Três contos de terror de Íris Andrade

 por Iris de Andrade__




Foto: Kristina Tripkovic


Do porão ao chalé


Eu e minha namorada estávamos em um chalé muito distante da cidade. Ao longe víamos um horizonte repleto de árvores frondosas e montanhas nubladas. Uma música bacana tocava baixinho na caixa de som. Estávamos juntas, como se as nossas mãos e os nossos olhos estivessem fixos por imaginários laços coloridos. Aquela manhã estava especialmente deliciosa. 

A senhora nos trouxe bolinhos e chá verde. Eu não gosto de chá verde; gosto de chá de hortelã adoçado com mel. Instantes depois, meus pais me ligaram, porque tinham o número do velho telefone da parede. Muito devagar a senhora caminhou ao telefone e o tirou do gancho fazendo reinar um bom silêncio. Chamou-me num canto, seus olhos quilométricos, seus lábios balbuciaram-me um recado. Eu sabia do que se tratava e quis ri, mas disfarcei. A senhora me encarou, experiente, detectou um segredo em meus olhos. Respirou fundo e continuou falando baixinho. Ela repetiu o recado, agora contanto em detalhes, só não soube explicar que o único filho dos meus pais estava de fato morto no porão.


Debaixo do sono


Quando criança os mais velhos me contavam lendas e a que eu mais temia era a do bicho-papão. Hoje crescida percebi o quão foi engraçado para eles quando eu tinha medo do monstro. 

Aqui, deitada, me lembro dessas histórias, que agora me chegam sem consentimento. Fecho os olhos e lá dentro procuro as portas do sono, mas este não vem. Infelizmente meus pais viajaram, e estando sozinha aparecem-me as velhas companhias, aquelas que se escondem na dobra dura das coisas. 

Há uma cama do lado da minha. Uma sombra se forma debaixo dela. Não parece aquele monstro que meus pais contaram, pois tem a silhueta inofensiva de uma menina. Dizem que os monstros das lendas antigas podem aparecer sob formas belas e dóceis, como a uma borboleta ou a de um cachorrinho. Para mim, contudo, é impossível que bicho-papão apareça sob a forma de criança.

Deve ser coisa da minha cabeça, embora aquela sombra cresça e mais se defina, conforme eu esfrego as minhas pálpebras. Depois de um tempo, meu olhar percebe que a criança encolhida, debaixo da cama, se parece muito comigo.


Um vídeo diferente


Jessy é amiga de longa data. Mora sozinha, num apartamento, a uns quatro quilômetros de minha casa. Eu nunca a achei esquisita, ainda que ela costume se gravar dormindo, de madrugada, e às vezes me mande alguns desses vídeos.

 Nunca me esqueço de aconselhá-la com certa ironia: “Se você gosta mesmo de gravar seus vídeos estranhos, então os assista com mais frequência!”. Ela prontamente verificou seu celular e o meu, porém não havia (como era de se esperar) qualquer novidade, tanto nas mensagens quanto na galeria.

Há dias me enviou outro vídeo — a monotonia de um corpo estático dormindo dentro de um pijama, os mosquitos e o ventilador. Porém, desta vez havia uma mancha grande e translúcida gravada, e dentro desta um rosto sorridente, somente um rosto, sem pescoço, braços e pernas. O visitante noturno se aproximara dela, coitada, deitada e dormindo, conforme o vídeo avançava. 

Após uma estática e distorção das imagens, a cena retorna — aquele rosto agora parecia cheirar os seus cabelos, demorando-se por muito tempo junto ao seu pescoço. Eu fiquei muito enciumada, porque realmente os cabelos de Jessy são bastante cheirosos. 

Sobre aquele fantasma, eu já estava com raiva... Pensei: “Que bacana! Que montagem realística! Um pequeno filme de assombração! Que programa de computador Jessy usou desta vez?”. 

Repetir aquele vídeo umas dez vezes naquela noite, notando que “travava” nos dois minutos finais: o rosto sorridente desaparecia num piscar de olhos, e Jessy continuava dormindo, como se sonhasse coisas boas (o fato da cena paralisada acentuava uma estranha paz onírica). 

Hoje, dia vinte, sexta-feira. Por incrível que pareça não nos falamos há exatamente uma semana. Não sei por que nos esquecemos, já que é regra de fidelidade e obrigação de amigos nos comunicamos todos os dias, que estranho... nem percebemos a semana passar para notarmos que não nos comunicamos, sequer mandamos um “oi” pelo celular... 

Talvez isso ocorra porque me ocupei demais com as provado do Simulado, se considerar a nota precária da última avaliação. Por sua vez, Jessy reclamava das altas demandas do seu curso de Enfermagem. 

Depois de algumas tentativas, consegui avançar os dois minutos “travados” do vídeo. Já a cena era outra: aquele rosto fantasmagórico estava num galpão abandonado. Sua feição era a de um sádico, porque seus olhos me lembravam muito os olhos de Hannibal Lecter. 

Por nada neste mundo eu deixaria de assistir ao desfecho: de cima, o fantasma observava Jessy amarada em uma cadeira de ferro. Ao seu lado havia bombas relógios. 

Pausei. Imediatamente corri até seu apartamento, mas não cheguei a tempo. Ouvi um grande estouro! Quem sabe Jessy não estivesse bolando algum vídeo diferente?

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*Está produção é fruto das atividades da Eletiva “Pensamento Computacional e RPG”, sob orientação do professor Wellington Amancio da Silva e coordenação de Ana Vilma Francisco de Souza Aragão (E. E. Luiz Augusto Azevedo de Menezes, 11ª GERE).







Iris de Andrade nasceu em 2006. Reside em Delmiro Gouveia, Alagoas.  Aprecia filmes e livros que envolvam terror e ação, especialmente com teor literário. Ingressou pela poesia romântica, não se encontrando na escrita de coisas comoventes e amáveis, até conhecer os contos de Allan Poe. Destino traçado, em breve será publicado “Os monstros da escrivaninha” pelas Edições Parresia.