Sonho vencido, um conto de Adriano Espíndola Santos

 por Adriano Espíndola Santos__







Foto: Ash Gerlach


“Presta atenção, ô seu filho da puta!”. Uma novidade agressiva e escandalosa. Ouviu, esquivo, sem querer, a conversa alheia. Não sabia para que ponto olhar, entre inúmeras tentações. Um prédio enviesado à frente era “uma monstruosidade prestes a se desequilibrar”, imaginou, aturdido. Barulhos de sirene e buzina, de gente andando em sincronia com os sinais. Uma moto bruta, grande, que mais parecia um carro, raspou o seu braço e o fez, de um pulo, cair para trás. Esperar algum tipo de ajuda? As pessoas não tinham tempo. Andavam na velocidade de seus compromissos, infindáveis. Amedrontado, acocorou-se próximo à saída de um centro comercial. Um velhinho encostou a bengala no seu braço direito. Percebeu que estava sendo cutucado. “Saia do meio, moço, está atrapalhando a passagem”. A voz arrastada e disforme pouco se fazia ser entendida. Encostou-se na coluna maior do centro comercial, ornado com adereços romanos. Tinha pavor de supor que alguma autoridade o pegaria e jogaria na prisão, se ver nem para quê. “O que vim fazer mesmo nessa cidade?”, pensou por horas, ruminando. Valdora, uma amiga de Missão Velha, numa visita passageira pela terrinha, havia relatado o fascínio de se viver onde tem “de um tudo”. “Ora, você pode ir ao médico no posto, tem um pertinho da minha casa; pode fazer compras em supermercado chique; pode até arranjar um emprego decente, em vez de ficar aqui nesse fim de mundo, sem condições de nada”. Da conversa, que ficou marcada, ele guardou a satisfação e a alegria da moça, que, sem pecado, se desvinculara do seu lugar de origem. E, além do mais, ela estava esbelta, perfumada e florida. O detalhe, que não se pode negar, é que se encantou pela beleza da cabocla faceira – antes, ignorada. “Essa tal de Capital faz milagre!”. Em Missão Velha, amargava dois anos de trabalhos incertos, sempre na dependência do Zé da bodega ou do Prefeito, um homem forasteiro, que bastante prometia e mal pisava na região para cumprir os seus compromissos. Perdido em nuvens, foi assaltado por um pedaço de hambúrguer que caiu no seu colo. “Toma aí, velhinho!”, falou um jovem esquisito, manchado de tinta dos pés à cabeça. Era medonha a imagem. Por instinto, no ato, jogou longe o presente. “Mané!”, o benfeitor saiu rindo e sumindo por entre a multidão. Estava com fome. Não pensou duas vezes, correu para pegar o objeto jogado. Estava pisoteado, fragmentado; viraria, sim, um pouco mais, pó. Refletiu que poderia, igualmente, virar pó, ou nada, indigente que era; ser varrido da existência pelo simples motivo de ser estranho ao ambiente. Logo encontrou Juvenal, o Juju, um morador de rua. Estava ébrio, como sempre estivera, todavia consciente para lhe oferecer uma banana madura. “Pega aí, meu camarada! Não tenho um pingo de fome”. Ajuizou que não queria terminar assim, como o homem sujo e acabado. “Que coisa esquisita!”, avaliou, consternado, por desconfiar que na cidade só havia poesia. Perguntou, cheio de dedos, se ele conhecia a Valdora. [Uma pergunta ingênua, mas que calhou correta por haver, certamente, poucas Valdoras aí]. “Não conheço nenhuma Dôra… Só uma puta que eu comia há tempos atrás, e morreu, a desgraçada, com o corpo cheio de pereba”, e desandou num riso de escárnio. Deveria sair dali, depois de comer a banana – que dava nojo, por vir de uma mão cascuda e imunda. Fingiu que comeu um pedaço e guardou o restante na sacola. Agradeceu, encabulado. Juju queria companhia para a bebida. Acenou e pediu calma, que não fosse embora assim. Apertou o passo porque, segundo a mãe, bebida era “desordem do cão”. Andou quase uma hora sem parar. Pedia a Deus que, no caminho, desse de cara com Valdora. Percebeu que era uma pecinha de nada naquele formigueiro efervescente: impossível encontrá-la. Chorou a solidão. Tirou do bolso o único trocado que tinha, quatro reais, e permaneceu suspenso, vidrado por alguns minutos. Pediu um café e um pão passado na chapa ao moço do balcão da lanchonete. O homem riu e disse que só dava para o café. Mas ainda assim lhe deu um pão duro. “Toma isso aí, já ia jogar no lixo!”. O café era minúsculo, e não deu sequer para livrá-lo do entalo. Tossiu, tossiu, e foi mandado embora. “Já chega. Chispa daqui. Tá assustando os clientes”, disse o dono  – velho rabugento e cismado com a malandragem – enquanto batia na mesa. Para não encompridar a história, fulano passou uma semana na cidade, vivendo da caridade de uma senhorinha que se compadeceu da situação. Todo dia lhe trazia um bocado de frutas e comida. Era uma das antigas moradoras do centro, beata da Igreja de São João Batista. Afeiçoou-se com a senhora, mas não aguentava mais ficar na rua. Chorou um pranto doído, desesperado, e pediu que ela lhe desse o dinheiro da passagem de volta. Deu um pouco mais, para acudi-lo em outras necessidades, que decerto iriam suceder, e o deixou dormir a última noite no alpendre de sua casa, num colchonete, com uma coberta fofinha. Poderia ter sido a sua melhor noite na cidade, não fosse a lembrança viva de Valdora. Sentia um vazio, como se abandonasse uma promessa. Saiu cedo. Despediu-se da senhorinha com um beijo, cheio de mesuras; não sabia que havia pessoa boa nesse lugar. Andou até a rodoviária, perguntando a um e outro o destino. Comprou a passagem, e às 11h já estava na estrada, a caminho de sua terra natal – e, pensava, de onde não devia ter saído. Valdora, por outras venturas, teve sorte. Mas ele não quis mais experimentar nadinha. Não há de se teimar por sonho vencido.







Adriano Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”; em 2021 o romance “Em mim, a clausura e o motim”, pela Editora Penalux; e em 2022 a coletânea de contos “Não há de quê”, pela Editora Folheando. Colabora mensalmente com as Revistas Mirada, Samizdat e Vício Velho. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária e em Revisão de Textos. Membro do Coletivo de Escritoras e Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto. instagram.com/adrianobespindolasantos/ | facebook.com/adrianobespindolasantos adrianobespindolasantos@gmail.com