à luz dos comentários da revisora crítica; depois revisei mais uma vez, e de novo, e de novo... 

10 - Como você definiria seu estilo ?

No “Coisa Amor”, a questão do estilo está mais fluida e variada. Acho que foi a Dulce Maria Cardoso, naquele livro de entrevistas do Ricardo Viel para a TAG, que disse que, para cada história, surgia um novo estilo, a par do que precisava ser contado ali. Acho que acredito um pouco nisso. De toda forma, reconheço que a escrita que me sai mais fácil é mais tortuosa, com frases longas, adjuntos deslocados, inversões, apostos, pontuação capciosa, um texto mais adjetivoso, palavroso, carregado, meio barroco – e isso aparece em alguns contos do “Coisa Amor”. É algo que, com o tempo, tenho tentado “domar”, amainar e enxugar, deixar o texto mais suave, mais convidativo ao leitor (e isso também aparece no livro). 

11 - Como é o seu processo de escrita?

Eu sou, como com (quase!) tudo na vida, muito metódico (o Sol em virgem grita). Me submeti a uma rotina cruel nos últimos dois, três anos, quando terminei de escrever/montar o “Coisa Amor” e comecei – e terminei – um romance. Posso ser muito duro comigo mesmo.

Para escrever, preciso de total silêncio, total sobriedade. Não pode haver distração, barulho, música, frio ou calor, fome ou excessiva saciedade. Pode parecer um processo muito racional, mas eu confio muito na sabedoria do Inconsciente – que é, enfim, a sabedoria da própria linguagem. Algumas coisas que eu achava serem fruto de uma escolha racional acabaram se mostrando muito mais profundas, misteriosas, concatenadas de insuspeitadas maneiras, do que eu primeiro imaginei. E isso é danação (condenação e traquinagem) do Inconsciente. Mesmo com toda essa tentativa de controle, o Inconsciente ganha, acaba aparecendo, desfazendo e sobretudo fazendo (ainda bem) muitos nós. 


12 - A data de 17 de maio marca o Dia Internacional Contra a LGBTQIA+fobia. Para você, como um autor gay, de que maneira a Literatura pode contribuir para a causa?


De muitas, muitas formas. A militância não se dá somente pelas vias imediatas -- se bem que, sob certo ângulo, a literatura seja, sim, uma arma direta contra a ignorância de maneira geral. Sou um homem gay e, se meu projeto literário parte, em larga escala, da experiência humana como ser desejante, é inevitável que a sexualidade LGBTQIA+ esteja amplamente refletida em meu texto. Não acredito numa literatura moralizante, então tento sempre cuidar para que as questões surjam subjetivadas, ou seja, incorporadas em personagens verossímeis, muitas vezes contraditórios, até. Que esses personagens existam, que o leitor se envolva com eles e com seus conflitos, é já um grande exercício de alteridade -- remédio dos mais eficazes contra qualquer tipo de preconceito.

13 - Você já foi contemplado com alguns prêmios literários, incluindo o Prêmio Off Flip de Literatura, por duas vezes. Agora, após o lançamento de “Coisa Amor”, você passou a ser agenciado por uma das maiores agências literárias do país, a Riff. Para você o que significa ser agenciado, pensando no ofício literário como profissão?


Eu ainda nem acredito que sou um agenciado da Riff. Minhas agentes talvez nem saibam, mas isso é sonho antigo, antigo. Quando recebi a confirmação de que trabalharíamos juntos, saí dando gritos e pulos pela casa. A Riff é a mais importante e mais tradicional agência do país. A pioneira. Estou ali do lado de gente como Lygia Fagundes Telles ou Rachel de Queiroz. É surreal. E sei que faremos um trabalho muito bonito juntos. Inclusive, vem romance por aí!

14 - Por falar em romance, quais são os seus projetos atuais? O que mais vem por aí?

Em primeiro lugar, divulgar o “Coisa Amor”, fazer com que ele alcance as pessoas. Escrever, tenho descoberto a duras penas, é também divulgar a sua escrita. Não é fácil, a gente passa uma vergonhazinha na internet, mas faz parte. É como hoje a banda toca.

Depois, tenho escrito crônicas quinzenais para a O Que Eu Temia Chegou, minha coluna no Curitiba Cult. Tem sido um processo curioso: é uma delícia falar de mim, trabalhar com não-ficção, mas há também desafios específicos. E a gente termina ficando mais humilde, porque descobre que haverá, sim, textos não tão bons – o prazo está ali, batendo na porta – e que está tudo bem. Não é preciso inventar a roda.

Por fim, existe o romance, com título ainda provisório. Eu estou muito empolgado, porque acredito muito no livro. Está pronto, e estamos, eu e a Agência, à procura de editora. É, como não poderia deixar de ser, um romance sobre família. Se o “Coisa Amor” talvez tenha dado mais destaque às relações diretas, sobretudo entre pais (mães!) e filhos, aqui, no romance, o foco principal recaiu no parentesco colateral, como irmão-irmã e, sobretudo, tio-sobrinho. É, eu poderia dizer, um romance avuncular.

É curioso porque, quando me veio a palavra que usei acima – colateral –, logo percebi a jogadinha do Inconsciente comigo – olha lá ele de novo, fazendo danações. Colateral é uma palavra plurívoca. O significante tem, sim, o sentido jurídico que apontei, mas, além dele, se desvela um outro significado, aliás muito mais corrente na linguagem cotidiana: o de um evento aparentemente secundário, mas que pode ter efeitos devastadores (como em efeito colateral, dano colateral etc.). E, no final, o romance trata um pouco disso: das extensões daninhas, mas também constitutivas, indeléveis, que o trauma, por excelência vivido durante a infância, pode impor sobre toda a nossa vida. Na epígrafe, versos de Louise Glück: olhamos para o mundo uma única vez, na infância. O resto é memória (“We look at the world once, in childhood. The rest is memory”, no original).

Em resumo, a história começa com o retorno de Marcelo à vila natal de Ourives, para ajudar a cuidar do pai em estado terminal. Ao chegar ali, é recebido por Inês, sua irmã, com violência física e pavor. A partir daí, voltamos no tempo para entender como a relação se formou e se deteriorou. Tempo, aliás, é um dos principais motivos do livro.

Tentando colocar de uma forma mais elegante: trata-se de um romance de formação acerca das nuances e complexidades das relações familiares, da potência inesgotável do trauma e, acima de tudo, das inapagáveis marcas da infância sobre a concepção do desejo, da sexualidade e da própria passagem do tempo. O trecho seguinte talvez revele um pouco da tônica do livro: 

“Família é brutal. Arena de touros, rinha de cães. Ceitil de civilização, refinada barbárie. Gérmen de todo amor, todo cuidado, toda compaixão, paragem última de todo ódio, todo medo, toda morte. Dela, começo e fim da marca humana: que outro bicho conhece a vingança? Que outro animal se apraz na dor?”.