O louco de saudade e as formigas, um conto de Luiz Henrique Gurgel

 por Luiz Henrique Gurgel__





Foto: Tom Dick
                                                                   


Da mesa da cozinha - sentado só, como sempre, depois do almoço - via um traço de céu azul pela fresta da janela dos fundos, na lavanderia. Quanto tempo? Dez? Doze? Quinze? Não, treze anos. Ana morrera há treze anos.


Continuou a olhar a nesga de horizonte sem nuvens e uns prédios distantes, era outono. Vinha pela mesma fresta o ruído, o insuportável e diário burburinho lá de baixo. Colocou um CD para tocar – ele ainda tinha centenas deles – queria abafar o som sujo lá de fora. Era a canção que mais amava ultimamente, ouvia o dia inteiro, sem parar:

 

Água de beber, bica no quintal, sede de viver tudo...

 

Levantou repentino, pegou a cadeira, impaciente, e foi até a lavanderia. Escancarou a janela com violência para fazer barulho e chamar atenção de todos lá embaixo. Era o estacionamento de uma loja de sapatos, movimentado com seus carros, manobristas, mancebos e madames, todos afoitos pra lá e pra cá, com pressa, sacolas e pacotes indo, ansiedades e desejos chegando. Mesmo assim, ninguém notou sua presença lá em cima, na janela do oitavo andar.


Pra que tanto sapato, perguntava o seu coração. Trouxe junto a pequena e potente caixa de som e a encaixou no parapeito da janela:

 

Água de beber, bica no quintal, sede de viver tudo...

 

Aumentou o volume e a voz da divindade Milton, numa canção de outro mundo, foi enchendo o espaço:

 

E o esquecer era tão normal que o tempo parava.

 

Girou de novo o botão do volume. Lá embaixo, as gentes continuavam indo e voltando sem se trombarem, de vez em quando paravam de frente uns para os outros, como a dizer algo, incompreensível, beijinhos no rosto e seguiam sua direção, como fazem formigas e cupins.

 

Pôs o volume no último ponto e só assim começaram os olhares lá para cima, para a janela dos fundos daquele prédio. Notaram o cantogritado do homem careca, barba branca e imóvel, olhando para o horizonte, para o além, meio corpo fora da janela. Cigarra melancólica em dueto com o Milton na caixa de som:

 

E os velhos falavam coisas dessa vida,

Eu era criança,

Hoje é você

E no amanhã,

Nós....

 

A gente esquisita parava e saía dos carros para ver o velhote: Quem é o doido?


Por um momento ele para de acompanhar Milton, vira o rosto para a plateia e esbraveja: Tudo acaba, seus merdas! Tudo acaba! Quem tá de sapato não sobra. Vão tomar no cu, parasitas! Cupins!


O burburinho aumenta, Quem é o louco, gente? Risadas. Não tem mais o que fazer, velho maluco? Não tomou o remedinho hoje, tio? Vá dormir, vagabundo! Ele grita mais, em desespero: Tia Rita! Tia Helô! Tio Antônio! Tia Laura! Onde vocês estão? Onde estão? Cadê você, Vô?

 

Será que vai se jogar? Agora que eu não vou embora.

 

Era tão normal que o tempo parava...

Tinha sabiá, tinha laranjeira,

tinha o sol da manhããã

E na despedida

tio na varanda

jipe na estrada,

e o coração lá.

 

Tio José! Tio Chico! Tia Cota! Onde vocês estão? Gritos lá embaixo, risadas, assobios. Ubi sunt! Ubi sunt! Ubi sunt! O velho professor de latim ainda gritava dramaticamente da janela, mãos na altura do peito como a suplicar.

 

Que cacete esse velho tá falando?

 

Seus merdas! Não tenho pena de gente a quem isso não acontece! E cuspiu lá para baixo, desceu da cadeira, levou a voz de Milton consigo e fechou a janela.

 

Decepção e risos no estacionamento, completamente parado. Alguém insistiu: Ô Velho! Volta aí! Não vai pular? Cada louco nesse mundo. É necessidade de aparecer.

Ele abriu de novo a janela num rompante e gritou: Merdas! Seus merdas! Vocês não sabem nada, bando de merdas. Tudo acaba, seus merdas! Tudo acaba! Merdas! Merdas! Merdas! Sou lúcido. Sou lúcido, seus merdas!

 

Fechou a janela, as formigas não quiseram esperar muito. Nada veio, nem palavrões, nem cuspes, nem o corpo do velho avoou do edifício. Indiferentes e frustrados, voltaram aos pacotes e aos sonhos dourados do presente continuum e repetitivo ao alcance dos pés, renovado e alimentado instante a instante, sem parar, sem pensar, sem que seja preciso voltar-se a si. Os sapatos com pés enfiados continuavam a desfilar e reluzir em espelhos ao rés do chão.





Luiz Henrique Gurgel 
é jornalista, professor e pesquisador. Mestre em Literatura Brasileira pela USP, é autor do livro de contos "amores malfadados" (Ed. Primata, 2020).