A bandeja de Salomé, de Adriane Garcia

 por Ivy Menon__




A bandeja de Salomé, releitura que devolve a dignidade às mulheres bíblicas (ou não)


(...) Mas, quando transmitiram a ordem do rei à rainha Vasti, ela se recusou a ir. O rei ficou furioso e indignado.  Ester 1:12.


Aguardei, com ansiedade, a publicação de A bandeja de Salomé, livro de poesia de Adriane Garcia, por se tratar de uma releitura de algumas das mais tristes passagens bíblicas. No livro, as personagens femininas protagonizam a própria história, mesmo quando vítimas. Por isso, os poemas de A bandeja de Salomé caíram sobre mim como uma avalanche de “revelações proféticas” (estou colocando em risco meu couro). 


Sou cristã, porém sempre me senti incomodada com a dureza dos homens – os patriarcas – no tratar com suas mulheres. E me envergonhei com minha falta de solidariedade, para com elas. Perguntei(me): algum “cristão” seria capaz de descrever a dor de Rispa para que os corvos não dilacerassem e comessem os corpos de seus meninos? Dias, ali, debaixo daquela árvore, lutando para poder dar a seus filhos, a dignidade de serem sepultados. Pois Adriane sentiu as tais dores, inclusive nos fazendo lembrar as “Mães de Maio”: Diz ela, em “A busca de Rispa”:


(...) Mais um animal feroz nesta noite/Rispa o espanta, ela própria é a tocha/O rei terá que dar enterro a seus filhos/E até que a chuva caia, ela exige e espera/feito uma leoa, atravessando maio” (A busca de Rispa).


Ainda que a Bíblia, no seu todo, tenha sido libertadora para as gerações para as quais foi escrita, registro que, de fundamental importância, serem feitas as corretas contextualização e interpretação para aplicação das verdades, nela contidas Para que seja liberadora também hoje. Mas não vou discorrer sobre. Escolho falar sobre a mudança de paradigma trazida pela Poeta, em A bandeja de Salomé.


Adriane Garcia eleva as mulheres à condição de dona de si mesmas, ainda quando debaixo da mão pesada, que justifica o desamor, alegando ordem de Deus. As mulheres têm nome, sofrimentos, esperanças, sonhos e, principalmente, vontade própria. A Bandeja de Salomé não teme rasgar o véu para adentrar a alma feminina para não somente conhecer como denunciar a crueldade a ela impostas. 


Com uma poesia inteligente, poderosa e desafiadora, A bandeja de Salomé usa a voz daquelas mulheres para falar das mulheres de todos os tempos. Inclusive as contemporâneas. Em “A descoberta da mulher encurvada”, a verdade:


Coloque o peso do mundo sobre os ombros dela/Prontifique os olhos de todos para o seu julgamento/Profira, quando ela nasce: é mulher/Sentencie (com decepção e desprezo)/Lembre-se: você aceitou destruir, mostre/Que ela só deve olhar para baixo/Separe um lugar para os homens/E outro, bem atrás, para ela(...)/Foda a primeira vértebra/Depois a segunda a terceira e a quarta/Até toda a coluna estar fundida/A ponto de, corcunda, não olhar mais para o céu.


Sim, a Bíblia foi escrita há muito tempo (de quatro a dois mil anos atrás). O pensamento era naturalmente machista e misógino, o que não me serviu de consolo. Chorei em quase todos os poemas. Chorei inclusive de vergonha de ter lido tantas vezes a Bíblia, e não ter sentido o mesmo amor misericordioso que Adriane Garcia sentiu.




Adriane Garciapoeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020, Estive no fim do mundo e lembrei de você  (Editora Peirópolis) e A Bandeja de Salomé ( Caos e Letras, 2023)






Ivy Menon, 64 anos, natural de Cornélio Procópio-PR, escreve poesia, crônicas e contos, os quais publica nas redes sociais, blogs, sites e revistas eletrônicas. Bacharel em Direito, com pós em Filosofia, além de jornalista e teóloga. Dois livros de poesia publicados: Flores Amarelas, 2006 (Editora Multifoco) e Matemática das Algemas, 2021 (Editora Camino). Um de crônicas, Asas de terra e sangue, 2021 (Editora Arribaçã) Com lançamento previsto para setembro, o romance Mar fechado Mar aberto, feito em parceira com Angela Zanirato (Rizoma Projetos Editoriais).