Nó cego, crônica de Argentina Castro

 por Argentina Castro__




Colagem de Argentina Castro
                                                                                   


Nó cego, no Ceará, é uma expressão usada para designar os errantes. 

"Rapaz, pense numa pessoa nó cego".

Uma pessoa errada, maluca, desviada das retidões da vida e do que prega a sociedade.

Uma espécie de louco. 

O que foge à regra, o que sai do comum, o que não anda com a multidão.

Por mais das vezes, um solitário. 

Sim, um solitário, afinal quem quer andar de mãos dadas com quem sai tanto da curva? 

O que não se entrega? 

O que não se conforma e se contenta?

O que não pensa e sente igual a maioria? 

Aquele que se diferencia justamente pelo desvio? 

Quando Foucault diz que "talvez o objetivo hoje em dia não seja descobrir quem somos, mas sim rejeitar o que somos", eu sinto um peso enorme, uma tristeza profunda porque no fundo no fundo, acho que o que somos é o que nos mantém em pé, mesmo sangrando. 

E somos o que foi possível nos tornar a partir do que tá enraizado lá no quintal de nossa infância. Meu quintal tinha muita lama, literalmente. 

Um terreno nas proximidades de uma lagoa. Úmido, brejo ruidoso, perigoso, enganador. Quem vê água por cima serena, bonita, não imagina o turbilhão que acontece nas entranhas, por baixo, no submundo, nas profundezas. 

Eu atolava sempre que tentava brincar. Não se podia brincar nos tempos de chuva. Era arriscado entrar num buraco e nunca mais sair. Gostava de ouvir o cantarolar dos sapos, mas não suporto vê-los por perto. Acho-os criaturas medonhas, mas sinto na alma uma familiaridade com os anfíbios, pela presença constante deles na infância e, talvez, por essa vida que se divide em duas partes: terrestre e aquática. O seco e o molhado.

O seco e o molhado  da existência. 

O seco e o molhado do amor. 

O seco e o molhado da desistência 

O seco e o molhado da resistência 

O seco e o molhado da insistência 

O seco e o molhado...




Argentina Castro - Mestre em Antropologia. Escritora de poemas, contos, crônicas. Articuladora e Mediadora da Papoco de Ideias. Escreveu Bomba d’água Coração (Selo Mirada, 2022), livro de contos.